XAMANISMO NA CONTEMPORANEIDADE

FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO

Paulo Alberto Bossi

XAMANISMO NA CONTEMPORANEIDADE

São Paulo

2012

Introdução

Para melhor compreensão deste estudo, a abordagem do tema seguiu uma ordem em que primeiramente serão apresentados os conceitos de Xamanismo Tradicional e Xamã, e Movimento Nova Era para em seguida compreender com mais abrangência as motivações à adesão do xamanismo na contemporaneidade.

Assim, serão apresentadas contextualizações sobre o que se concebe acerca do Xamanismo Tradicional entre os estudos científicos clássicos para os praticantes do Neoxamanismo, já que é com essa abordagem que fundamentam suas filosofias. Seguindo de uma breve descrição sobre o processo histórico de desenvolvimento das idéias e filosofias do denominado Movimento Nova Era, visto como fonte de inspiração e propulsão para o revival do Xamanismo moderno, apresentando um apanhado das crenças gerais dos seguidores da Nova Era juntamente com relatos de um neoxamânico para que em seguida das contextualizações possamos analisar o Neoxamanismo.

Com os conhecimentos e concepções do entrevistado, dirigente do Espaço de Práticas e Estudos Xamânicos Mitakuye Oyasin, realizaremos um paralelo entre a teoria e a pratica dos neoxamânicos para compreender com mais abrangência quais são as motivações dos indivíduos modernos em resgatar os valores ancestrais e aplicá-los nos contexto contemporâneo.

Xamanismo Tradicional e Xamã

O Xamanismo Tradicional é conhecido como um conjunto de valores e práticas em determinadas comunidades, onde a fonte dos conhecimentos obtidos é materializada na figura de um Xamã, atribuindo a forças e entidades místicas, como espíritos ancestrais, animais guias e campos energéticos contatados através de toques ritualizados e hipnóticos de tambores, cantos, danças, sonhos lúcidos, uso de plantas específicas, atenção focalizada e outros recursos indutivos ao êxtase, visando a obtenção de informações que possam atender as mais variadas necessidades, principalmente à práxis curativa dos habitantes do grupo social a que pertence.

O termo "Xamã" descreve uma pessoa que atende às necessidades psicológicas, espirituais e médicas de uma comunidade. A execução de técnicas que capacitam xamãs de ambos os sexos, dependendo do ethos do grupo a que pertence, a terem acesso à informações não ordinariamente acessíveis são conhecidas como "Xamanismo". Para Michael Harner (1980, p. 14), os xamãs foram os primeiros terapeutas da humanidade. Tendo sido ativos, por um longo tempo, algumas pesquisas remontam a origem destas práticas ao período paleolítico em tribos caçadoras, coletoras e pescadoras, mas também são encontrados em sociedades nômades, pastoris, agrícolas e inclusive em sociedades tais como mongóis, africanas, andinas, egípcias, ou até mesmo chinesas.

Vale ressaltar também que para se tornar um Xamã existem determinados meios para se atingir esta qualidade, conforme abordado por Mircea Eliade em sua obra “O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase” (1951). A pessoa pode se transformar em um xamã por eleição do grupo devido às suas características pessoais, hereditariedade, ou então quando a pessoa nasce e prova ter aptidão à vocação. Em todos os casos, a pessoa passa por rituais de passagem ou iniciação que provarão sua aptidão, enfrentando e vencendo seus mais variados medos, sejam de insanidade, de solidão, de vícios ou doenças e até mesmo de orgulho, de vaidades, passando por mortes simbólicas em vida, ou seja, rituais de sofrimento, sacrifício pessoal ou autoflagelações, que consistem em comprovar a capacidade do indivíduo de exercer a função de um curador, auxiliador e visionário a serviço de seu grupo social.

Eliade caracteriza xamanismo como pratica de técnicas do êxtase, ou seja, técnicas específicas que produzem estados alterados de consciência, onde são criadas diferenças de percepção e de processos cerebrais, ocasionando as mais diversas manifestações e experiências, bem como déficit ou aumento das percepções, atenção e sentidos aguçados; assim o xamã pode, por meio destas, atingir níveis de cognição e consciência adequados para obter informações não disponíveis ordinariamente aos membros do grupo social que lhes concedeu status privilegiado e assim fazer a mediação entre o plano físico e o plano xamânico e espiritual, passando daquilo que Harner caracteriza como estado comum de consciência (ECC) para o que denominou de estado xamânico de consciência (EXC), “o xamã ajuda seus pacientes a transcenderem a noção normal e comum que têm acerca da realidade” (HARNER, 1980, pag. 13).

