Blumenau, Uma Cidade Estranha

Acordei cedo, como sempre. Domingão. Olho para o lado e vejo minha esposa dormindo, boca semiaberta, meio que rindo. Fico querendo acreditar que ela está assim porque tivemos uma noite bem gostosa, de mimos e pegadas. Ufa, que noite quente! Levanto-me e ela fica se roçando na cama, meio que me procurando e nada de mim, somente eles, os intrusos – eles são o bando de travesseiros que ela insiste em colocar em nosso canto e que eu habilmente os jogo no chão, um por um durante a noite, mas que, quando acordo, os coloco ao seu alcance novamente e ela vai os acolhendo devagarzinho, encaixa um debaixo do braço, outro perto da testa, no meio das pernas, meu Deus! Confesso, antes eu tinha ciúme deles, por isso que dei o nome de Intrusos.

Preparei um café da manhã do jeito que ela gosta, mas não vai fazer diferença, ela vai comer frio ou ter o trabalho de esquentar. Então não vejo isso como um privilégio, somente uma ação de lembrança, de que me importo, sabendo que isso significa muito para ela.

Peguei minha carteira e fui ao mercado da Vera, como de costume, comprar umas besteirinhas para o almoço. “Bom dia, dona Vera!” Como sempre, ela nunca responde, parece que sou sempre um babaca invisível que insiste sempre em cumprimentá-la, parece até que ela gosta de saber que sempre insisto e ela sempre não responde. Enfim, vou escolhendo meus itens: cebolas, tomates, alho, açafrão, um bom vinho de Bento Gonçalves, gorgonzola, provolone e salame. Lembro que preciso de pimentões também e quando chego ao expositor, não tem mais sacolinhas. Vou ao balcão: “Dona Vera, acabaram as sacolinhas, preciso de mais algumas.” Ela responde seca, mas seca mesmo, e literalmente joga as sacolas no balcão. “Isso deve servir, Alexandre.” E, pela bilionésima vez, respondo que o meu nome é Christiano, mas deixo isso pra lá.

Me encaminho para a fila, tem umas três pessoas a minha frente, a fila está parada. O cara da minha frente já está impaciente. Eu estou rindo (devo ser um otário mesmo). A dona Vera está conversando com uma mulher em alemão na maior altura, parece que o papo está ótimo, muita risada, cara de deboche, sei lá, parecendo que estavam fofocando ou contando uma piada. Passam-se quase dez minutos e o cliente que estava a minha frente reclama. Elas xingam uns palavrões em alemão - ao menos era o que parecia - nos olham como se fôssemos gentalhas e a dona Vera enfim nos atende com cara de nojo.

Caramba. Saí do estabelecimento malzão. Que merda é essa? Fui lá, dei bom dia, fui cortês, educado, gastei minha grana suada em seu mercado e saio me sentindo um lixo. Pô, deve haver alguma explicação para o jeito que nós somos tratados por aqui.

Como sou escritor e fiz alguns 'cursinhos' de relacionamentos, sou amante da história, das letras, dos porquês, das raízes, da metanóia, do bipolarismo e dos trocentos nomes modernos mais para patologias que rendem milhões em medicamentos, cheguei em casa e fui obrigado a fritar os miolos.

Blumenau. O nome dessa cidade veio do dr. Blumenau, um homem bom que idealizou construir uma colônia agrícola dentro de Santa Catarina, um vale europeu. As coisas foram acontecendo e ficou clara a marca dos imigrantes, seu jeito desbravador de ser, sua arquitetura, sua música e dança típica. Os Blumenauenses - em sua maioria de raiz alemã, sofrida - foram juntando forças e o seu espírito empreendedor logo se mostrou uma ferramenta que mudaria destinos e impactaria o país. A cidade se tornou perfeita: ruas limpas, floridas e agradabilíssimas. Das tragédias e obstáculos, fez-se motivo para crescer e obrigação para superar a crise com determinação e trabalho.

Logo chegaram também os imigrantes italianos, os Trentinos, em 1875. Daí veio a culinária italiana, os molhos maravilhosos, massas, e o prato mais conhecido por nós, a polenta.

A cidade é tudo de bom. Vamos dar uma repassada em seus pontos fortes: a indústria têxtil é sua marca registrada, um ícone nacional; tem o setor ‘cristalino’, a fabricação de cristais, uma produção de itens que o mundo todo aprecia. As exportações dessas peças ímpares rendem faturamento suficiente para gerar empregos e fez com que famílias, antes anônimas, tornassem-se empresários de renome. O modo de fabricação que é artístico, rústico, fantástico, é alvo de pesquisas e reportagens que chamam a atenção do mundo todo; o mercado de software merece aqui uma referência, e, mais do que isso, uma reverência. É o principal produtor de softwares do Brasil, competindo mundialmente com fábricas de grande porte e com crescimento de 23% ao ano.

Por que a maioria deles é assim como a dona Vera? Soberbo, faccioso, racista, prepotente?

Quando se encontram com tanta alegria no tal do ‘Stammtisch’, na ‘Oktoberfest’, até se misturam conosco, mas fica tão claro que somos personas non gratas. As mulheres lindas, perfeitas, os caras bacanas (é assim que homem diz que o outro é bonito). Mas há racismo, e muito. Quando falo aqui de racismo, não falo de cor somente, é discriminação de raça, a raça brasileira.

Como pesquisador, compilei muita informação antes de escrever sobre isso e tive que ter muito cuidado, pois aprecio a cultura alemã e italiana, principalmente no que diz respeito a queijos, vinhos e alimentos conservados, salsichas, etc, além de sempre ter em casa minha Ilex Paraguariensis para tomar meu mate, com meus salaminhos e tal, afinal sou brasileiro e brasileiro tem de tudo: de argentino, de ‘pampa’, de samba... de alemão, de japonês, enfim, somos uma ‘mistureba’ doida.

Será que os tratamos mal quando vocês chegaram? Será que nós os exploramos? A história conta que nos estranhamos - o que é normal em uma colonização - mas que depois nos tornamos ‘amigos’. Abrimos nossa casa para vocês, gostamos de vocês e, sinceramente, se há rancor, quero ser o primeiro a pedir perdão, pois tenho só 34 anos e sou um guri frente à tamanha história.

Queria muito abraçá-los, cumprimentá-los e ser retribuído.

Acho que deveríamos começar uma festa, anual quem sabe, em que se celebre a nossa união: união de mão de obra, união do saber, união de dores e de expectativas de sermos exemplo no país em fraternidade.

Nos convidem para participar de suas tradições (uma que eu iria gostar muito é o tiro ao alvo), para dançar com vocês e encher ‘o pote de cerveja’, rir bastante de suas piadas que não entendemos, pois são em alemão.

Amo a cidade, amo a cultura de vocês. Porém, gostaria que houvesse mais amor em nosso convívio.

Espero ansiosamente esse dia chegar.

Lassen Sie uns ein Bier zusammen?

Bis später! Pass auf Dich auf!

Christiano Buys

Christiano Buys
Enviado por Christiano Buys em 06/02/2014
Reeditado em 09/02/2014
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