“Adeus às armas”

Outubro de 2005

Apesar do título deste referendar uma das mais importantes obras da literatura mundial – do suicida escritor norte-americano Ernest Hemingway – o presente comentário tentará levar novas luzes ou, pelo contrário, complicar mais ainda o debate sobre o sugerido referendo nacional do próximo dia 23 de outubro à proibição, ou não, da venda de armas de fogo em todo território nacional.

Até o momento, a população brasileira, segundo estatísticas, continua dividida entre a proibição e a permissão para a continuidade das vendas das referidas armas, estando o bloco dos que votarão “sim” às suas proibições de comercialização no Brasil, no meu entender, munido de argumentos que, tanto quanto o dos que pretendem votar “não” à referida proibição, justificam razoavelmente a decisão de uns como de outros.

Os que tendem a votar “sim” argumentam, por exemplo, que a posse de armas de fogo pela população contribui para o aumento da violência e da propensão aos acidentes fatais, dentro e fora da família brasileira. Os exemplos abundam: morte de crianças por outras crianças que, com fácil acesso as armas que têm em casa, muitas vezes numa simples brincadeira de “polícia e bandido”, executaram sem querer amigos e parentes; morte de pais, mães e agregados, graças a freqüentes discussões passionais ou, ainda, pela ação de criminosos que, às vezes mesmo desarmados, ou munidos de “armas brancas”, invadem residências e outros estabelecimentos nos quais encontraram armas de fogo e delas tomam posse – entre muitos outros casos que atestam a necessidade de se votar favoravelmente à proibição da livre comercialização de armas no Brasil.

Os que tendem a votar “não” à proibição, por sua vez, argumentam que a posse de armas de fogo pela população é uma necessidade, uma vez que, sem que ainda tenhamos um sistema judiciário eficiente ou polícias devidamente estruturadas e competentes à efetivação de nossa segurança, sem acesso às armas, ficaremos a mercê dos assassinos, que continuarão armados até os dentes, mesmo que o referendo tenha “sim” à não comercializações de armas como resultado (contribuindo, inclusive, para o aumento de seu comércio ilegal) – tendo sido difícil atualmente, além disso, identificar quem, entre policiais e bandidos, têm agido sistematicamente contra nós ou a nosso favor.

Entre os que votarão “não”, alguns defendem, ainda, o argumento de que precisamos de armas porque “o homem é essencialmente um ser voltado para a promoção da guerra”.

P. D. Ouspensky (1878-1947), filósofo-matemático soviético, em seu livro Conversas com o diabo, com seu conto “O inventor” – cujo narrador é o diabo – nos propõe uma reflexão sobre o que poderemos considerar um bem ou um mal ao contar a estória de um homem, personagem do diabo que, com grandes dificuldades financeiras, é obrigado a separar-se de sua amada esposa, a qual vai residir com a mãe numa pequena cidade do interior da França.

Durante um ano inteiro o inventor procura um trabalho digno à providência de seu sustento e de sua esposa pelas ruas de Paris, sem resultado.

Desesperado, profundamente deprimido, ele entra numa loja de armas de fogo para adquirir uma a dar cabo da própria vida. Durante a compra, ele pede alguns modelos para escolher aquele que o libertará de seu infortúnio quando, de repente, ele tem uma inspiração à realização de um novo invento. Desiste de matar-se, volta para casa e trabalha durante semanas à efetivação daquilo que chamará de “metralhadora”, uma arma de fogo até então desconhecida.

Depois de dias e noites de cálculos ele finalmente apresenta seu projeto a um conhecido empresário, o qual investe milhões de francos a obtenção de sua patente e em sua produção industrial.

Num mundo desumanamente violento, as vendas da metralhadora são um sucesso. Para a satisfação dos investidores, centenas e milhares de novos conflitos se desenvolvem ao redor do mundo, entre latrocínios, seqüestros, assaltos, ataques terroristas e guerras. Milhões, entre homens, mulheres e crianças, morrem ao redor do mundo vítimas da eficiência das metralhadoras, enquanto seu inventor enriquece cada vez mais, tendo já sua feliz companheira ao seu lado, com quem constrói seu luxuoso império.

Até aqui o leitor do conto de Ouspensky não tem dúvidas de que a trajetória do personagem do diabo o levou a praticar somente o que, inequivocamente, reconheceremos como “o mal”. Mas aí o tinhoso, munido da astúcia reflexiva que lhe é peculiar, adverte ao seu ouvinte que, com os bilhões arrecadados, seu personagem também começara a promover a construção de inúmeros hospitais, creches, escolas, asilos para velhos e outras tantas instituições de auxílio aos milhares de desvalidos espalhados pelo mundo (muitos provocados por sua metralhadora). Enquanto, por um lado, com sua invenção, ele contribui para o sofrimento e a morte de milhões, por outro sua invenção o favoreceu esbanjar exemplos do mais autêntico altruísmo, quando ajuda muitos outros milhares de pessoas a obtenção de melhores qualidades de vida e, hoje, de morte.

No fim, o diabo instiga o leitor a determinar se seu personagem realizou inequivocamente aquilo que reconhecemos um mal ou se, ao contrário, todo o mal produzido por ele não foi senão um meio para a realização de muitos e muitos significativos bens – tipo de raciocínio fundamento de um nosso velho ditado popular, o qual reza que “todo mal trás um bem”.

Com os contos de seu livro Conversas com o diabo, Ouspensky não considera a possibilidade real da existência dos demônios, eximindo-os mesmo de toda influência e responsabilidade pelos males existentes no mundo ao longo dos séculos, atribuindo-nos (e apenas a nós, ditos “humanos”) a total responsabilidade por nefastas ações.

Não digo que o referendo do próximo dia 23 de outubro não seja necessário. Particularmente, não vejo razão para votar “sim” ou “não”, especificamente, por compreender, como muitos, que há razões de sobra para a proibição da comercialização de armas de fogo, tanto quanto há razões para a sua continuidade (embora provavelmente a opção pelo “sim” seja, no mínimo, um primeiro passo para a construção de um país menos violento).

Muitos sabem que o caso do personagem do diabo no conto “O inventor” não está limitado, como gostaríamos, ao âmbito da ficção. É provável que algum industrial construtor de armamentos ao redor do mundo, no começo de sua vida profissional, provocaram uma desavença em família somente para venderem bons revólveres – como disse o personagem bandido Ramírez em meu livro A última história de Batman. O presidente norte-americano George W. Bush, sob a pressão comercial de quem (quase) todo o mundo se queda submisso, foi eleito graças ao dinheiro de seus compatriotas donos de indústrias de armamentos, os quais, hoje, exigem dele a promoção de conflitos, de preferência grandes, justificados “em nome de Deus” – de quem presidentes norte-americanos se julgam “legítimos representantes” – ao lucrativo movimento de seus negócios bélicos.

Embora o referendo do próximo dia 23 de outubro esteja limitado ao território brasileiro, gostaria que tal campanha abrangesse também o resto do mundo; não apenas para o prejuízo dos pequenos comerciantes de armas do Brasil, que aqui ganham a vida em detrimento de estarem contribuindo para a efetivação de matanças, mas para o justo e necessário prejuízo daqueles grandes industriais da Morte que desumanamente trabalham à promoção do definitivo holocausto – quando, provavelmente, não apenas estaremos dando adeus a todas as armas, mas também a possibilidade da continuidade de vidas sobre o planeta Terra.

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OBS: O referendo teve como resultado a maioria dos votos a favor da comercialização de armas no Brasil.