As práticas do xamanismo se centram nos ritmos cíclicos da natureza: como o nascimento, a morte e o renascimento; na complementaridade masculina e feminina; no contato pessoal individual com ambiente imediato da terra; com as forças da terra, do sol, da lua e das estrelas. E tem como base em suas práticas o respeito e reconhecimento da importância da natureza para a vida, necessidade de expandir a consciência a outros níveis de percepção e obter resposta em mundos paralelos. Suas práticas estabelecem contato com outros planos de consciência a fim de obter conhecimento, poder, equilíbrio, saúde, estimulando o bem-estar físico, psicológico e espiritual aos seus praticantes. O processo curativo adotado pela metodologia dos xamãs é análogo ao processo catártico (hipnótico) e ab-reativo (rememoração) conhecido na psicanálise e apontado por Lévi-Strauss no famoso texto "O Feiticeiro e sua Magia" (1974). “Os antigos métodos do xamanismo já foram testados pelo tempo. De fato, eles vêm sendo testados há um tempo imensuravelmente maior, por exemplo, que a psicanálise e inúmeras outras técnicas psicoterapêuticas” (HARNER, 1980, pag. 14)

O Xamanismo de acordo com a arqueologia é a mais antiga prática espiritual da humanidade (ALDHOUSE-GREEN, 2005), porém, não há origem histórica ou geográfica exata para seu surgimento, o que se tem é evidencias em pinturas rupestres; parece se localizar na França o exemplo mais remoto de arte rupestre (por volta de 30 mil anos) na caverna Chauvet .

A seguir exploraremos o crescente interesse nos homens urbanos, aqui compreendidos como membros pertencentes à moderna sociedade tecno-científica, racional e individualista, pelas antigas formas de relação com a natureza, com o espiritual e com o denominado “cosmos” entendido aqui como um sistema ideológico, uma cosmovisão em um universo de conhecimentos, valores e práticas que vão se difundindo em meios interinstitucionais e contraculturais, em busca de maneiras nas quais possam sentir melhor integração com seus semelhantes e com seu meio social, bem como sua saúde física, mental e espiritual.

Movimento Nova Era

Para que possamos trabalhar as questões envolvidas no surgimento do movimento Neoxamânico, foco deste trabalho, que será posteriormente analisado, é imprescindível contextualizar suas origens. Este fenômeno mostra-se entrelaçado em uma cadeia de processos que, tem início com a origem do movimento Nova Era.

O Movimento Nova Era originalmente está ligado ao nome da russa Helena Petrovna Blavatsky, naturalizada norte-americana, fundadora da Sociedade Teosófica em Nova Iorque no ano de 1875, dentro da qual se cultivou o movimento da Nova Era, tendo a meta inicial de guardá-lo em segredo por durante cem anos (BLAVATSKY, 1888). Durante este período, com a morte de Blavatsky, Annie Wood Besant, conhecida por seu ativismo de cunho feminista, sucedeu em 1908 a presidência da Sociedade Teosófica até ser sucedida, também após sua morte, pela inglesa Alice Bailey que logo foi reconhecida como suma-sacerdotisa da Nova Era, autora de livros esotéricos e fundadora da “Escola Arcana” e do “Movimento da boa vontade” (World Goodwill), visando a “Nova Ordem Mundial” que seria composta por uma série de valores onde as relações entre a natureza e a sociedade, economia e ciência deveriam ser transformadas em uma unidade total, que compreendesse Deus e o mundo, espírito e a matéria, homem e natureza, corpo e alma, como interdependentes em uma cadeia de relações que permanecem harmoniosamente entrelaçadas, um Holismo. Tal movimento compreende que o universo se rege automaticamente por Causa e Efeito.

A Sociedade Teosófica de Blavatsky inspirou-se em uma escola anterior a era cristã, onde Amônio Saccas, Fundador da Escola Neoplatônica de Alexandria e seus discípulos, conhecidos como “amantes da verdade”, tiveram o ideal de conciliar todas as seitas, de todos os povos e nações sob a concepção de uma fé, em que aspectos comuns entre diversos ensinamentos religiosos poderiam coexistir harmoniosamente (BLAVATSKY, 1889).

A Teosofia é um conhecimento sobre o divino, onde cada pensador, filósofo ou fundador de escola religiosa ou filosófica, seita, ou doutrina é um teosofista.

A escola teosófica de Blavatsky teve papel central na promoção das tradições esotéricas orientais e ancestrais indígenas no ocidente, possibilitando o surgimento de inúmeras filosofias e seitas alternativas ao catolicismo tradicional, como o caso do neoxamanismo, rompendo com as antigas explicações, preceitos e dogmas mantidos ao longo da história.

