LIBERTOS POR UMA CANETADA: um golpe de mestre

“Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!”

O que diria Castro Alves, se hoje estivesse aqui?

O trecho acima é do poema “Navio Negreiro”. Nele o poeta descreve o sofrimento e os abusos, os maus tratos que os negros sofreram, desde o transporte ao desembarque, ainda fala da exposição dos negros como mercadorias no mercado de escravos em solo brasileiro.

Castro Alves escreveu essas palavras há 142 anos, dezenove anos antes de a Princesa Isabel assinar a Lei Áurea o poeta já denunciava o horror aqui trazido pelos portugueses aos negros, e vinte anos antes do Golpe da República proclamada por generais. Mas o que diria hoje Castro Alves? E Zumbi de Palmares? Qual seria a sua reação ao ver que existe em pleno século XXI um movimento cobrando por justiça no país construído à custa de sangue e suor daqueles que penaram 400 anos nas mãos do brancos portugueses que tomaram conta da terra alheia, massacraram os nativos e por fim, saquearam o ouro e outras riquezas daqui?

Ainda existem aqueles ignorantes, que sem um conhecimento profundo dessa história murmuram: “Por que não tem o “dia da consciência branca”. Irrita-me todos os anos ter que ouvir isso, principalmente de pessoas que fizeram curso superiores, como já ouvi de um colega professor de Matemática: “Por que não tem dia de branco”?

A resposta que pude dar na hora foi: Você precisa conhecer mais a História e deixar um pouco a lógica dos números, precisa estudar mais para saber como funcionava a lógica da política colonial mercantilista e como funciona a lógica capitalista hoje e sob que bases está assentado o sistema que o Brasil importou de fora e que você ingenuamente ou por ignorância defende quando ministra as suas aulas, só assim, irá entender o que justifica a existência hoje do movimento de Consciência Negra no Brasil, e porque o dia 20 de novembro é tão importante.

O que diria o “Almirante Negro”, João Cândido que lutou contra a velha e ultrapassada Chibata usada para castigar os soldados da Marinha do Brasil há 101 anos, na Revolta da Chibata? Com certeza, poderia citar aqui todos aqueles que lutaram contra os abusos sofrido pelos negros nesse país, e ainda assim não entenderia o porque de existir tanta gente tapada alimentando o preconceito contra essa etnia no Brasil. O conceito racista, etnocêntrico permanece exalando o seu odorífero cheiro rançoso nas escolas, na sociedade, nas abordagens policiais pelas rodovias. Foi preciso sim, que um presidente entendesse que essa democracia em que vivemos, é tão falsa quanto aos seus defensores, por isso foi necessário criar uma política de inclusão do negro nas universidades conhecida e criticada por gente de mentalidade pobre e medíocre que não aceita a “Cota” para negros, e chegam à pachorra de evocar o tal “princípio da isonomia” para dizer que esse sistema de cotas é errado. Que isonomia? Isso nunca existiu nem para branco pobre e nem para negro, exceto, se este tiver algum dinheiro. O princípio da Isonomia é balela, principalmente em se tratando de que, quem avalia o negro ainda é alguém com uma caneta de ouro do outro lado do balcão. Poucos negros passam nas entrevistas para ingressar no mercado de trabalho. Pensa que é diferente nas universidades? Não, o estigma da escravidão ainda continua fazendo suas vítimas. Alguém já presenciou alguma mulher ou homem negro formado em psicologia ou recursos humanos entrevistando trabalhadores na hora do ingresso ao trabalho? O negro ainda é entrevistado por um branco, e a resposta é: aguarde em casa, posteriormente entraremos em contato. Até hoje o telefone não tocou para dizer: você foi aprovado e a vaga é tua!

Conversando com uma funcionária da Kalunga fiquei surpreso em olhar e não ver uma única moça negra nos caixas ou atendendo os clientes internamente, e sabe o que ela me disse? Que a Kalunga não admite negros como funcionários da loja. A isonomia é papo pra boi dormir, não existe na prática, apenas no papel. Então não vem me jogar ao rosto o princípio da isonomia que irá ouvir poucas e boas desse cidadão que escreve esse artigo.

Muitos lutaram contra a escravidão, mas o negro continua tendo que lutar contra os ranços desse passado ordinário. É preciso que sejam convocados todos os negros do país e, os brancos conscientes para fazer frente àqueles que por estupidez não compreendem o porquê das cotas nas universidades. Esses ignorantes, metidos a intelectuais mas de pouco conhecimento profundo, néscios e superficiais em suas análises precisam saber que o “mito da democracia racial” nunca garantiu aos negros o real acesso aos bens, serviços e tecnologia neste país. Quantos por cento de negros possuem registro em carteira? Quantos terminam os estudos? Quantos estão empregados? Quantos você percebe nos quadros de formaturas expostos nas paredes das escolas e universidades? Dá pra contar nos dedos. Quantos você conhece que são médicos, doutores e promotores e juízes? Pouquíssimos não são? Então tira essa bunda branca da poltrona e vá ajudar na luta contra o preconceito contra o negro, porque, se você ficar evocando um princípio que jamais existiu, só porque consta na Constituição, saiba meu amigo, que nada irá mudar. E não pense que porque é branco que não sofrerá com o preconceito, porque branco pobre, a única vantagem que leva sobre os irmãos de pele negra é mesmo a de ser branco e passar batido pela polícia, caso contrário, estamos no mesmo nível: brancos e negros são vítimas de preconceito, o negro duas vezes por ser negro e pobre e o branco por ser pobre apenas, mas ter a sorte de ter nascido branco. Quando vejo um branco pobre que nem eu falando besteiras a respeito do Dia da Consciência Negra e das Cotas nas universidades, penso: esse cara não vive no Brasil, deve viver em outro planeta, ou em outro mundo, não é possível tanta ignorância numa só pessoa. Mas o pior mesmo é quando pego um aluno negro com brincadeiras discriminatórias e preconceituosas, ai o professor de História que quer sair de dentro de mim, tem que ser controlado pra eu não falar besteiras. Isso é sério: certa vez tive que dizer a um aluno que ele deveria tomar vergonha na cara e olhar para si mesmo antes de discriminar alguém, ele estava utilizando termos homofóbicos, então disse a ele que ele deveria ser o primeiro a lutar contra qualquer tipo de preconceito, visto que é negro, não deveria brincar de forma a discriminar ninguém. É um dos piores alunos que já tive em 20 anos. Claro que um dia ele irá compreender a minha indignação, e quem sabe, despertar para ingressar na luta contra o preconceito e o racismo no Brasil. Engraçado, nem japonês, nem alemão, nem chinês ou outra etnia é vítima de racismo no Brasil, apenas os negros. Veja, não estou falando de preconceito de cor, mas de discriminação racial e étnica. O etnocentrismo é muito forte ainda contra os negros, mais que os estrangeiros que chegam aqui, e devemos analisar uma coisa: que o negro estava aqui há bem mais tempo que qualquer outro estrangeiro italiano, inglês, alemão, japonês ou chinês. Então por que o negro ainda sofre com esse tipo de discriminação? É inadmissível!

