Reflexões sobre a categoria preconceito

Reflexões sobre a categoria preconceito

Quando falamos em preconceito logo pensamos em prejulgamentos ou pré-juízos. Ou seja, é a idéia preconcebida, anterior a um trabalho de concepção ou conceitualização realizado pelo pensamento (CHAUI, 1997). Mas, o preconceito não se limita apenas a uma idéia, uma vez que implica em um comportamento ou em uma atitude preconceituosa.

Chauí (1997, p. 116) faz uma abordagem dos preconceitos a partir da compreensão do senso comum que segundo ela é:

Um conjunto de crenças, valores, saberes e atitudes que julgamos naturais porque, transmitidos de geração a geração, sem questionamentos, nos dizem como são e o que valem as coisas e os seres humanos, como devemos avaliá-los e julgá-los. O senso comum é a realidade como transparência: nele tudo está explicado e em seu devido lugar.

Da assertiva acima compreendemos que o senso comum é um saber já dado e estabelecido como verdadeiro, não permite questionamentos, julga e avalia, mas ele próprio (o senso comum) não se permite ser julgado, avaliado e questionado. O senso comum trabalha com uma realidade já construída, já dada. Para ele, a realidade é imutável. Não consegue ver, por conseguinte, que a realidade muda, que ela é histórico-construída.

Chauí (1997, p.116-117) elenca seis características do senso comum, são elas:

1. subjetivismo: exprime sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando com as condições em que vivem, mas tomadas como se fossem universais, isto é, verdadeiras em todos os tempos lugares;

2. ajuizador: coisas, pessoas, situações são imediatamente avaliados e julgados em conformidade com o modo que cada um as percebe ou como o grupo ou a classe social as percebe;

3. heterogêneo: diferencia coisas, fatos e pessoas por percebê-los como diversos entre si (por exemplo, julgamos diferente um corpo que cai e uma pluma que flutua no ar), mas sem indagar se são realmente diferentes ou se é apenas a aparência que os diferencia;

4. individualizador: isto é, cada coisa, fato ou pessoa aparece como algo isolado e autônomo, como se não tivesse história, passado, um contexto no qual faz sentido. Por isso, cada juízo do senso comum é sempre um absoluto: “é isto”, “é assim”;

5. generalizador: como conseqüência da maneira como separa e junta coisas, fatos, pessoas, tende a reunir numa só idéia ou numa única opinião coisas, pessoas e fatos julgados semelhantes, sem indagar se a semelhança não seria aparente. Assim, diferencia sem indagar sobre a diferença e reúne sem indagar sobre a semelhança;

6. causalista: para organizar o que separou ou o que reuniu, tende a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas, as pessoas ou os fatos - aqui os provérbios são a melhor expressão, pois neles aparece justamente a noção de causalidade: onde há fumaça há fogo, quem tudo quer tudo perde, dize-me com quem andas e te direi quem és, quem sai na chuva é para se molhar. (grifo da autora).

O senso comum ao se cristalizar como modo de pensar e de sentir de uma sociedade, forma o que chamamos sistema de preconceitos (CHAUI, 1997). Entendemos, então, que os preconceitos ratificam o senso comum e são funcionais a ordem social burguesa, uma vez que dão legitimidade à discriminação. Ou seja, os preconceitos são sistemas associados ao poder. Na nossa sociedade (que é capitalista), os preconceitos têm um caráter de classe. Sendo assim, o preconceito nos importa, na medida que produz efeitos na vida das pessoas, impondo sofrimentos e vários outros dissabores e, principalmente, por contribuir para a reprodução da desigualdade social.

Um dos aspectos mais importantes dos preconceitos é que eles criam os perversos estereótipos (modelos gerais de coisas, fatos e pessoas) e através destes modelos passam a julgar sem um conhecimento prévio dessas coisas, fatos e pessoas. Os estereótipos, porém, não são modelos teóricos, pois suas formulações se dão no campo do senso comum, ou seja, eles nada mais são do que sentimentos como medo, angústia e insegurança (diante do desconhecido) que transformados em idéias passam a vigorar como modelos gerais de julgamento (CHAUI , 1997).