 Crenças New Agers

No Ano de 2011 foram realizadas na cidade de São Paulo visitas a espaços holísticos e xamânicos, visando indicações bibliográficas e melhor conhecimento sobre os fundamentos básicos de suas teorias e filosofias. O histórico das visitas realizadas incluiu duas palestras na Associação Gnóstica de Estudos Antropológicos, Culturais e Científicos (AGEAC) no bairro do Jabaquara em São Paulo nos dias 9 e 16 de março; bem como uma ida à Loja Teosófica no bairro de Santana ao dia 26 de junho; também foram realizadas algumas idas ao longo do ano em encontros neoxamânicos do Espaço de Práticas e Estudos Xamânicos Mitakuye Oyasin e workshops em três feiras destinadas ao público do movimento Nova Era, a Feira Holística Anjos da Luz em 11 de junho na Associação Bunkyo, Expo Alto Astral em 9 de setembro no Palácio das Convenções do Anhembi, incluindo também a Mystic Fair em 8 de outubro na Universidade Cruzeiro do Sul – Unidade Anália Franco. Nestas visitas, procurou-se extrair informações de modo informal dos adeptos, palestrantes e dirigentes, pois nas tentativas de entrevista diretamente nos espaços que freqüentam notou-se que poucos se sentiam à vontade em dar suas próprias opiniões, apresentando em seus discursos certos receios de represálias e contrapontos por parte dos colegas. Assim, foram condensadas as concepções gerais a respeito de suas crenças à partir de anotações em caderno de campo e de uma entrevista com o dirigente do Espaço de Práticas e Estudos Xamânicos Mitakuye Oyasin Leandro (Bane Dua Bake).

Herdando direta ou indiretamente a concepção teosófica acerca de uma coexistência harmônica entre as mais variadas crenças, os adeptos do movimento Nova Era, conhecidos como "New Agers" partilham de algumas crenças em comum com características que acabam por atingir uma simbiose holística entre pontos específicos de diferentes seguimentos religiosos, transformando-os em uma única e universalista corrente de pensamento, afirmando seu potencial aglutinador.

As crenças dos adeptos do movimento Nova Era, por linhas gerais, são bem semelhantes em essência, tendo em base de sua filosofia holística a concepção de que o universo e todas as coisas que o compõem, são interligadas e tem significação espiritual. Neste universo, há vida em diferentes formas e dimensões e ela nunca acaba, tratando-se de uma concepção de que a vida é apenas um processo, não concebem a idéia de morte como o fim e sim, como uma passagem para outra vida em uma outra forma ou dimensão.

A vida é dotada de um propósito, uma missão, ou uma lição, que o indivíduo tem que realizar, ou aprender, e a mais importante lição para aprender ao longo da vida é despertar um sentimento de amor, caracterizado por alguns como um amor incondicional.

Compreendem a ciência e a espiritualidade como campos harmonizáveis, expondo que as mais recentes descobertas da ciência, entendidas sob o prisma de sua filosofia da Nova Era apontam para resultados onde os princípios podem ser explicados com fundamentos espirituais. Compreendem que a capacidade de ser guiado divinamente com a intuição, é melhor para a vida pessoal do indivíduo do que a racionalidade, que tende a aprisionar o próprio espírito com a ilusão da matéria, estressando e desarmonizando-o com o seu propósito inicial da vida.

A “Matéria” para os adeptos corresponde à dimensão tridimensional, sendo composta pelas noções de altura, largura e profundidade, criando um complexo que denominam de ilusão, devemos ter em mente que para os holistas da Nova Era o propósito maior a ser levado em consideração é sempre o espiritual, por isso que a matéria é compreendida como uma ilusão, pois tende a distrair a atenção do indivíduo no cumprimento de sua meta original, missão ou aprendizado.

Quando tal missão ou aprendizado não é realizado ao período de uma vida, o indivíduo faz a passagem para outra vida onde terá possivelmente uma nova encarnação (vida material) para que possa assim realizar os objetivos necessários para sua evolução.

Quando consegue através de varias encarnações cumprir todas as suas missões, quitar todas as suas dívidas geradas com seus erros durante tais existências, e aprender todas as lições que lhe são necessárias, acontece o que chamam de extinção do Karma , que é obtida com um nível espiritual superior, livrando o indivíduo do Samsara , que é conhecido pelos hindus e algumas religiões orientais como roda das encarnações, que nada mais é do que o processo anteriormente mencionado de morte e renascimento.

O Neo-xamanismo

Em tom harmônico com as crenças new agers e sendo influenciado em boa parte por essa concepção espiritualista, o “Movimento Neoxamânico” emerge em meio a um processo histórico, cujo ponto de partida esteve na década de 1960; neste período ocorreram vários fatores históricos importantes como o início dos movimentos ecológicos e ambientalistas; um boom de criatividade na música, artes, moda e literatura; o movimento feminista; a revolução sexual; o movimento de direitos civis inspirado por Martin Luther King e o movimento contra a guerra no Vietnã, entre outros.

