A Bactéria Controversa

“Imagina-se uma montanha do tamanho de um prédio de quinhentos andares; imagina-se que um pássaro afie seu bico nessa montanha a cada quinhentos anos. Quando esta montanha não for maior que um grão de areia por causa da fricção do bico em sua rocha, ter-se-á passado um segundo da eternidade.”

(Lenda tibetana)

A agência espacial americana, a Nasa, levou ao mundo nesta semana uma notícia que certamente provocou comichões de surpresa nos escritores de ficção científica e comichões de alerta nas almas dos senhores líderes religiosos por este mesmo mundo afora. Estranhamente, tanto um grupo como outro tem o mesmo motivo para tais comichões: perda de suas fontes de inspiração.

Os cientistas do órgão americano extraíram um dos seis elementos químicos, o fósforo, que fundamentam o conceito de vida como esta era conhecida (até agora). Isto significa que a comunidade de pensadores biocientíficos não concebia a vida (até agora) sem esses elementos, argumentando que o processo vital não poderia existir em caso de ausência ou de oxigênio ou de hidrogênio ou de carbono ou nitrogênio ou enxofre ou de fósforo. Por curiosidade ou para provar suas teses, substituíram este último pelo elemento químico arsênio na composição de uma bactéria, elemento cuja presença é – ou era (até agora) – considerada letal para qualquer ser vivo na face da terra. Surpreendentemente, a bactéria se reproduziu facilmente nas águas do Lago Mono, Califórnia, e prosseguiu em sua busca por autoexistência. O nome temporário do ser vivo é GFAJ-1.

Ao longo da história, tem-se visto uma infinidade de contraposições da ciência em relação à religião e em relação a si mesma. Muitos estudiosos descobriram que seus colegas de décadas anteriores estavam enganados em relação a algum pensamento científico. É conhecida a história de Copérnico, de Galileu, de Home, de outros tantos que precisaram voltar atrás em relação a seus estudos sobre algum fundamento científico e enaltecer estudos de colegas que procuravam contradizer com provas.

Como via de regra ocorre com a maioria das descobertas de grande importância quando estas são postas a conhecer, a GFAJ-1 não significa muita coisa - sem trocadilho com a questão do tamanho microbiológico da coisa. Contudo, não é de todo improvável que esteja sendo vislumbrado agora – fins de 2010 – um prisma diferenciado do usado nos últimos milênios pelo qual se vê o fenômeno vida. Diferenciado tanto daqueles imaginados por ficcionistas quanto daqueles impostos por religiosos. Lubsang Rampa e Lutero que o digam em seus túmulos.

Até agora, a vida precisou de autorizações especiais para existir, que vinham ou de um ser absoluta e estranhamente superior ou de acasos esporádicos de personagens alienígenas de livros e cinemas. Em qualquer dos casos, a vida tem sido produto de idiossincrasias de seres distantes, incapazes de se fazer compreender por parte de suas criaturas, mas impostos como criadores certos por pura falta de opção, baseados em mistérios que não devem jamais ser perscrutados sob pena de ser iniciada catástrofe mundial em represália à curiosidade.

Até pouco mais de dois milênios atrás, as expectativas espirituais humanas eram dirigidas a diversos seres – Netuno, Zeus, Afrodite, Baco etc -, a depender das necessidades situacionais. Esse teoplurarismo ainda persiste, se se contarem as seitas africanas que se espalharam pelo mundo ou as hinduístas no oriente. De certa maneira, a vida dependia dos humores daqueles deuses e ainda é objeto de brincadeira dos deuses orientais atuais.

A partir da ficção, instituída na literatura depois de instaurado o conceito de monoteísmo na filosofia religiosa, os representantes dos infernos também passaram a ter poderes sobre a vida, exceto sobre a vida dos mocinhos e mocinhas das peças ficcionais. Freddy Krueger, Drácula, O Oitavo Passageiro, os estranhos e diferentes vilões de Stefhen King etc. ocupam espaço no pódio dos detentores do poder de vida e morte.

