Os Prediletos

Perguntado à saída do Metrô a respeito da raça sobre a face da terra que poderia ser considerada predileta em relação a todas as outras, o Sábio de Etnom Oãis referiu-se àquela que optaria por manter-se rodeada “de uma corte brilhante de banqueiros, de industriais, de capitalistas e, sobretudo, de milionários, porque, na verdade, no último extremo tudo se decide pela força do dinheiro”. Seria natural, segundo ele, que tal raça aspirasse “à preponderância no ensino-nacional-econômico-político".

Ao atravessarem a rua onde pretenderiam comer um cheeseburger no Burger King em frente, o Sábio ainda teve chance de dizer que os prediletos seriam “os autores principais das pseudociências que levam as massas a sonhar com fins econômicos irrealizáveis”, e que dessa forma poderiam ser capazes de constituir “uma espécie de supergoverno”. Sustentou, antes ainda de alcançar a calçada em frente, que as outras raças não teriam a mínima noção do grau de participação dos prediletos nas legislações nacionais e internacionais.

Para o Sábio, “‘americanização’, ‘anglicização’ ou outra nacionalização qualquer” não têm qualquer sentido para os prediletos, desde que possam atuar com total liberdade na direção do apego incondicional à própria etnia.

Antes de fazerem o pedido, o Sábio pontuou como objetivo dos prediletos “fazer que o clero dos infiéis, o qual poderia obstar muitas coisas, caia em descrédito”, tornando a sua missão infrutífera. Sendo fundamental a preocupação de espalhar “a discórdia e o rancor entre os infiéis”.

Ao sentarem-se com a Coca-Cola e o cheeseburger cada um, o Sábio alertou para a circunstância de que “a imprensa mundial recebe todas as notícias exclusivamente por meio de algumas agências que as colhem em todo o globo”. E que, sendo as referidas agências de propriedade dos prediletos, elas só deveriam publicar o que eles permitissem. Na certeza de que, segundo eles, “o mundo olha os acontecimentos mundiais através das lentes que nós lhe pomos nos olhos”. O interlocutor, que não se impressionara tanto até então, arregalou os olhos ao ouvir a afirmação de que os prediletos acreditavam-se como sendo “realmente a única nação que conhece os segredos das demais”.

Mas achou graça quando o Sábio lhe disse que os prediletos “consideram sua dispersão pelo mundo uma felicidade e uma vantagem outorgada pelo seu Deus, porque esta circunstância lhes facilitará a realização do seu plano de hegemonia mundial”. O Sábio, contudo, não sorriu. E, falando como se fosse um dos prediletos, repetiu o que havia decorado: “Deus nos deu a nós, seu povo predileto, a dispersão como uma bênção e isto, que é para o mundo nossa fraqueza, constitui nossa maior força. É o que nos levará aos umbrais do domínio da terra habitada”.

O interlocutor, mantendo-se sério novamente, deu chance a que o Sábio prosseguisse, ambos ainda sem tocarem em suas refeições, para dizer que os prediletos acreditavam ter “adquirido influência sobre a justiça, as leis eleitorais, a imprensa, a liberdade individual e principalmente sobre a educação e a cultura, esteios principais de toda livre existência humana. Mediante métodos educativos teóricos e práticos, que julgamos francamente falsos, mas que nós inspiramos, desorientamos, atrofiamos e pervertemos a mocidade infiel”.

Interlocutor estupefato e Sábio circunspecto, ambos começaram finalmente a comer.

Ao interlocutor chegaram os nomes de Marx, Lenin e Trotsky quando ouviu do Sábio a referência à retirada “dos pequenos aos seus tutores naturais, da sua casa paterna, da igreja e da escola” para entrega-los “autoritariamente a ‘centros’, a ‘escolas científicas’ e a outras instituições confiadas a ‘peritos diretores’, sistema este que habitua a criança a se não confiar à comunidade natural e a esperar tudo do Estado”.

Tendo praticamente concluído sua refeição, o Sábio aludiu a “manifestações naturais da convicção arraigada” em todo integrante da raça predileta “de que é membro de uma raça eleita, dotada das faculdades necessárias para educar as raças inferiores, ponto de vista sob o qual julga o resto da humanidade”.

O encontro chegou praticamente ao fim, com os dois plenamente satisfeitos com suas refeições, quando o Sábio referiu-se ao fato de uma jovem representante da raça predileta ter desposado um jornalista de outra raça, tendo sido por isso objeto de “lúgubres exéquias” e declarada morta para todo o conjunto dos prediletos.

Ao se despedirem finalmente, o interlocutor lembrou-se de que, se estivesse no Brasil, poderia procurar por um armazém onde encontrasse o saboroso Café Predileto.

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 22/07/2015
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