25 de fevereiro de 2011
Sobre Facebook, intimidade e extimidade, de Zygmunt Bauman, em Isto não é um diário (pg. 221) — Jorge Zahar Editor Ltda.

“O Facebook é o principal site de rede social, tendo superado seu maior concorrente, o MySpace, em abril de 2008.” “O Facebook atraiu 130 milhões de visitantes exclusivos em maio de 2010, um aumento de 8,6 milhões de pessoas.” “O ranking do site entre todos os demais passou de sexagésimo para sétimo em matéria de tráfego mundial, de setembro de 2006 a setembro de 2007, e hoje ele é o segundo.”
  Essas citações, fornecidas pelo site da Wikipédia, ao que pa­rece constantemente atualizado, são a última informação sobre o fenomenal sucesso do Facebook: a ascensão constante e rapi­díssima, deixando muito atrás outras novidades da internet e outras modas passageiras, quebrando todos os recordes de cres­cimento em número de usuários regulares e também em termos de seu valor comercial. Segundo a edição de ontem do Le Monde, o valor atual do Facebook alcançou agora a soma inédita de US$ 50 bilhões. Enquanto escrevo estas palavras, o número de “usu­ários ativos” do Facebook está ultrapassando a barreira do meio bilhão. Evidentemente, alguns são mais ativos que outros — con­tudo, pelo menos metade dos usuários ativos está no Facebook todos os dias. Como nos informam seus proprietários, um usu­ário médio tem 130 amigos (no Facebook), enquanto entre si os usuários passam mais de 700 bilhões de minutos por mês conec­tados nessa rede. Se esse número astronômico é muito grande para digerir e assimilar, permitam-me assinalar que, se dividido igualmente entre os usuários ativos do Facebook, ele poderia representar 16 milhões de pessoas 24 horas por dia, setes dias por semana ligadas no Facebook.
  Qualquer que seja o padrão, trata-se de um sucesso impres­sionante. Aos vinte e tantos anos, Mark Zuckerberg deve ter tro­peçado em algum tipo de mina de ouro quando inventou (alguns diriam roubou?) a ideia do Facebook e a lançou na internet, para uso exclusivo dos alunos de Harvard, em fevereiro de 2004. Isso tudo é bastante óbvio. Mas qual foi o minério semelhante ao ouro que o Mark Sortudo descobriu e continua explorando com lucros fabulosos e sempre crescentes?
  No site oficial do Facebook, você vai encontrar a seguinte descrição dos benefícios que se afirma terem atraído e seduzido esse meio bilhão de pessoas a passar boa parte de seu tempo de vigília nos domínios virtuais do Facebook:
Os usuários podem criar perfis com fotos, listas de interesses pes­soais, informações para contato e outras de caráter pessoal. Podem se comunicar com amigos e outros usuários usando mensagens privadas ou públicas e uma sala de bate-papos. Também podem criar grupos de interesse, ou entrar em algum, assim como like pages (chamadas, até 19 de abril de 2010, de fan pages), algumas das quais são mantidas por organizações como forma de publicidade.
  Em outras palavras, o que as legiões de “usuários ativos” abraçaram com entusiasmo ao se juntar às respectivas fileiras do Facebook foi a possibilidade de duas coisas com as quais deviam ter sonhado sem saber ainda onde procurá-las e achá-las até que a oferta de Zuckerberg a seus colegas de Harvard apareceu na internet. Primeiro, deviam sentir-se incomodamente solitários, mas, por algum motivo, achavam muito difícil escapar da soli­dão com os meios de que dispunham. Segundo, deviam sentir-se dolorosamente desprezados, ignorados e de alguma forma pos­tos de lado, exilados e excluídos, porém, uma vez mais conside­ravam difícil, quase impossível, erguer-se acima de seu odioso anonimato com os meios de que tinham em mãos. Para ambas as tarefas, Zuckerberg ofereceu os meios que eles até então haviam procurado em vão; e eles agarraram a oportunidade... Deviam estar preparados para pular, os pés sobre a rampa de partida, os músculos tensos, os ouvidos à espera do tiro de largada.
