Márcia Cabrita: Apologia à Realidade

Uma das prerrogativas dos autores de livro de autoajuda e ministrantes de palestras motivacionais é passar a ideia de que o impossível é possível. Essa tarefa, em si e por si, já é impossível, mas os envolvidos no trabalho não desistem nunca. Nem devem desistir. Afinal, por procedimentos tortos, acabam trabalhando certo. Em que pesem conceitos psicológicos e sociológicos no assunto, convém olhar para o outro lado da moeda, aquele lado que mostra o direito de cada um ser como realmente é e a incapacidade de todos de viver fora de suas próprias fundamentações.

Convivo no mundo corporativo há muito tempo, anos bastantes para ter observado todos os lados da moeda, inclusive o terceiro. Tenho visto palestrantes motivacionais teatralizando suas performances de forma tal que, aos assistentes, tudo parece possível. A partir de então, você pode ser o dono do mundo – literalmente –; basta não desistir nunca, confiar sempre, buscar seus sonhos ininterruptamente e desprezar tudo o que significa falta de empenho.

È quase possível notar autores de livros de autoajuda digitar avidamente com a língua de fora, olhos atentos à tela, coração disparado, dedos ágeis, em busca de mercado e de leitores. Em suas páginas, a realidade é toda manipulável, o tempo é todo controlável, as situações são todas assimiláveis. Tudo o que você precisa fazer é não desistir nunca, confiar sempre, buscar seus sonhos ininterruptamente e desprezar tudo o que significa falta de empenho.

Tanto para palestrantes como para autores, você só não chega lá se não quiser, pois querer é poder, a esperança é a última que morre, a persistência é matéria-prima dos sonhos, a motivação é a estrada para vitória. Tomam suas próprias experiências como caminho para o sucesso e incutem na cabeça de seus leitores que elas lhes servirão de base para seus próprios sucessos e, caso não cheguem ao sucesso, o problema será certamente a falta de empenho e de sonhos.

É necessário, entretanto, que se veja o outro lado. As pessoas não são iguais, obviamente; ou seja, a experiência de João pode não servir para Pedro. (Falando-se em termos de física quântica – veja-se Efeito Borboleta – a tomada de atitude gera futuros incertos. Portanto, qualquer atitude que se toma em função de ideias não gera, necessariamente, o mesmo futuro que o vivido pelo autor do livro ou ministrante da palestra.) Por outro lado – e aqui se está foco deste texto – há pessoas inseguras, há pessoas inativas, há pessoas desconfiadas etc. Portanto, não se pode querer que as pessoas ajam segundo critérios de alguém em especial.

Num universo de cem leitores de livros de autoajuda ou de assistentes de palestras, um ou dois chegarão a algum resultado satisfatório. Aos outros, restará a frustração de não conseguir, restará a sensação de inutilidade, de impotência, de incapacidade, restará a imagem da incompetência no espelho.

Há alguns meses, a notícia da chacina em território mexicano, da qual foram vítimas mais de trinta pessoas, inundou a mídia do país porque havia dois jovens brasileiros dentre as vítimas. Em matéria na revista IstoÉ de duas semanas depois, soube-se que os dois jovens, de Governador Valadares (MG), mantinham o sonho tupiniquim de chegar ao território americano havia já muitos anos. Tudo fizeram por seus sonhos, jamais se deixaram levar pelos pensamentos pequenos de amigos que tentavam mostrar a eles a realidade, acordavam com a viagem na cabeça e dormiam com ela em suas órbitas mentais. Ou seja: se empenharam ao máximo.

E morreram. Morreram porque alguém se lembrou de lhes dizer que não deveriam desistir nunca, mas se esqueceu de comentar que precisavam manter os pés no chão. Este texto compõe um movimento iniciado há alguns anos por alguns palestrantes instrucionais (não motivacionais), eu dentre eles, cansados de ver grassar no mercado livros cujos títulos, por si, já enganam: Seja Vencedor; A Vitória É Sua; Como Conquistar um Futuro Melhor etc. etc. etc. que, nas entrelinhas, conspiram para que os cérebros de incautos estejam cada vez mais manipuláveis.

De maneira indireta, a atriz Márcia Cabrita viveu um período no calvário dos dedos apontados para si. Em sua entrevista na revista IstoÉ, ela fala de seu drama com o câncer, mas evidencia que o comportamento bem intencionado de amigos, que muitas vezes beira o desplante inconsciente, acaba surtindo efeito contrário. “Atribuir ao esforço e à motivação interna do doente a capacidade de cura também é uma crueldade”, diz ela.

Ao expor seu ponto de vista, Márcia Cabrita presta um grande apoio às pessoas que compõem o 99,99% do grupo de leitores de autoajuda que não conseguem chegar lá após a leitura. Mais que isso, a atriz mostra que não basta ter boas intenções, como é o caso da maioria dos autores desse tipo de literatura: é preciso ter respeito pelo ser humano que todos buscamos ser.

Alguém poderá dizer: mas eu li tal livro e me fez muito bem. Fica a pergunta: Fez mesmo?