REGIÃO SERRANA DO RIO - FÉ QUE RECONSTRÓI

Depois da maior catástrofe natural das últimas décadas, moradores da região serrana do Rio buscam na fé cristã um novo alento para reconstruírem suas vidas

“Eu orei muito, e cavava cantando um hino de louvor a Deus”, conta o gerente de hotel Wellington Guimarães, que comoveu o país inteiro ao relatar a maneira heroica de como conseguiu salvar o pequeno Nicolas, de apenas sete meses, que permaneceu soterrado por mais de quinze horas – juntos, pai e filho sobreviveram a dois deslizamentos de terra ocasionados pelas fortes e intermitentes chuvas que devastaram a região serrana do Rio, no mês de janeiro. Em poucos dias, a geografia de uma das mais belas áreas verdes do Estado se modificou completamente, e a exuberância ecológica de antes cedeu lugar a um cenário de dor e destruição. Justamente por causa das chuvas, Wellington havia decidido passar a noite na casa da sogra, com a mulher e o filho. Todos dormiam no mesmo quarto quando o morro veio abaixo. “De repente tudo parou, foi coisa de segundos e nem deu tempo de gritar. A Renata e a Fátima – esposa e sogra, respectivamente – faleceram na hora; inclusive, uma perna minha estava meio presa nela”, relembra. “Nicolas chorava, mas eu não tinha como ficar perto dele por estar com as pernas presas. Então, comecei a gritar por socorro até que um rapaz ouviu e foi chamar o bombeiro.” Logo em seguida, um segundo monte de terra desabou sobre o que restava da casa, soterrando-os ainda mais e os homens que tentavam resgatá-los. Cavando, ele conseguiu chegar até Nicolas e, para manter sua boquinha molhada, juntava saliva na própria boca para, depois, passar ao filho. Ao perceber o barulho produzido pela equipe de resgate e um feixe de luz reluzir sobre a madeira, finalmente ambos foram salvos. “Ele saiu feliz. E, dentro da ambulância, estava conversando”, sorri o pai, um sorriso de celebração à vida. Mesmo tendo que carregar para sempre as cicatrizes de uma tragédia familiar, ele não deixa de agradecer a Deus. “O Senhor é bom em todas as coisas, e a gente sempre tira algo de positivo em tudo o que acontece. Para quem confia, esse é o mistério da fé”, resume.

O episódio aconteceu em Nova Friburgo, uma das principais cidades da região fluminense, mas também poderia ter sido em Teresópolis, Petrópolis, Sumidouro, São José do Vale do Rio Preto, enfim, em qualquer dos municípios atingidos por uma das maiores, senão a maior, catástrofe natural da história do país. Somados, os dados impressionam: de acordo com a Defesa Civil, até o fechamento dessa edição, o número de mortos na região ultrapassava 900 – quase metade em Nova Friburgo. Isso sem contar o “ainda” grande número de desaparecidos, mais de 400 conforme balanço elaborado pelo Programa de Identificação de Vítimas (PIV), divulgado pelo Ministério Público Estadual, que espera, dentro de um mês, fechar seu relatório e zerar a lista.

Diferente de filmes catástrofes produzidos aos montes pelo cinema norte-americano que sempre coloca o homem em conflito com a natureza, ali nada havia de ficção; pelo contrário, tratava-se de uma realidade brasileira, concreta, sem maquiagens e efeitos especiais, e com milhares de personagens também reais. Diante disso, uma comoção generalizada tomou conta do povo brasileiro que, durante semanas, acompanhou o difícil trabalho de resgate aos sobreviventes – algumas áreas ficaram totalmente isoladas – e acomodação dos milhares de desabrigados. “Foi algo totalmente fora do normal, vários deslizamentos de terra em lugares diferentes e numa mesma madrugada. Alguns bairros foram varridos do mapa, num cenário de horror, com as pessoas ‘perdidas’ nas ruas, gente chorando por todos os cantos, bombeiros, ambulância e helicópteros”, conta José Barbosa Junior, estudante de Teologia e membro da Primeira Igreja Batista em Teresópolis.