  Fico imaginando: se Zuckerberg tivesse nascido trinta ou quarenta anos antes, teria sido treinado por seus professores a regurgitar fervorosamente as homilias de Sartre ou a repetir, seguindo Foucault, como se estivesse citando as sagradas escri­turas, que “o autor está morto”; teria aprendido com os apósto­los da “Nova Crítica” que é tolo e degradante para um aluno conectar textos artísticos com quaisquer detalhes pessoais da vida do autor; teria lhe ocorrido que são precisamente os “detalhes pessoais” da vida do autor, e que, portanto, seus jovens colegas estariam se coçando para igualar a glória dos autores festejados tornando públicos seus próprios “detalhes pessoais”? E no caso muito improvável de que algo assim tivesse ocorrido a esse Zuckerberg anterior, será que os milhões de usuários ativos teriam se lançado sobre sua invenção, seguidos por bilhões de dólares?
  Foi só no curso dos últimos vinte anos que, como assinala Sebastian Faulks em Faulks on Fiction, “longe de ser banida dos comentários, a vida do autor e sua relação com o trabalho se tornaram o principal campo de debate”. E, acrescenta ele, essa mudança crucial “abriu as portas à especulação e à fofoca. Pre­sumindo que toda obra de arte é uma expressão da personalida­de do autor, os críticos biográficos reduziram o ato de criação a tema secundário.” Eu suspeito (ou melhor, estou certo) de que foi apenas nos últimos vinte anos que Zuckerberg pôde ter essa revelação e foi levando suas novidades aos colegas estudantes, ao mesmo tempo encontrando-os preparados para seguir o mestre ao longo do caminho por ele mostrado.
  Como recentemente observou Josh Rose, diretor de criação da agência de publicidade Deutsch LA, “a internet não rouba nossa humanidade, ela a reflete. A internet não entra em nós, ela mostra o que temos por dentro.”8 Como ele está certo! Jamais culpe o mensageiro pelo que você possa achar de ruim na men­sagem, mas também não o exalte pelo que possa encontrar de bom. Afinal, se vão alegrar-se ou desesperar-se com a mensagem, isso depende das próprias inclinações e animosidades dos desti­natários, de seus sonhos e pesadelos, esperanças e apreensões. O que se aplica a mensagens e mensageiros também vale, embora não exatamente da forma que as ofertas da internet e seus men­sageiros, para as pessoas que as apresentam em suas telas e as levam à nossa atenção. Nesse caso, é o uso que nós, “usuários ativos” do Facebook, todo esse meio bilhão de pessoas, fazemos dessas ofertas que as torna, assim como seu impacto sobre nossas vidas, boas ou ruins, benéficas ou prejudiciais. Tudo depende do que estejamos procurando; as engenhocas tecnológicas só tornam nossas aspirações mais ou menos realistas, e nossa busca mais rápida ou mais demorada, mais ou menos eficaz.
  Vamos agora examinar essas ofertas mais de perto. A pri­meira dizia respeito aos meios de fugir da solidão. Permitam-me citar mais uma vez as preocupações de Josh Rose: Recentemente apresentei a pergunta a meus amigos do Facebook: “Twitter, Facebook, Foursquare... Tudo isso está fazendo você se sentir mais próximo ou mais distante das pessoas? Ela provocou um monte de respostas e parecia tocar um dos nervos expostos de nossa geração. Qual o efeito da internet e da mídia social sobre nossa humanidade? Vistas de fora, as interações digitais parecem frias e desumanas. Não há como negá-lo. Sem dúvida, dada a escolha entre abraçar e “conectar” alguém, penso que todos concordaríamos quanto à que parece melhor. O tema das respostas à minha pergunta no Facebook parece ter sido resumido por meu amigo Jason, que escreveu: “Mais perto de pessoas das quais estou distante.” Então, um minuto depois, ele escreveu: “Talvez mais distante de pessoas das quais estou bastante perto?” E depois acrescentou: “Só fiquei confuso:” Mas é algo que confunde. Vivemos agora nesse paradoxo em que duas realidades aparentemente conflitantes existem lado a lado. A mídia social ao mesmo tempo nos aproxima e nos distancia.
  Sabe-se muito bem que Rose tem a preocupação de trans­mitir veredictos sem ambivalência — como de fato deveria ser no caso de uma transação seminal, porém arriscada, como trocar incidentes esparsos de “intimidade” off-line pela variedade de massa on-line. A “intimidade” de que se abriu mão talvez fosse mais satisfatória, porém consumia tempo e energia, e era cheia de riscos; a “intimidade” que a substituiu sem dúvida é mais rápida, não exige esforço e é quase livre de riscos, mas muitos a consideram menos capaz de saciar a sede de companhia plena. Ganha-se uma coisa, perde-se outra — e é terrivelmente difícil decidir se os ganhos compensam as perdas; além disso, uma decisão definitiva está fora de questão; você vai achá-la tão pro­visória e até segunda ordem quanto a “intimidade” que adquiriu.