Durante muito tempo, apenas o mundo acadêmico tinha algum conhecimento sobre os xamãs, mas à partir da década de sessenta a prática xamânica começou a ser conhecida como um caminho espiritual, popularizando-se.

A publicação de Mircea Eliade “O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase” – (1951) representou a tentativa pioneira de unificar várias fontes etnográficas para construir uma definição precisa do xamanismo tendo um papel importante na disseminação do termo “xamã” dentro e fora da antropologia. Já no bojo do movimento contracultural dos anos 60 junto aos ideais da Nova Era, vemos o início da valorização do “mundo indígena”, sendo publicado o primeiro livro de Carlos Castañeda “The teachings of Don Juan – a Yaqui way of knowledge” – (1968), obra na qual Castañeda narra suas experiências com o xamã yaqui Don Juan, divulgado para um público amplo a experiência de estados alterados de consciência e a possibilidade da percepção de outras realidades.

Em 1980, Michael Harner desenvolveu “um guia para manter a saúde e desenvolver o poder de curar” em sua obra “O Caminho do Xamã”, introduzindo aos leitores a possibilidade de que qualquer pessoa poderia se tornar um xamã caso fossem executados determinados rituais e fossem obtidos determinados resultados e experiências; método esse que permitiu aos ocidentais a experiência dos passos básicos de transe xamânico.

Quanto à emergência do neoxamanismo no Brasil, houveram outros fatores que proporcionaram juntamente com todo o arcabouço teórico e com as obras publicadas internacionalmente com a expansão do movimento Nova Era e do movimento neoxamânico, uma ampla divulgação e popularização da ritualística indígena à favor do bem-estar físico, mental e espiritual dos indivíduos da sociedade moderna. Tal emergência ocorreu com mais intensidade nas décadas de 1980 e 1990, período inicial de expansão das religiões “ayahuasqueiras” brasileiras (Santo daime, União do vegetal e Barquinha) para além de seu tradicional uso regional, chegando às zonas urbanas e consequentemente tomando a atenção da mídia sobre a bebida psicoativa de uso ritual xamânico denominada como Ayahuasca , Vinho das Almas, Santo Daime ou Vegetal, tornando-se um ponto fulcral do neoxamanismo nacional.

Assim, a proposta neoxamânica pôde conquistar, juntamente com a filosofia do movimento Nova Era, uma parcela crescente da sociedade brasileira e como foco deste presente estudo salientamos especificamente a residente na cidade de São Paulo, tendo em sua maioria adeptos provenientes de localidades de classe média e média alta , Beatriz Labate observa que os psicoativos acabaram possuindo até uma dimensão de mercadoria e seu consumo atualmente envolve uma rede de serviços (LABATE, 2004), como também observado por Magnani estudando o Circuito Neo-esotérico da cidade.

“É interessante observar que o núcleo mais denso não cobre propriamente o centro da cidade, mas quatro bairros — Perdizes, Pinheiros (direção oeste), Jardins, Vila Mariana (direção sul) — caracterizados como de classe média e média alta, amplamente providos de serviços e equipamentos urbanos.” (MAGNANI, 1999, p. 23)

As características e os contornos tomados com a disseminação do estilo de vida, da busca por novas formas de espiritualidade e também de religiosidade ou tratamentos alternativos à medicina tradicional são caracterizados por Magnani com o conceito de Neoesoterísmo descrito como:

“Fenômeno das crenças, espaços de vivencia comumente denominados ora de místicos, ora de esotéricos, ou de Nova Era, e que incluem desde a oferta de livros de autoajuda, passando por uma ampla gama de oráculos e sistemas divinatórios, rituais ocultistas, práticas corporais de inspiração oriental, até terapias alternativas, juntamente com o consumo de produtos naturais.” (MAGNANI, 2005, p.220)

O xamanismo urbano como parte desse circuito neoesotérico aparece como uma construção cujo processo de elaboração entra elementos e traços tanto do referencial indígena como de outras vertentes, concebendo principalmente a busca do aprimoramento do “Eu” por meio das mais variadas técnicas que prometem conduzir ao autoconhecimento, ao desenvolvimento das potencialidades pessoais e à autocura , assumindo características particulares, não necessitando de um especialista (xamã), pois apoiado nos pressupostos da Nova Era dissemina aos praticantes que a cura e a experiência do sagrado são de âmbito individual, nos planos da vida interior, cabendo a cada um buscar sua própria harmonia interior.