Precisamos ainda, de muitos marujos como João Cândido, e de muitos poetas como Castro Alves e também de muitos Zumbis para mostrar aos brasileiros que a História é feita de luta e não de conversinha fiada de uma meia dúzia de burguesinhos metidos a intelectuais que evocam princípios de igualdade que jamais existirão sem que alguém se uma e ponha a mão na massa para lutar contra as injustiças. Falar em igualdade como falaram os burgueses safados da Revolução Francesa é fácil, garanti-la a todas as pessoas é outros quinhentos. Não me façam pegar nojo com tais conversinhas medíocres e desprovidas de conhecimentos. Negros e brancos só são iguais nos quatro dias de carnaval, quando os brancos ricos ficam babando ao ver as nossas lindas mulatas sambando ao som dos tambores que já foram proibidos por eles no passado. Hoje dançam juntos, mas só nesses dias, depois os ricos voltam às suas luxuosas mansões e milhares de negros aos seus barracos que lembram as antigas senzalas das fazendas, antes da abolição. Essa é a realidade, o resto é mesmo fantasia!

Para concluir essa reflexão, vai ai uma linda letra de uma música.

PESADELO

(Paulo César Pinheiro / Maurício Tapajós)

Quando um muro separa, uma ponte une

Se a vingança encara, o remorso pune

Você vem me agarra, alguém vem me solta

Você vai na marra, ela um dia volta

E se a força é tua, ela um dia é nossa

Olha o muro, olha a ponte

Olha o dia de ontem chegando

Que medo você tem de nós

Olha aí…

Você corta um verso, eu escrevo outro

Você me prende vivo, eu escapo morto

De repente, olha eu de novo

Perturbando a paz, exigindo o troco

Vamos por aí, eu e o meu cachorro

Olha um verso, olha o outro

Olha o velho, olha o moço chegando

Que medo você tem de nós

Olha aí…

O muro caiu, olha a ponte

Da liberdade guardiã

O braço do Cristo-horizonte

Abraça o dia de amanhã

Olha aí…

Parece que o gênio dessa poesia e música se inspiração na luta de um povo guerreiro. Às vezes ao ler essa poesia, fico imaginando o guerreiro Zumbi dos Palmares, a sua luta, sua saga para libertar os irmãos oprimidos, e aquels senhores malditos apavorados vendo cada vez mais negros fugirem das senzalas para um paraíso chamado Palmares. Não havia opressão nem dor e nem lágrimas, havia danças, som de atabaques e música alegre, crianças brincando, mulheres dançando e dividindo a fartura daquilo que produziam coletivamente, quem não queria um lugar assim? Os senhores escravistas que vieram da Europa para explorar essa terra não queriam isso, os nossos antepassados portugueses relutaram em acabar com a pouca vergonha da a escravidão e o Brasil, carrega a sina de ser o último país da América a acabar com o sistema escravocrata, e ainda, para isso teve que indenizar os senhores por cada negro liberto. Que ironia: ao invés de indenizar os negros pelos 400 anos de escravidão, foram indenizados pelo governo imperial da época os senhores.

Até hoje há uma dívida enorme do Estado Brasileiro, independente do governo que passar pela República, para com os negros, uma dívida de 400 anos a acertar que nunca foi paga, um calote, dado por brancos no passado e endossado por todos aqueles que já passaram pelo governo federal e estadual até o exato momento que digito essas palavras. Os nossos parlamentares, (antigos senhores, empresários e fazendeiros de hoje), todos carregam essa dívida juntamente com a sociedade omissa que prefere evitar que essa história seja passada a limpo.

Por tudo isso, qualquer medida ou política social, que reverta em benefícios para os negros, ainda é pouco ou quase nada, diante do mal que fizeram aos nossos irmãos.

Para construir esse país sangue, suor e lágrimas foram derramados.

A riqueza dos atuais patrões, a riqueza desse do nosso país-gigante ainda se assenta sob as bases da escravidão.

Tijolo por tijolo, trilho por trilho o negro construiu esse país, e nada recebeu por isso, exceto uma canetada da caridosa Princesinha neta de um velho escravocrata denominado D. Pedro II.

Viva o Dia da Consciência Negra no Brasil!

Salve Zumbi, o grande guerreiro!