  O    que você obteve foi uma rede, não uma comunidade. Como cedo ou tarde acabará por descobrir (desde que, claro, não esqueça ou deixe de aprender o que significava “comuni­dade”, ocupado como está em formar e desfazer redes), elas não são mais parecidas que água e vinho. Pertencer a uma comunidade é uma condição muito mais segura e confiável que ter uma rede — embora seja mais restritiva e contenha mais obrigações.
  A comunidade o observa de perto e lhe deixa pouco espaço de manobra (ela pode bani-lo e exilá-lo, mas não permitirá que você opte por sair por vontade própria); a rede pode ter pouca ou nenhuma preocupação com sua obediência às normas prescritas (se é que a rede tem normas a obedecer, o que muitas vezes não é o caso), de modo que lhe dará muito mais corda e acima de tudo não irá puni-lo se você resolver sair. Na comunidade, você pode contar que “o verdadeiro amigo se conhece na hora do perigo”; as redes estão lá sobretudo para compartilhar o divertimento; a disposição de vir em seu socorro no caso de um problema sem relação com os “focos de interesse” comuns dificilmente é testada, e, se o fosse, mais dificilmente ainda aprovada. Afinal, a escolha é entre segurança e liberdade: necessita-se das duas, mas não se pode ter uma delas sem sacrificar a outra ao menos em parte; quanto mais se tem de uma menos se tem da outra. No que se refere à segurança, as comunidades ao velho estilo ganhariam facilmente das redes. Quanto à liberdade, é o contrá­rio (afinal, basta apertar a tecla “delete” ou deixar de responder as mensagens para ficar livre de sua interferência).
  Além disso, há toda aquela diferença enorme, de fato abis­sal e insuplantável, entre abraçar e “conectar” alguém, como diz Rose... Em outras palavras, entre o protótipo off-line e a varie­dade on-line de “proximidade”, entre fundo e raso, profundida­de e superficialidade, calor e frieza, sincero e falso. Você esco­lhe, com toda probabilidade continuará a escolher, dificilmente poderia parar de escolher, mas é melhor selecionar sabendo o que está escolhendo — e estar preparado para pagar o preço da escolha. Pelo menos é isso que Rose parece sugerir, e ninguém discute sua advertência.
  O conteúdo exigido para tornar um relacionamento “sig­nificativo” tem mudado de forma considerável — e drástica, nos últimos trinta ou quarenta anos. Tem mudado tanto que, como sugeriu Serge Tiresson, os relacionamentos considerados “signi­ficativos” passaram da intimité para a extimité — da intimidade à “extimidade” (ver, de sua autoria, Virtuel, mon amour, 2008).
  Alain Ehrenberg, analista perspicaz do complexo trajeto da história — curta, embora dramática — do indivíduo moderno, tentou apontar a data de nascimento da revolução cultural da modernidade tardia (pelo menos de seu ramo francês) que resultou no mundo líquido moderno que continuamos a habi­tar; uma espécie de equivalente para a revolução da cultura oci­dental da salva de artilharia do navio de guerra Aurora, que deu sinal para o ataque ao palácio de Inverno e assinalou o início de setenta anos de governo bolchevique. Ehrenberg escolheu uma tarde de quarta-feira de outono, na década de 1980, quando cer­ta Vivienne, uma “francesa comum”, declarou num talk show de TV, e portanto diante de vários milhões de espectadores, que, por causa de seu marido Michel, o qual sofria de ejaculação pre­coce, ela nunca tinha experimentado um orgasmo em toda sua vida de casada.
  O    que seria tão revolucionário no pronunciamento de Vi­vienne a ponto de justificar a escolha de Ehrenberg? Seus dois aspectos intimamente relacionados. Primeiro, atos essencial-mente (até eponimicamente) privados foram revelados e discuti­dos em público — ou seja, na frente de todos que quisessem ouvir ou por acaso ouvissem. Em segundo lugar, a arena pública — ou seja, um espaço aberto ao ingresso sem controle — foi usada para abordar e debater um tema de relevância, interesse e emoção em essência privados. Entre si, esses dois movimentos revolucioná­rios legitimaram o uso público de uma linguagem desenvolvida para conversas privadas entre um número limitado de pessoas selecionadas: de uma linguagem cuja função básica tinha sido até então estabelecer a separação entre os domínios do “privado” e do “público”. Mais precisamente, essas duas rupturas interli­gadas deram início à apresentação em público, para uso e con­sumo de uma audiência pública, de um vocabulário destinado a ser empregado para narrar experiências privadas, vivenciadas subjetivamente (Erlebnisse e não Erfahrungen). Com o passar dos anos, ficou claro que o verdadeiro significado do evento fora eliminar a divisão antes sacrossanta entre as esferas “pública” e “privada” da vida corporal e espiritual humana.