“Seja como for, as pessoas que freqüentam os espaços dedicados a essas práticas, que assistem às palestras, cursos e conferencias oferecidos, comparecem aos rituais [...] estão em busca de mais uma alternativa para a expressão e cultivo da dimensão da espiritualidade[...] em consonância com as expectativas e representações contemporâneas sobre o exercício da religiosidade em seu sentido mais amplo.” (MAGNANI, 2005, p.227)

Entrevista com um neoxamânico

Em uma das visitas ao Espaço de Práticas e Estudos Xamnicos Mitakuye Oyasin, no dia 15 de Outubro de 2011 foi realizada uma entrevista com o responsável Leandro, que prontamente descreveu sua trajetória antes e durante o neoxamanismo. Leandro Relata que por volta dos 20 anos de idade obteve o primeiro contato com o neoxamanismo através de um ritual com a bebiba Ayahuasca, onde pode se “reconectar” consigo mesmo através da expansão da consciência proporcionada pelos efeitos psicoativos resultados com a ingestão ritualística da bebida obtendo a possibilidade de resgatar a própria personalidade, caráter e índole. Tais mudanças logo se refletiram em sua maneira de lidar com a vida e também em seus hábitos, “[...]me entreguei à nova maneira de ver a vida, me livrando dos vícios, atitudes, palavras, maneira de viver, promovendo uma mudança em meu interior que logo se manifestou em meu exterior.” (Entrevista com Leandro)

Leandro esclareceu que com esta mudança pôde adquirir um novo ponto de vista sobre a condução da vida humana iniciando um autodesenvolvimento com os conhecimentos obtidos, tudo isto foi conquistado em sua primeira experiência ritual com Ayahuasca.

O processo pelo qual Leandro diz humildemente ter se aprovado um “Aprendiz de xamanismo” auxiliador e dirigente de seus próprios rituais é condizente com a característica observada por Mircea Eliade sobre a eleição de um xamã por demonstrar aptidão à vocação, Leandro diz ter recebido iniciação com um xamã boliviano, mas mesmo assim sua maior iniciação foi proveniente de si mesmo, tal aprovação logo fora reconhecida com os pajés e caciques com quem conviveu e com os resultados obtidos nas pessoas que auxiliou.

Com o passar dos anos desenvolvendo este novo ponto de vista e novo estilo de vida, Leandro relata ter recebido um convite de uma família de Pajés e Caciques da tribo dos Kaxinawás – Huni Kuin residentes no Acre para auxiliá-los em um festival indígena que ocorre todo ano, como um intermediário de interesses tanto dos índios como também para os turistas. Este detalhe da comunicação entre o urbano e a floresta é um exemplo da elaborada rede de comunicação existente dentro do movimento neoxamânico.

“[...] intensa atividade desenvolvida ao longo de um circuito de trocas entre personagens – membros de nações indígenas com trânsito na cidade e por ONGs, terapeutas alternativos, rema¬nescentes do movimento da contracultura, participantes de outras associações da Nova Era, – que se movimentam no plano regio¬nal, nacional, internacional.” (MAGNANI, 2005, p.224)

Leandro afirmou que aceitou o convite pensando em todos os conhecimentos e ensinamentos que seriam obtidos com tal experiência de turismo xamânico, porém foi surpreendido com a realidade que encontrou por lá.

“[...] tive uma surpresa ao pensar que obteria conhecimentos com os índios, pois os maiores conhecimentos vieram da espiritualidade nos meus trabalhos espirituais, e em pouco tempo quem estava ensinando era eu. Passando orientações aos irmãos que necessitavam de auxilio e orientação, pois enfrentaram um processo de quase perda de cultura com a invasão dos “brancos” em seus territórios, influenciando sua cultura, seu modo de agir e pensar, adquirindo hábitos em sua maioria desagradáveis de nossa sociedade.” (Entrevista com Leandro)

A partir deste momento foi que Leandro conseguiu obter respeito entre os índios, pois trazia consigo um arcabouço xamânico proporcionado por inúmeras práticas, experiências e estudos obtidos em seu próprio circulo de comunicação com o Movimento Neoxamanico da Cidade de São Paulo.

Quando questionado sobre de que modo via o neoxamanismo que pratica, foi enfático ao dizer que o vê como “uma prática, filosofia, terapia, como forma e estilo de vida, sem barreiras”, tal discurso é coerente com o discurso do movimento Nova Era em relação à simbiose entre pontos específicos de diferentes seguimentos religiosos em uma única e universalista corrente de pensamento. O entrevistado quando incitado a falar sobre sua opção religiosa, expõe o Holísmo presente em suas crenças, dizendo que o xamanismo não se limita a padrões, sendo livre e aberto a novas re-elaborações.