Conflitos de interesse e ajuda humanitária – Liberação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), e criação de uma espécie de benefício social no valor de R$ 500 a ser pago em 12 prestações a cerca de 7 mil famílias que perderam suas casas, são algumas das medidas tomadas pelos órgãos públicos em favor das vítimas das enchentes na região serrana. Soma-se a isso a ajuda internacional – o Banco Mundial, por exemplo, propôs-se a conceder um empréstimo de US$ 485 milhões ao governo carioca, dinheiro que deverá ser destinado às áreas de habitação e gerenciamento de desastres. A dúvida, no entanto, é se essa dinheirama toda, oriunda dos cofres públicos e organismos internacionais, será mesmo bem administrada e repassada a quem realmente necessita. “Ainda há uma suspeita de que o Poder Público esteja encobrindo o número de mortos para que as prefeituras continuem administrando as verbas destinadas às vítimas. Pois, quem visita os locais afetados como eu visitei pessoalmente, sabe que aquilo que o Brasil viu na televisão não chega a 10% do que, de fato, aconteceu”, acusa o jornalista Leandro Rufino Marques, membro da Igreja Missionária Evangélica Maranata, do Rio de Janeiro. A população de Teresópolis também ficou com um pé atrás com o prefeito, que é evangélico, depois de divergências desencadeadas entre a prefeitura e o voluntariado, justamente num momento em que sociedade mais precisada da união de esforços. De acordo com um grupo de voluntários, os entraves aconteceram depois que o prefeito passou a exigir autorização para a saída de carregamentos do galpão montado pela Cruz Vermelha, enquanto que a entidade tentava driblar certas burocracias, julgando-se preparada para realizar um trabalho mais direcionado. A prefeitura nega.

Brigas à parte, a maior ajuda veio mesmo do povo brasileiro que, sempre solidário com as causas dos menos favorecidos, mais uma vez ensinou ao mundo o verdadeiro significado da palavra “solidariedade”. Enquanto que caminhões e mais caminhões carregados de alimentos, roupas e mantimentos de higiene pessoal não paravam de chegar aos postos de redistribuição improvisados pelas prefeituras locais, dezenas de voluntários se juntavam às equipes oficiais de socorro; entre eles, muitos evangélicos também arregaçavam as mangas, demonstrando que tão importante quanto o alimento espiritual defendido nas igrejas são as questões de ordem mais práticas, como o compromisso social e a ajuda humanitária. “Desde o primeiro dia após a tragédia, nós nos empenhamos em socorrer o povo serrano, lançando mão de toda estrutura de nossa igreja, como transporte, funcionários, espaço para armazenamento e recursos financeiros”, enumera Leandro Marques. Integrante da Missões Urbanas, ministério focado em evangelização e que engloba inúmeras atividades socioculturais, ele só lamenta por as igrejas demonstrarem maior empenho evangelístico somente em situações mais trágicas. “Triste é verificar que é preciso uma catástrofe de dimensões escatológicas para que a igreja se volte de forma empenhada para aqueles que deveriam ser sempre seu maior alvo de interesse: os perdidos, a comunidade à volta, o indivíduo; preponderantemente o indivíduo em toda a sua complexidade e em todas as suas dificuldades”, ressalta.

O milagre da vida – Enquanto uns, indiretamente, defendem o proselitismo, outros preferem não agregar a causa evangelística à social. Especialmente em Teresópolis, onde mais se concentrou seu trabalho voluntariado, José Barbosa Junior não classificou como proselitista o papel das entidades evangélicas na ajuda aos necessitados. Segundo ele foi um trabalho de amor ao próximo, visando cuidar das pessoas sem a intenção clara de “ganhá-las” para a igreja. “Não sei bem o que foi abordado nos cultos pelo meu pastor, pois passei muitos domingos auxiliando e guiando voluntários. Só sei que muitas igrejas aqui serviram como abrigo para os desalojados, além de funcionarem como postos de arrecadação e distribuição de donativos. Visitei alguns desses abrigos e testemunhei o bom trabalho realizado”, atesta. Apesar de seu bairro, Barra do Imbuí, não ter sido atingido, a não ser por dois deslizamentos sem vítimas e o desabamento da casa de um diácono batista, o evangélico ainda traz na lembrança detalhes de histórias tristes e de superação, como a do Seu Joaci: “No terreno onde ele morava havia cinco casas, todas da mesma família. Somente uma ficou de pé e, como único meio de se salvarem, todos – inclusive um de seus irmãos, de pernas amputadas – tiveram que ficar no telhado, debaixo de água. O esforço para subirem o deficiente ao telhado, no escuro e sob fortes chuvas, foi enorme, mas lhe valeu a vida”, relata. Junior conta também que Seu Joel, filho de uma senhora de 90 anos, viu a mãe desaparecer ao ter parte da casa arrancada pela violência das pedras que rolavam num dos distritos da cidade. “Ele disse que o que mais lhe doía era não ter o corpo da mãe para enterrar”, continua, descrevendo-o como um senhor de mãos calejadas e pele marcada pelo sol, e que chorava feito uma criança. “No Natal, a mãe havia reunido os filhos e falado que o dia de sua morte se aproximava. Contudo, sabia que estava nas mãos de Deus e de Jesus Cristo, em quem acreditava desde a mocidade”, acrescenta. O que parecia uma “mensagem” de despedida acabou se confirmando algumas semanas mais tarde. Aquela foi a última vez que Seu Joel viu a mãe com vida. “Para mim o maior milagre são os vivos. Olhar para os filhos e a mulher todos os dias se tornou um verdadeiro milagre cotidiano”, conclui Leandro Marques.