Voltando ao passado e com o benefício de um olhar retros­pectivo, podemos dizer que a aparição de Vivienne diante de milhões de homens e mulheres franceses grudados às suas telas de TV também levou os espectadores, e com eles o resto de nós, a uma sociedade confessional; um tipo de sociedade até então desconhecido e inconcebível, em que microfones são instalados dentro de confessionários, os eponímicos cofres e depósitos dos segredos mais secretos, do tipo que só devem ser divulgados a Deus ou a seus mensageiros e plenipotenciários terrenos; em que alto-falantes conectados a esses microfones são pendurados em praças públicas, lugares antes destinados a expor e debater assuntos de interesse, preocupação e urgência comuns.
  O advento da sociedade confessional assinalou o triunfo final da privacidade, essa invenção moderna básica — embora também o início de sua vertiginosa queda desde o auge de sua glória. Indicou o momento, portanto, de uma vitória de pirro, sem a menor dúvida: a privacidade invadiu, conquistou e colo­nizou o domínio público, mas à custa da perda de seu direito ao sigilo — seu traço definidor e seu privilégio mais valorizado e defendido com tenacidade.
  O que é secreto, como outras categorias de propriedades pessoais, é por definição a parte do conhecimento não compar­tilhada com os outros, ou cujo compartilhamento é controlado. O sigilo traça e estabelece a fronteira, por assim dizer, da priva­cidade; esta é o campo destinado a constituir o domínio próprio de alguém, o território de sua soberania exclusiva, no interior do qual a pessoa tem o poder abrangente e indivisível de decidir “o que e quem eu sou” — e a partir do qual é possível lançar e relan­çar campanhas para conquistar e manter o reconhecimento e o respeito às suas decisões. Numa surpreendente guinada de 180 graus em relação aos hábitos de nossos ancestrais, contudo, per­demos a coragem, a energia e acima de tudo a determinação de persistir na defesa desses direitos, desses tijolos insubstituíveis da autonomia individual.
  Em nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade que nos assusta, mas o oposto: que se feche a porta de saída da privacidade. A área da privacidade transformou-se num local de encarceramento; o dono desse espaço privado vê-se condenado e destinado a ser abandonado às suas próprias preocupações; forçado a uma condição marca­da pela ausência de ouvintes ávidos por puxar e arrancar nossos segredos das trincheiras da privacidade, submetê-los à exposi­ção pública, torná-los propriedade comum de todos, proprieda­de que todos desejam compartilhar. Parece que manter segredos não nos satisfaz, a menos que eles sejam daquele tipo capaz de reforçar nossos egos, atraindo a atenção de pesquisadores e edi­tores de talk shows televisivos, das primeiras páginas de tabloides e capas de revistas de luxo.
  “No cerne das redes sociais está a troca de informações pes­soais.” Os usuários ficam felizes em “revelar detalhes íntimos de suas vidas pessoais, postar informações precisas e comparti­lhar fotografias”. Estima-se que 61% dos adolescentes britânicos entre treze e dezessete anos “têm um perfil pessoal num site de rede social” que os capacita ao “convívio on-line”.
  Na Grã-Bretanha, país em que o uso popular de instrumentos eletrônicos de ponta está ciberanos atrás do Extremo Oriente, os usuários ainda podem confiar nas “redes sociais” para manifestar sua liberdade de escolha e até acreditar que elas sejam um veículo de rebelião e autoafirmação da juventude. Mas na Coreia do Sul, por exemplo, onde a maior parte da vida social já é eletronica­mente mediada (ou melhor, em que a vida social já se transformou em vida eletrônica ou em cibervida, e onde a maior parte da “vida social” é passada basicamente na companhia de um computador, iPod ou celular, e só de forma secundária com pessoas de carne e osso), é óbvio para os jovens que eles não têm sequer um lampejo de escolha; onde eles vivem, levar a vida social eletronicamente não é mais uma opção, porém uma necessidade do tipo “pegar ou largar”. A “morte social” está à espreita dos poucos que não conse­guiram entrar no Cyworld, o líder do cibermercado sul-coreano em termos da “cultura do veja e conte”.