“Não tenho religião, se me perguntam sobre isso, minha resposta é Minha religião é o Amor! Xamanismo não é religião, é uma forma de busca de identidade e de autoconhecimento, não se limitando a padrões, grupos, homens. Xamanismo é livre, aberto a todas as crenças religiosas, formas de terapia. O Xamanismo para quem o pratica, é encontrado dentro de cada religião. – Eu, por exemplo, vou ao centro espírita, umbandista, kardecista, igreja católica, sem preconceito. O Xamanismo é união do que você sabe e do que eu sei, e não separação. Não importa o que eu ou você acha, o que importa é o que achamos juntos. Isto é o que importa! O Xamanismo não é uso de Ayahuasca, não é necessário o uso dessa medicina específica para que se pratique o Xamanismo, o Xamanismo vai muito além disso!” (Entrevista com Leandro)

Conclusão

Em concordância com Stuart Hall observando que a identidade cultural dos indivíduos pós-modernos, devido à dúvida e incerteza, entrou em crise, gerando uma crise de identidade pela descentralização do sujeito, ou seja, as identidades entraram em declínio, abalando os quadros de referencia estável no mundo social, fragmentando o indivíduo moderno (HALL, 2006). O Neoxamanismo parece situar-se então em um contexto de tentativa de resignificação de valores culturais, morais e espirituais ou religiosos.

Antônio Flávio Pierucci estudando o conceito de Max Weber expõe que a questão central do conceito é a racionalização da religião e que o desencantamento do mundo está na moralização da religião e não em sua perda. O Autor defende que na obra weberiana o desencantamento religioso do mundo, entendido como desmagificação ou também como a eliminação da magia como meio de salvação, é seguido de uma forte eticização (moralização) da conduta prática.

Este declínio identitário junto à racionalização da religião somados à diminuição da influência religiosa na vida quotidiana das pessoas aparece como fator central para a disseminação da filosofia de vida do Movimento Nova Era e Neoxamânico como uma tentativa de reencantar e reanimar o cotidiano.

Com o renascimento do xamanismo e seus métodos de cura no mundo ocidental, começa-se a valorizar a cultura do invisível, diminuindo o desprezo irracional por parte de algumas religiões tradicionalistas e racional por parte da ciência moderna, aos conhecimentos antigos, resgatando os valores de respeito à natureza e à vida com práticas xamânicas e espirituais que os ancestrais já concebiam há séculos atrás, respeitando e compreendendo sua importância para encontrar respostas e desvendar os mistérios da nossa saúde e bem-estar, somando-se a todo o conhecimento científico moderno.

Essa consciência xamânica que possibilita uma espécie de alinhamento com as forças da natureza, parece transformar-se em poder de cura, expandindo habilidades psíquicas e uma melhora na qualidade de vida através de uma reconexão com o seguimento da existência individual e também coletiva. Novas técnicas e rituais são baseados nesses achados e junto a novas interpretações de dados históricos. O Xamanismo nunca desapareceu completamente, e está reaparecendo, reelaborando-se e renovando-se em formas inesperadas, propondo um restabelecimento de uma relação saudável e equilibrada dentro de um contexto urbano, com um número crescente de pessoas que buscam no conhecimento ancestral respostas e soluções para os males que afligem a sociedade moderna, tais como os de natureza psicológica assim como os de natureza social, carregando seu potencial de um melhor desenvolvimento de pessoas saudáveis e bem integradas com sua sociedade, além de alternativas terapêuticas para a medicina moderna.

“Hoje estamos descobrindo que mesmo os quase milagres da moderna medicina ocidental nem sempre são próprios para resolver completamente todos os problemas dos doentes, ou dos que desejam evitar doenças. Cada vez mais, os profissionais da saúde e seus pacientes, estão procurando métodos de cura suplementares, e muita gente sadia também se empenha em experimentos pessoais para descobrir abordagens alternativas que sejam viáveis na busca do bem-estar.” (HARNER, 1980, p.14)

Portanto, esse estudo pretende somar-se a todo um esforço acadêmico nacional que inclui até núcleos específicos de pesquisa, como é o caso do NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos), como contribuição a um campo muito rico e que ainda carece de estudos sobre sua vasta gama de conhecimentos, práticas e relações com a sociedade contemporânea, realizando um estudo focado no desenvolvimento de um segmento recente altamente sincrético do ponto de vista religioso e muito abrangente em relação a ideologias, como é o caso do Neoxamanismo.

Referências

ALDHOUSE-GREEN, Miranda & Stephen. The Quest for the Shaman. Shape-Shifters, Sorcerers and Spirit-Healers of Ancient Europe. Londres: Thames & Hudson, 2005.