Rio: um século marcado por enchentes e deslizamentos

Março de 1906

Em vinte e quatro horas choveu o equivalente a um mês inteiro, fazendo transbordar o Canal do Mangue – maior obra de saneamento construída na época do Império – e causando inundações em praticamente toda a capital. Houve também desmoronamentos com mortes nos morros de Santa Tereza, Santo Antônio e Gamboa.

Abril de 1924

Novamente o Canal do Mangue transborda, provocando inundação em diversos bairros, incluindo a Praça da Bandeira. Barracos desabaram no Morro São Carlos, causando mortes e deixando muitos feridos.

Janeiro de 1940

Chuvas causam alagamentos em quase toda a cidade, além de mortes por desabamentos no bairro de Santo Cristo.

Janeiro de 1942

Inundações, mortes e desabamentos no Morro do Salgueiro, deixando várias pessoas soterradas.

Janeiro de 1962

Temporal faz novamente o Canal do Mangue transbordar e alagar diversos pontos da cidade. No saldo, dezenas de mortes e centenas de desabrigados.

Janeiro de 1966

Enchentes e deslizamentos em vários pontos do Estado, incluindo a região serrana, fazem 250 mortos e deixam mais de 50 mil desabrigados.

Janeiro de 1967

Deslizamento no bairro das Laranjeiras faz mais de 200 vítimas fatais, e deixa centenas de feridos. Uma casa e dois edifícios são soterrados entre as ruas Belizário Távora e General Glicério. Além da capital, outras cidades do Estado são atingidas, deixando, entre feridos e desabrigados, mais de 25 mil pessoas.

Dezembro de 1982

Transbordamento do Rio Faria-Timbó causa inundações em várias ruas, além de deslizamentos e mortes no Morro Pau da Bandeira.

Março de 1983

Forte temporal durante a madrugada provoca desabamento de casas e mortes em Santa Tereza. Rios e canais em Jacarepaguá transbordam, deixando dezenas de desabrigados.

Fevereiro de 1987

Enchentes na região serrana – Petrópolis e Teresópolis –, e na capital resultam na morte de quase 300 pessoas e deixam 20 mil desabrigadas.

Fevereiro de 1988

Dia 1º

Enchentes em Petrópolis e na baixada fluminense. No saldo: 277 mortos e 2 mil desabrigados.

Dia 12

Uma semana de chuvas causa deslizamento no Morro Dona Marta, destruindo barracos, causando mortes e deixando centenas de desabrigados.

Dia 19

Enchente e deslizamentos no Rio de Janeiro fazem 289 mortos, além de centenas de feridos e milhares de desabrigados.

Janeiro de 1999

A capital e vários municípios da região serrana sofrem com as enchentes. Foram registradas 41 mortes, além de dezenas de feridos e centenas de famílias desabrigadas.

Janeiro de 2000

Enchente atinge as cidades de Petrópolis, Teresópolis, Casimiro de Abreu e Barra Mansa. No total: 22 mortes, e mais de uma centena de feridos.

Fevereiro de 2003

Novamente uma enchente atinge municípios da região serrana e da baixada fluminense, causando mortes e deixando milhares de desabrigados.

Janeiro de 2010

Encosta de terra na Praia do Bananal, na Ilha Grande, cede e deixa mais de 40 mortos – a maioria, turistas que passavam o reveillon em Angra dos Reis. Deslizamento também no Morro da Carioca, localizando nas proximidades do centro histórico da cidade, onde 11 pessoas morreram e centenas ficaram desabrigadas.

Janeiro de 2011

Diversos municípios da região serrana foram devastados pela pior de todas as catástrofes naturais registradas no Estado. Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis foram as cidades mais atingidas. Entre mortos e desaparecidos, o número deve passar de 1300, de acordo com a Defesa Civil; milhares de desabrigados começam a reconstruir suas casas e recomeçar suas vidas.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 147

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 22/03/2011
Reeditado em 12/03/2012
Código do texto: T2864973
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