Pãozinho...

Naquele clube da periferia , enxergou o Dr. Venceslau, renomado e conceituado magistrado atuante na área de processos penais e já tendo participado de vários casos notórios da justiça, alguns deles com decisões polêmicas, que não foram totalmente de encontro ao agrado de críticos contumazes e da opinião pública, uma forma de minimizar um pouco certa má fama que havia angariado ao longo de sua vida pública.

Devidamente assessorado por ‘experts’ em assuntos atinentes população composta pelas classes menos favorecidas e com a proximidade das festas natalinas, resolveu patrocinar evento comemorativo e para dar um maior dinamismo bolaram pequeno concurso onde os participantes deveriam responder a uma única pergunta sendo que aqueles que dessem as três melhores respostas abiscoitariam belos presentes, havendo até possibilidade, na medida do possível de ser atendido aquilo que foi pleiteado na resposta à indagação que era: “O que eu gostaria de ganhar de presente nesse Natal!”.

Com adesão acima da expectativa inicial, após seleção efetuada, quedaram-se os componentes do júri encarregado do julgamento da melhor resposta, que deveria enquadrar criatividade, ineditismo, precisão e boa grafia, em resposta que dizia simplesmente: “Um pãozinho...”.

Cercados de muita curiosidade e expectativa, os avaliadores analisaram com mais vagar a papeleta que continha a resposta em questão e verificaram que as duas palavras estavam escritas de forma muito precária sinalizando pertencer a alguém recém alfabetizado ou que tinha enormes dificuldades em ‘desenhar’ os símbolos gráficos representativos das letras. Ao lerem os dados do participante verificaram tratar-se de uma criança de 6 anos de idade. Resolveram reunir-se com o idealizador do evento para ouvir o seu parecer e saíram da reunião absolutamente certos de que a premiação daquela criança iria totalmente ao encontro do intuito inicial daquela realização. Proclamaram a frase campeã e presentear o autor com uma bicicleta, que via de regra é o sonho de posse de toda criança da periferia e além disso, com um sofisticado micro-computador ‘recheado’ de interessantes games!

Sem divulgar com antecedência o vencedor do desafio, organizaram pomposa recepção que, além dos participantes e familiares, reuniu personalidades municipais e até algumas da esfera estadual. Dentre os convidados, destacou-se a presença do Secretário de justiça estadual...

Após todas a organização da mesa organizativa do evento, das apresentações e falas das autoridades presentes, com a devida conotação política que pairava no ambiente, foi dado inicio a competente premiação das frases vencedoras.

Em ordem decrescente, foram premiadas as frases escolhidas, chegando o momento da premiação da grande frase vencedora da promoção.

Anunciou-se o nome do vencedor, o jovem José Silva Júnior, que devidamente acompanhado pela ainda jovem mãe, subiu ao palco, sendo delirantemente aplaudido pela totalidade dos presentes.

Apesar de ainda jovem e da aparente alegria estampada na face, o semblante da mãe do grande vencedor denotava marcas de grande sofrimento e de perfeitamente perceptíveis sinais de agruras enfrentadas ao longo da vida... Trajava-se de forma bem simples e sua compleição física denotava uma magreza bem superior ao que deveria suportar. De mãos dadas com um não menos esquálido e franzino garotinho, que também trajava surradas vestes, subiram ao palco sendo recepcionados pessoalmente pelo Dr. Venceslau, que fez questão de abraçar a jovem senhora e oscular as faces do jovem vencedor.

Após discurso do apresentador, que enalteceu as virtudes da realização e a grande capacidade daquela criança que angariou dentre mais de 5.000 inscrições, a primazia de um primeiro lugar, houve a solicitação para que lhes fosse, na medida do possível e na capacidade do vencedor, qual foi a motivação que o levou a escrever tão inusitada frase.

Sob enorme expectativa, com voz embargada por indisfarçável emoção, a criança explicou, sonoramente e de forma perfeitamente audível e clara:

“ Eu iscrivi qui quiria ganhá um pãozinho prá podê devovê prú seu Juaquim da vendinha prá eli mandá soltá meu pai...”.

Um silêncio quase geral tomou conta do ambiente que contou somente com o som dos soluços do pequeno vencedor, iniciados logos após sua fala...

A aparentemente sofrida senhora, aconchegando seu pequeno vencedor de encontro ao peito, dirigiu-se ao Secretário Estadual da Justiça e humildemente falou:

--- Senhor doutor! Meu minino tá emocionadu... Eu possu falá pru eli?

Surpreendido pelo ‘insólito’ pedido, o Secretário aquiesceu:

--- Claro, minha senhora! Pode falar...

A senhora falando diretamente para o Secretário iniciou dizendo:

--- Senhor doutor, meu minino iscrevu esta frasi pruquê o pai deli tá preso já faz mais di um ano pruquê numa noite que nós num tinha nada prá cume, eli tava disimpregado, procurava, procurava e não achava imprego. Us minino tava choruno di fomi i ili, disisperado, saiu di casa dizenu qui ia arrumá arguma coisa prá elis cume. O cumpadi Juão conto qui eli foi inté o bar do seu Juaquim e pediu prá qui eli desse ao menos um pãozinho prá matá a fomi dos minino e o seu Juaquim quase bateu neli dizenu prá que fossi trabaiá, qui era um vagabundo, qui não ficasse importunando que eli tinha coisas mais importanti prá fazê... Nem deu tempo para que ninguém fizesse nada, meu Zé pego um pãozinho e tento corre. O pessoar que tava nu bar sigurô eli e o Seu Juaquim chamo a puliça dizendo que meu Zé tinha robado...

Houve novo silêncio geral quando a senhora, por sua vez, começou também a chorar.

No constrangimento geral na qual transformou-se a cerimônia, o mestre de cerimônias anunciou:

--- Senhoras e senhores, vamos fazer uma pequena pausa até que as coisas se normalizem...

Foi interrompido pela voz firme do Secretário que ordenou:

--- Vamos continuar...

E dirigindo-se para a senhora indagou:

--- Está em condições de prosseguir, minha senhora?

Com voz embargada e tênue, a senhora respondeu:

--- Sim senhor! Descurpe... estô um poco nervosa... Comu tava dizenu, u seu Juaquim chamo a puliça i elis já chegaru batenu no meu Zé. Cunversaru um poco com o Seu Juaquim e levaru o meu Zé prá delegacia. Nós, in casa num sabia di nada e passamu a noite sem meu Zé em casa...

Só nu otro dia é que o cumpadi Juão veio avisá que tinham prindido o meu Zé!

O Secretário, já até debruçado sobre a mesa, solicitou:

--- E então, dona! Como terminou a história?

Num suspiro sentido, a senhora complementou:

--- Senhor doutor! Meu cumpadi Juão conto qui o seu Juaquim nu otro dia, conto para quem quisesse ouvi que pago para um doutor chamado Venceslau pra que eli mantivesse o meu Zé preso pru maió tempu que fossi possiver... Intão, comu meu Zé só pegou um pãozinho para tentar matá a fome dele e dos irmãozinhos, o Zezin arresorveu escrever esta frasi para tentá ganhá um pãozinho pra mode devolvê pro Seu Juaquim pra qui eli mandi sorta o pai...