BLAVATSKY, Helena Petrovna. A Doutrina Secreta: Síntese de Ciência, Filosofia e Religião. São Paulo: Editora Pensamento, 2008.

_____________________________A Chave Para a Teosofia, Rio de Janeiro, Editora Três, 1973.

BIRCHAL, Fabiano Fernandes Serrano. Nova Era: Uma manifestação de fé da contemporaneidade. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/viewArticle/481 - Ultimo Acesso 14/01/2012.

ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A, 2005.

HARNER, Michael. O Caminho do Xamã: Um guia de Poder e Cura. São Paulo: Cultrix, 1995.

LABATE, Beatriz Caiuby. A reinvenção do uso da Ayahuasca nos centros urbanos. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. O Brasil da Nova Era. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

_______________________________Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na cidade. São Paulo: Studio Nobel, 1999 (1).

_______________________________O Xamanismo Urbano e a religiosidade contemporânea, 1999 (2),

Disponível em: http://www.iser.org.br/religiaoesociedade/pdf/magnani20.2_1999.pdf - Ultimo Acesso 14/01/2012.

_______________________________Xamãs na Cidade. REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 218-227, setembro/novembro, 2005. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/67/16-magnani.pdf - Ultimo Acesso 14/01/2012.

PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do Mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo: Editora 34, 2003.

PRABHUPÃDA, Swami. Bhagavad-gitã: Como ele é. São Paulo: The Bhaktivedanta Book Trust, 2006.

_______________________________A caverna onde a arte nasceu, Scientific American, edição 31 – Dezembro, 2004

WEIL, Pierre. Nova linguagem holística. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, 1987.

Anexo

ENTREVISTA COM LEANDRO (Bane Dua Bake) do “Espaço de Práticas e Estudos Xamânicos Mitakuye Oyasin” (Todos somos irmãos) no dia 15/10/2011

- Conte-nos a sua historia antes e durante o Xamanismo.

Aos 19 para 20 anos, quando em busca de melhorias freqüentando religiões para me esclarecer, recebi um convite para conhecer o xamanismo e fazer um trabalho com a planta de poder Ayahuasca. Neste trabalho, me reconectei comigo mesmo, senti a expansão da consciência e o resgate da minha própria personalidade, me entreguei a nova maneira de ver a vida, me livrando dos vícios, atitudes, palavras, maneira de viver, promovendo uma mudança em meu interior que logo se manifestou em meu exterior, proporcionando um novo ponto de vista sobre a condução da vida humana, melhorando o meu caráter e a minha índole, possibilitando que eu pudesse ajudar as pessoas a encontrarem o caminho do amor, da paz, do respeito; independente de religiões, tudo isto em apenas uma única experiência.

Este é um processo que se aprende com o tempo, no início somos seguidores, porém, o xamanismo e a ayahuasca ajudam a você saber andar com as próprias pernas, até que não precise mais dela e de nenhum seguimento doutrinário, pois acaba conhecendo a doutrina do universo. Onde se aprende que tudo está vivo, o trabalho é constante e não apenas dentro de uma sessão, o trabalho está dentro de nós, devemos então retirar os ensinamentos das relações, dos sentimentos, com as pessoas que convivemos, isto é o xamanismo, ele está em tudo e em todos, devemos aprender com o todo, como estamos interagindo com este todo, seja este todo, seres animados ou inanimados, assim me tornei um aprendiz de xamanismo com o meu próprio reconhecimento como auxiliador de pessoas, até fui iniciado por um xamã boliviano tempos atrás, porém fui eu quem senti a minha aptidão quando vi os resultados nas pessoas que ajudei.

Após esse longo processo de busca, obtive oportunidade de conduzir trabalhos com ayahuasca auxiliando pessoas no processo de busca interior e ao melhor entendimento de suas vidas.

Em meio a este processo como auxiliador, fui gratificado com um convite de uma família de Pajés e Caciques Kaxinawás – Huni Kuin do Acre para auxiliá-los em um festival anual, como articulador dos interesses das aldeias com o “homem branco”. Porém havia um forte lado espiritual por traz de tudo isto, que foi se transformando e se redefinindo, adquirindo outras formas de pensar, pois na cidade pensa-se egoisticamente e quando estamos na floresta não há tanto egoísmo e nem tantas limitações, entra-se em outro nível de percepção, o ambiente propicia isto.

Assim, recebi o convite para fazer uma iniciação, mas tive uma surpresa ao pensar que obteria conhecimentos com os índios, pois os maiores conhecimentos vieram da espiritualidade nos trabalhos espirituais, e em pouco tempo quem estava ensinando era eu. Isso em pouco tempo, parece que havia resgatado minha personalidade, trocando informações sobre a jornada terrestre, que é apenas uma parte que compõe a jornada espiritual.