  Seria um erro grave, contudo, supor que a ânsia de fazer uma apresentação pública do “eu interior” e a disposição de satisfazer essa ânsia sejam manifestações de um impulso e vício singulares, apenas geracionais e relacionados à adolescência, ávida como ela tende a ser por fincar uma base na “rede” (termo que está subs­tituindo sociedade, tanto no sentido do discurso das ciências sociais quanto na fala popular) e lá permanecer, embora sem muita certeza de como atingir esse objetivo. O novo impulso para a confissão pública não pode ser explicado por fatores “específicos à idade” — de qualquer forma, não apenas por eles. Como Eugène Enriquez resumiu a mensagem das crescentes evi­dências obtidas em todos os setores do mundo líquido moderno dos consumidores:
  Somente quando as pessoas se lembrarem de que aquilo que antes era invisível — a parte íntima de todos, a vida interior de todos — agora se expõe no palco público (sobretudo nas telas de TV, mas também nos palcos literários) é que elas irão compreender que aqueles a quem prezam por sua invisibilidade tendem a ser rejei­tados, postos de lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física, social e psíquica está na ordem do dia.
  Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis são apenas aprendizes treinando a (e treinados na) arte de viver numa sociedade confessional — famosa por eliminar a fronteira que antes separava o privado do público; por trans­formar a exposição pública do privado numa virtude e numa obrigação públicas; e por varrer da comunicação pública tudo que resista a ser reduzido a confidências privadas, com aqueles que se recusam a confidenciá-las.
  Já na década de 1920, quando a transformação da sociedade de produtores em sociedade de consumidores se encontrava em estado embrionário ou, na melhor das hipóteses, incipiente, e portanto passava despercebida pelos observadores menos aten­tos e perspicazes, Siegfried Kracauer, pensador dotado da fan­tástica capacidade de apreender o que é só um pouco visível, que já começava a traçar os contornos de certas tendências prefigu­rando um futuro ainda perdido na massa informe de modismos e excentricidades, escreveu:
A corrida aos numerosos salões de beleza brota em parte de preo­cupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um luxo. Por medo de serem postos de lado como obsoletos, damas e cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esporte para se manter esbeltos. “Como posso ficar bonito?” é o título de um livreto há pouco lançado no mercado: os anúncios de jornal dizem que ele nos ensina formas de “permanecer jovem e belo agora e sempre”.
  Os novos hábitos que Kracauer registrou em Berlim, na década de 1920, como dignos de curiosidade têm se espalhado desde então como um incêndio florestal, transformando-se em rotina diária (ou pelo menos em sonho) por todo o globo. Oiten­ta anos depois, Germaine Greer observou que “até nos rincões mais distantes do noroeste da China as mulheres trocavam seus pijamas por sutiãs acolchoados e saias sexies, ondulavam e tin­giam os cabelos lisos e economizavam para comprar cosméticos. A isso se dava o nome de liberalização.”
  Meninos e meninas em idade escolar anunciando suas qua­lidades com avidez e entusiasmo na esperança de atrair a atenção e talvez obter também o reconhecimento e a aprovação necessá­rios para se manter no jogo da socialização; clientes em poten­cial precisando ampliar seus recordes de compras e seus limites de crédito para ter direito a um atendimento melhor; imigrantes latentes lutando para juntar cartões de bônus e oferecê-los como prova da existência de uma demanda por seus serviços a fim de ver aceitas suas candidaturas: essas três categorias de pessoas, aparentemente tão distintas, e miríades de outras forçadas a se vender no mercado e desejando vender-se pela maior ofer­ta possível, são instigadas, induzidas ou obrigadas a promover uma atraente e desejável mercadoria; assim, fazem o possível, recorrendo aos melhores meios à sua disposição, para aumentar o valor de mercado dos produtos que vendem. A mercadoria que são estimulados a colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas.
  Elas são, a um só tempo, promotoras de mercadorias e as mercadorias que promovem. São o produto e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores itinerantes (e permitam-me acrescentar que qualquer estudioso que já tenha se candida­tado a um emprego na área de ensino ou a uma verba de pesqui­sa reconhecerá com facilidade sua condição nessa experiência). Seja qual for a categoria em que possam ser enquadrados pelos organizadores das tabelas estatísticas, todos habitarão o mesmo espaço social conhecido pelo nome de mercado.
