PERIPÉCIAS CIRIANAS (DO CÍRIO DE NAZARÉ)

Sérgio Martins PANDOLFO*

Nessa época de agitação da família paraense para sua festa maior, que ocorre tradicionalmente no segundo domingo de outubro desde 1793, muita coisa acontecia, e continua a acontecer, ligada às festividades religiosas e, principalmente, aos preparatórios para o almoço após a monumental romaria católica que, como é sabido, diz-se ser a maior do mundo. Almoço que reúne a família inteira, incluindo os membros que estão vivendo fora de Belém, no interior do Estado ou fora dele, e que para cá se deslocam a fim de participarem das come(bebe)morações do assim chamado “Natal dos paraenses”.

Os parauaras somos donatários de uma excepcional cozinha, que é reconhecida como a mais genuína e diversificada do Brasil e que especialmente durante a quadra dos comemorativos cirianos é exercida e experimentada à farta, constituindo-se em verdadeiro regalo para os peregrinos.

Muitas coisas do passado nos vêm à lembrança, como, por exemplo, o cerimonial de preparação do peru que iria servir de pasto no prato do Círio, que incluía a administração de cachaça à pobre ave, antecedendo o abate, quem sabe visando à diminuição do sofrimento, certamente intenso, pela degola, mas justificada como necessária para “amaciar” a carne do indefeso galiforme. Não sabemos dizer se isso ainda acontece. Há também a caça aos patos regionais para a feitura do genuíno, e certamente mais representativo, pato no tucupi, o que implica verdadeiro “paticídio” em massa, afora os provindos de outras praças, comprados nos supermercados. Há que falar, igualmente, na preparação da maniva para a feitura da maniçoba, que exige fervura das folhas por cerca de sete dias.

Em nossa casa, “uma casa portuguesa com certeza” dada a ascendência lusitana de nossa mãe, nesse dia, como também no Natal de Jesus, nunca faltava o delicioso bacalhau que, como sabido, igualmente exige todo um ritual para dessalgá-lo, assim como a adição de condimentos e complementos indispensáveis para a feitura, à moda lusitana, do prato escolhido para a ocasião.

A depender da disponibilidade financeira ocasional das famílias muitas outras iguarias, igualmente dignas e gostosas, são preparadas “no capricho” para a reunião da família e acolher a devoção à Padroeira da Amazônia, aí incluídos acepipes à base de peixes, leitão, frango (ou melhor, galinha, como costuma dizer o parauara da gema) e, às vezes, os proibidos quelônios da região, tais a tartaruga, o tracajá, o muçuã e outros que tais. E é neste ponto que desejamos nos alongar um pouco mais, narrando episódio, digamos assim, tragicômico que vivenciamos num outubro de há cerca de meia centúria.

Quando ainda éramos aspirante ao curso de Medicina íamos, com outros iguais, estudar na casa de um querido amigo, hoje médico bem sucedido e respeitado, na qual o “velho” Edgar, pai desse colega, havia feito construir nos fundos do quintal um barracão, a fim de que pudéssemos discutir as lições e exercitar as aquisições auferidas, muitas vezes em alta voz, sem perturbar o sono dos justos, pais e familiares do Hélio (este o nome do colega).

Certa noite, ao chegar mais cedo para o exercício de “queimar pestanas” detectamos um ruído estranho e bastante incomodativo, que provinha do galinheiro ao lado e fomos investigar, dando com um grande barril que acreditávamos estar cheio de ratos. Não contamos conversa: deitamos nele um litro de querosene, incendiando os enervantes roedores, podendo, assim, dar início à noitada de estudos. No dia seguinte, pela manhã, o “velho” Edgar, um experimentado e ilibado policial quase sofre um enfarte agudo do miocárdio (à época ainda sem o chiquê de hoje) e, respirando fundo para conter-se, exclamou conformado: “Mas quem foi o malvado que torrou meus muçuãs do Marajó? Tratava-se, como já se vê, de alguns exemplares desse apreciado e disputado quelônio que ele havia adquirido naquele dia, a fim de mandar preparar aqueles deliciosos “casquinhos de muçuãs”, iguaria supimpa, exclusiva da culinária parauara, para o almoço do Círio.

Eis aí uma faceta que seria hilária, não fosse penosa e desastrada, do autor destes apontamentos relativos às tradições cirianas, que acabou por privar ao saudoso, compreensivo (pois perdoou a desatinada, inocente embora, peripécia deste escriba) e sempre lembrado “seu” Edgar e sua família de degustarem o bom quelônio marajoara durante o lauto e diversificado repasto daquele já alonjado Círio de Nazaré.

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(*) Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES

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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 09/10/2009
Reeditado em 09/10/2009
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