Passando orientações aos irmãos que necessitavam de auxilio e orientação, pois enfrentaram um processo de quase perda de cultura com a invasão dos “brancos” em seus territórios, influenciando sua cultura, seu modo de agir e pensar, adquirindo hábitos em sua maioria desagradáveis de nossa sociedade.

Comecei então a dar palestras, voltando ao princípio de todo o caminho, na humildade e na disciplina, sem agredir ou ofender a cultura deles, simplesmente mostrando que não eram necessárias certas práticas que não os levavam ao progresso.

Neste processo ganhei mais respeito entre os índios e o reconhecimento de minha vocação como auxiliador, primeiro com as crianças e depois com os mais velhos, pois estava ali com outra missão, que não era a de passear ou apenar conhecê-lo, esta missão só foi compreendia já estando lá, entendendo muito melhor o verdadeiro motivo daquele convite. (Motivação espiritual)

- O que te atrai ao xamanismo?

1. É obter as respostas para dúvidas que temos de uma forma totalmente única, simples e clara de modo que fixa o conhecimento em nós, para que não se torne perdido. Pois as respostas vêm através do sentimento e quando você sente as respostas elas tocam muito profundo em nós, ao ponto de não se perderem mais

- Quais resultados lhe proporcionou?

2. Inúmeros resultados... Para este plano os principais são: ser uma pessoa mais humilde, com disciplina na vida, dedicação em busca de melhoras; tornei-me mais calmo e mais compreensivo; trouxe desenvolvimento na parte musical, melhor sensibilidade para lidar com pessoas de difícil convivência de forma melhor, além das curas para males físicos, sentimentais, mentais e espirituais.

- Como ele contribuiu em sua qualidade de vida?

3. A partir do momento que obtive autodisciplina, autocontrole de mim mesmo, minhas ações; isso inclui pensamentos, sentimentos, que vem de mim e vão de mim para conhecidos e desconhecidos.

- Como vê o xamanismo?

4. Vejo como uma prática, filosofia, terapia, como forma e estilo de vida, sem barreiras. Aprendendo a respeitar a si próprio, e por conseqüência, aprendendo a respeitar o próximo e os ensinamentos que vem dele, sejam eles antigos ou mais novos, no sentido aberto de ser ou de conhecimento, pois tudo se renova.

- Como desenvolve o trabalho xamânicos, como auxilia, na prática, as pessoas?

5. Trabalhar de forma simples e clara, com direção às pessoas que buscam algo que ainda não encontraram em outros lugares.

Iniciamos nossos trabalhos de forma bastante familiar para receber bem as pessoas. Para que através deste ambiente propício, a pessoa possa se sentir mais calma e confortável, para que possa se integrar e relaxar. Pois senão, o trabalho não será legal.

Trabalho com números pequenos de pessoas ou então, dependendo do caso, individualmente, conforme sentir a forma de realizar o trabalho; isto inclui a seleção musical que pode ser mais forte ou mais calma, trabalhar mais o lado sentimental, ou trabalhar mais com ensinamentos.

Procuro conhecer a pessoa e seu estilo de vida, buscando o que possa propiciar um bom trabalho para a pessoa juntando o que sinto com o que a pessoa me mostra.

- Como conduz a realização dos trabalhos xamânicos?

6. Algumas formas de realizar...

Algumas medicinas: Ayahuasca, Tabaco com ervas medicinais, Rapé; e dentro do trabalho iniciado com a ayahuasca sempre tomando cuidado com o tabaco às pessoas que contenham vícios tabagistas, utilizando como alternativa o Rapé, que também contém tabaco, ou então nenhum dos dois.

Utilizo também Pajelança, mediunidade, passes espirituais, sessões de cura com instrumentos xamânicos e instrumentos musicais.

6. A questão religiosa. (sem questão prévia)

Não tenho religião, se me perguntam sobre isso, minha resposta é Minha religião é o Amor! Xamanismo não é religião, é uma forma de busca de identidade e de autoconhecimento, não se limitando a padrões, grupos, homens. Xamanismo é livre, aberto a todas as crenças religiosas, formas de terapia. O Xamanismo para quem o pratica, é encontrado dentro de cada religião. – Eu, por exemplo, vou ao centro espírita, umbandista, kardecista, igreja católica, sem preconceito. O Xamanismo é união do que você sabe e do que eu sei, e não separação. Não importa o que eu ou você acha, o que importa é o que achamos juntos. Isto é o que importa! O Xamanismo não é uso de Ayahuasca, não é necessário o uso dessa medicina específica, para que se pratique o Xamanismo, o Xamanismo vai muito além disso!