  Não importa em que rubrica seus interesses sejam classifi­cados por arquivistas do governo ou jornalistas investigativos, a atividade em que todos estão engajados (seja por escolha, neces­sidade ou ambas) é o marketing. O teste em que precisam passar para serem admitidos às cobiçadas recompensas sociais exige deles que se reclassifiquem como mercadorias: ou seja, como pro­dutos capazes de atrair atenção, demanda e fregueses.
  “Consumir” significa hoje nem tanto proporcionar as delícias do paladar quanto investir em sua própria afiliação social, a qual, na sociedade de consumidores, se traduz em “possi­bilidade de vender”: desenvolver qualidades para as quais já havia uma demanda de mercado ou reciclar as qualidades que já se possui em mercadorias cuja demanda possa ser criada. A maioria das mercadorias de consumo oferecidas no mercado deve sua atração e seu poder de angariar ávidos fregueses a seu valor de investimento, seja ele genuíno ou imputado, explicita­mente divulgado ou implícito. A promessa de aumentar a atra­tividade e, por conseguinte, o preço de mercado está presente — em letras grandes ou pequenas, ou pelo menos nas entrelinhas — na descrição de todos os produtos, incluindo aqueles que devem ser adquiridos principal ou exclusivamente pelo puro prazer do consumidor; o consumo é um investimento em tudo que diz respeito ao “valor social” e à autoestima do indivíduo.
  O propósito crucial, talvez decisivo, do consumo (mesmo que raras vezes explicitado com tantas palavras e menos ain­da debatido em público) na sociedade de consumidores não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a “como­dificação” ou “recomodificação” do consumidor: elevar o status dos consumidores ao de mercadorias vendáveis. É por essa razão, em última instância, que passar no teste do consumo é con­dição inegociável para a admissão na sociedade que foi remo­delada segundo o mercado. Passar no teste é precondição não contratual de todas as relações contratuais que se entrelaçam e são tecidas na rede de relacionamentos chamada “sociedade de consumidores”. É essa precondição, para a qual não há exceção e que não aceita recusa, que consolida o agregado das transa­ções entre vendedor e comprador numa totalidade imaginada; ou, mais exatamente, que permite que o agregado seja vivido como uma totalidade chamada “sociedade” — entidade a que se pode atribuir a capacidade de “fazer exigências” e coagir os ato­res a obedecê-las —, o que lhe confere o status de “fato social” no sentido durkheimiano.
  Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a condição de mercadoria de con­sumo que os torna membros legítimos dessa sociedade. Torna-se e continuar a ser uma mercadoria vendável é o mais forte motivo das preocupações do consumidor, mesmo que ele em geral seja latente e poucas vezes consciente, muito menos decla­rado. É por seu poder de aumentar o preço de mercado do con­sumidor que a atratividade dos bens de consumo — os atuais ou potenciais objetos de desejo que desencadeiam as ações do consumidor — tende a ser avaliada. “Fazer de si uma mercadoria vendável” é um trabalho do tipo “faça você mesmo” e também uma tarefa individual. Observemos: “fazer de si”, não tornar-se, é o desafio e a tarefa.
  Ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa assustadora e uma luta dolorosa e interminável. O medo de não conseguir se conformar é superado pelo temor da inadequação, mas nem por isso é menos apavorante. Os mercados de consu­mo são ávidos por lucrar com esse medo, e as empresas que pro­duzem bens de consumo competem pelo status de guias e auxi­liares mais confiáveis no interminável esforço de seus clientes para enfrentar o desafio. Elas fornecem “as ferramentas”, os ins­trumentos necessários ao trabalho individualmente realizado de “autofabricação”.
  Os produtos que elas representam como “ferramentas” de uso individual no processo de tomada de decisão são na verdade decisões tomadas por antecedência. Foram feitas sob encomen­da muito antes de o indivíduo confrontar-se com o dever (repre­sentado como oportunidade) de decidir. É absurdo pensar nes­sas ferramentas como se fossem capazes de possibilitar a escolha individual do propósito. Esses instrumentos são cristalizações da irresistível “necessidade” — que, agora como antes, os seres humanos devem aprender a usar e a obedecer, e aprender a usar para obedecer a fim de serem livres.
  Será que o desconcertante sucesso do Facebook não é con­sequência de ele fornecer uma feira em que a necessidade pode encontrar-se todo dia com a liberdade de escolha?

 
Zygmunt Bauman
Enviado por Germino da Terra em 20/08/2012
Reeditado em 24/08/2012
Código do texto: T3839576
Classificação de conteúdo: seguro
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