Até que Jesus, o Cristo, surgisse no cenário filosófico do mundo, o papel de criadores ou inimigos da vida era destinado aos deuses gregos, romanos, mesopotâmios etc., formato que resistiu até a era pós-Idade Média nas civilizações asteca, maia e inca do norte da América do Sul. Depois de Cristo, como a bondade absoluta era e é característica de Deus Absoluto, a sociedade precisou de um representante da fealdade absoluta e criou a ideia do rei do inferno, Lúcifer. Em que pesem questões políticas no tema – qual seja, expressão de poder sobre a massa mal-informada – esses dois opostos continuam servindo às glórias de poucos locados em altas esferas da hierarquia não oficial da humanidade.

Para complicar um tanto mais, por volta da Idade Média, o esoterismo ganhou espaço nas necessidades da vida. Então, não apenas deuses ou satanases tinham predominância sobre a vida, mas os elementos invisíveis também. Foi assim que a saúde passou a depender de cristais, o humor passou a depender de cores, os relacionamentos passaram a depender de magias, as cartas começaram a ditar futuros, as simpatias a redesenhar controvérsias. Aquela hierarquia não oficial da humanidade ganhou novos representantes.

Ou seja, ao longo de sua existência, a vida e seu extremo oposto, a morte, sempre dependeram de causas externas, de um produtor absoluto, de um ente a cuja bondade se pudesse impor todas as expectativas de felicidade ou a cuja maldade se pudesse fundamentar todas as tristezas das desilusões. Neste contexto, o homem, representante máximo da vida, nunca teve exatamente domínio sobre sua existência.

Antes de simples e futilmente pretender contradição a muitas filosofias criadas na história do mundo, a ciência busca fundamento para fenômenos observáveis e a intuitivos, igualmente. Essa guerra secular tem provocado brigas intestinas em instituições, cisões monstruosas em religiões, desamores em individualidades, desilusões em detentores da fé. Não obstante tudo isso, a pergunta mais eminentemente desconfortável, mais profundamente exposta, mais intimamente levantada permanece sem resposta: o que é vida?

Ou permanecia. A bactéria da controvérsia é certamente o passo inicial da busca da possibilidade de que haja probabilidade de que talvez se consiga atingir o mínimo nível do máximo terreno da lógica na resposta. Ou seja, uma resposta plausível será obtida talvez em um milênio ou, com sorte, em alguns séculos. Até lá, o homem contemplará lenta alteração na maneira como entende a vida. E então, o paraíso poderá ser instaurado na Terra, pois já não haverá deuses para impor ao homem o comportamento que deveria ser intrínseco em seu dia a dia nem diabos para fazê-lo temer comportamento que há muito – desde que passou a observar o mundo exterior a si próprio – deveria estar extinto de seu dia a dia.

Isto é, homem viverá sem as muletas filosóficas que o trouxeram até esta civilização e passará a entender o futuro como produto único e exclusivo de suas próprias escolhas – escolhas conscientes, pois que estas escolhas serão motivo de análise única e exclusiva de sua consciência, não de seres ou conceitos desfundamentados de lógica. Ou, antes, fundamentos em ilógica.

Ao terminar este texto, uma observação provoca um comichão: até o momento, não se tem notícia de um dia a ciência ter sido contradita pela religião. Mas a História é repleta de pontos religiosos contrapostos pela ciência. Esta bactéria, queira-se ou não, representa a fusão dos dois conceitos, ainda que tal fusão se realize somente num futuro muito distante e, até então, surta mais brigas intestinas, mais cisões, mais desilusões.

A simples ideia de que a vida de insetos e pequenos animais não se origina do acúmulo temporário de lixo em um canto qualquer precisou de séculos para ser dissipada da comunidade “científica”, há alguns séculos – se bem que ainda há nichos atrasados na África que ache que somos criados das fezes de rato; a contra-argumentação à crítica ideia de que a Terra não era, e jamais fora, o centro do Universo extirpou a vida de muitos pensadores durante séculos antes de ser aceita como razoável. Certamente, a GFAJ-1 precisará de muito tempo para se desvencilhar da cadeia de reação dos que ainda imaginam que é possível manter a massa sob controle a partir da ignorância conceitual.

Mas já é um grande começo.