Outra característica marcante dos preconceitos é a contraditoriedade; (CHAUI, 1997, p.118) nos afirma que:

O preconceito é intrinsecamente contraditório: ama o velho e deseja o novo, confia nas aparências mas teme que tudo o que reluz não seja ouro, elogia a honestidade mas inveja a riqueza, teme a sexualidade mas deseja a pornografia, afirma a igualdade entre os humanos mas é racista e sexista, desconfia das artes mas não cessa de consumi-las, desconfia da política mas não cessa de repeti-la.

Outro ponto importante a respeito dos preconceitos é a propensão a reduzir o desconhecido ao já conhecido e indubitável. Os preconceitos são obstáculos ao conhecimento e a transformação, pois se fundam na ignorância e têm como traço marcante o conservadorismo (CHAUI,1997).

Heller (1985, p. 43, destaque do autor) faz uma análise dos preconceitos a partir da esfera da cotidianidade, afirma ela que:

O preconceito é a categoria do pensamento e do comportamento cotidianos. [...] é o pensamento cotidiano fixado na experiência, empírico e, ao mesmo tempo ultrageneralizador. Quando falamos aqui em “pensamento”, não queremos nos referir a teoria. O pensamento cotidiano implica também em comportamento.

É importante salientarmos que existem duas maneiras de chegarmos à ultrageneralização (que marca o pensamento e o comportamento cotidianos):

Por um lado, assumimos estereótipos, analogias e esquemas já elaborados; por outro, eles nos são “impingidos” pelo meio em que crescemos e pode-se passar muito tempo até percebermos com atitude crítica esses esquemas recebidos, se é que chega a produzir-se uma tal atitude. (HELLER, 1985, p.44, destaque do autor).

A ultrageneralização não pode ser evitada na esfera da cotidianidade, uma vez que nem toda ação humana tem condição de ser fundada em conceitos científicos e isso acontece porque a vida cotidiana tem um ritmo acelerado, sendo marcada pela unidade imediata entre o pensamento e a ação. “Toda ultrageneralização é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamentos: provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito processo da prática.” (HELLER, 1985, p.44).

Os juízos provisórios, justamente pelo caráter imediatista devem ser refletidos teórica e criticamente, sendo refutados pela ação prática. Sendo assim, nem todo juízo provisório é preconceito. Segundo Barroco (2005), um juízo provisório só se torna preconceito quando mesmo refutado pela teoria e pela prática, continua a fundamentar o pensamento e as ações.

Na vida cotidiana, o que nos move é o afeto. Este, por sua vez, se divide em dois: a confiança e a fé. A fé nasce da particularidade do indivíduo e tem por função satisfazer as necessidades particulares desse indivíduo. Ela faz parte da singularidade, jamais conseguindo atingir a genericidade. Heller (1985, p.48) aponta diferenças entre a confiança e a fé:

Toda confiança se apóia no saber. Na esfera cotidiana, isso significa que toda confiança regularmente refutada pelo pensamento e pela experiência termina por desaparecer. Em troca, a fé está em contradição com o saber, ou seja, resiste sem abalos –como vimos- ao pensamento e a experiência que a controlam.

A estrita relação entre os preconceitos e a fé fica evidente quando lemos que “os objetos e conteúdos de nossos preconceitos podem ser de natureza plenamente universal [...] em troca, as motivações e as necessidades que alimentam nossa fé e, com ela, nosso preconceito satisfazem sempre nossa própria particularidade individual” (HELLER, 1985, p.42).

Ainda segundo Heller (1985) a crença nos preconceitos tem um caráter de comodidade, na medida em que nos protege de conflitos, embates e serve para confirmar nossas ações anteriores. Neste contexto, o afeto que move o preconceito é a fé: uma atitude dogmática e cristalizada, cujo fundamento é a irracionalidade, a intolerância e a crença em algo que é exterior ao homem. Na atitude moral preconceituosa, os sentimentos que funcionam como categorias orientadoras de valor são o amor e o ódio: [...] “ódio não se dirige tão somente contra aquilo em que não temos fé, mas também contra as pessoas que não crêem no mesmo que nós. A intolerância emocional, portanto, é uma conseqüência necessária da fé” (HELLER, 1985, p. 49).

Na estrutura da vida cotidiana, o que prevalece como verdadeiro se relaciona com o critério de utilidade. Ou seja, tudo que é útil para legitimar os interesses dominantes de determinada classe social é tido como correto (mesmo não sendo a verdade). Nesta medida, a atitude de fé com seus valores morais dogmáticos e fundamentalistas contribui para a reprodução dos interesses dominantes, uma vez que a fé ao apreender esses interesses como “dogmas”, não permite nem o questionamento e nem a crítica de tais interesses. Assim:

[...] o preconceito é uma forma de reprodução do conformismo que impede os indivíduos sociais de assumirem uma atitude crítica diante dos conflitos, assim como uma forma de discriminação, tendo em vista a não aceitação do que não se adequa aos padrões de comportamento estereotipados como “corretos”. (BARROCO, 2005, p. 47, destaque do autor).

O preconceito tem importância para determinada ordem social, na medida em que funciona como instrumento de consolidação e manutenção da estabilidade e da coesão dada por esta mesma ordem. Mas, [...] “o sistema de preconceitos não é imprescindível a qualquer coesão, mas apenas à coesão ameaçada internamente pelos conflitos entre as classes” (HELLER, 1985, p. 54).

Quanto à produção dos preconceitos, a maioria deles é produtos das classes dominantes. Isso por que: [...] “as classes dominantes desejam manter a coesão de uma estrutura social que lhes beneficia e mobilizar em seu favor inclusive os homens que representam interesses diversos (e até mesmo, em alguns casos, as classes e camadas antagônicas)” (HELLER, 1985, p. 54).

O preconceito se transforma em moralismo quando todas as atividades e ações do cotidiano são julgadas imediatamente a partir da moral (BARROCO, 2005). Mas, o moralismo, por sua vez, é uma forma deturpada da moral, uma vez que não implica na objetivação de uma consciência crítica, mas sim na objetivação de uma consciência corrompida pelo subjetivismo e individualismo do senso comum.

Tendo em vista que a intolerância e o dogmatismo negam a liberdade de escolhas perante a vida, vemos o preconceito como moralmente negativo, uma vez que: “[...] todo preconceito impede a autonomia do homem, ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e, conseqüentemente, estreitar a margem real de alternativa do indivíduo” (HELLER, 1985, p.59).

Diante do exposto explicitamos a necessidade de apreendermos as variadas formas de preconceito que fazem parte de nosso cotidiano buscando, através de estudos e teorias trabalhar no sentido da desconstrução das idéias e comportamentos preconceituosos, tendo em vista que [...] só poderemos nos libertar dos preconceitos se assumirmos o risco do erro e se abandonarmos juntamente com a “infalibilidade” sem riscos - a não menos tranqüila carência de individualidade (HELLER, 1985, p.63).

REFERÊNCIAS

BARROCO, Maria Lucia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

CHAUÍ, Marilena. Senso comum e transparência. In: LERNER, Júlio. (Ed.). O preconceito. São Paulo: Imesp, 1996/1997.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1985.

SOARES, Ana Cristina Nassif. Mulheres chefes de famílias: narrativa e percurso ideológico. Franca: FHDSS/Unesp, 2002.

Marcos Welber
Enviado por Marcos Welber em 28/04/2010
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