Como Nietzsche mudou a nossa vida

Você pode dizer que não mudou. Pode dizer que não concorda com nada que ele disse e que ele seja um racista machista anticristão, castigado, merecidamente, com a loucura. Pode dizer ainda que não tem a mínima ideia de quem seja e que nem se importa. Na verdade, muitas ideias que assumimos como nossas as temos devido a grandes pensadores, os quais, muitas vezes, ignoramos por completo. E é, assim-assado, dessa forma que me refiro ao filósofo alemão que implementou o projeto da transmutação de todos os valores.

Ressalte-se, pois, que falo sobre Nietzsche aqui não porque pense que se deva a ele, mais do que a outros intelectuais, a definitiva mudança em nossas vidas. Me usarei, na verdade, de seu nome para fazer compreender como a teia de pensamentos que nos enredam e nos fazem ser o que somos não depende da nossa vontade em si, nem ao menos de nossa posição frente às ideias com que nos deparamos. Como não somos seres acabados, iluminados por essência, mas produtos de uma realidade intelectual, que nos conduz perante a evolução de nossa história, independentemente que a ignoremos.

De definitivo, nada somos. A história é entrelaçada por vozes diversas, que, de maneira ou outra, ecoam entonando o presente, a vida que vivemos, o tempo do agora, constantemente sob revisão e evolução. Nietzsche, entremeio essas vozes, foi e é ainda um arauto, um músico de partituras ilegíveis, ou, no mínimo, inexecutáveis por quaisquer uns. Não temos ainda dedos ágeis o suficiente para compreender seu concerto: aristocrático, ególatra a nosso entendimento, transmutador, ateu (descrente desde Deus à matemática), cruel, segundo nossa cristandade. Em verdade, solitário, profético, poético, ímpar, tornou-se um filósofo odiado, rejeitado veementemente e muito mal compreendido, justamente porque seu pensamento ultrapassa a nossa história cristã, em desenvolvimento pelo menos desde Sócrates. Entretanto, Nietzsche é responsável por boa parte do que somos hoje, por muito da nossa maneira de pensar, mesmo que nunca tenhamos pensado sobre isso.

Como principal ícone de transformação de nosso contexto histórico, salvaguardamos Jesus de Nazaré, chamado de Cristo, que representa, segundo a tradição, Deus encarnado. No entanto, Jesus não é verdadeiramente o que recebemos dele — já que desde a propagação do cristianismo pelo império romano o recebemos por imposição, não como pensamento, não tão-somente no coração. Estamos atrelados a ele sob o preceito do castigo da alma, da condenação, do fogo do inferno. Assim, amar Jesus parece ser questão de obrigação, porque quem não o ama é mau, está condenado ao eterno ranger de dentes, a um sofrimento destemido. Um amar desesperado e servil, cheio de medo e, por outro lado, motivo de grandes esperanças e de resignação.

Se Jesus chegasse até nós como Nietzsche chegou, inconscientemente, talvez tivesse alcançado verdadeiramente o que queria: mudar os corações. Contudo, poucos são os que podem compreender o nazareno isentos do que manda a igreja, compreendê-lo em palavra, em verbo, e não em instituição, — já que é por instituição difundida “sua” palavra, de forma dogmática.

Nietzsche, pelo contrário, sofre imensa repreensão, quase não se fazendo perceber que em nossa vivência habita e cada vez mais se interioriza à nossa maneira de pensar. Ele acresceu à nossa história a contestação sobre as mais sacras verdades, nos fazendo duvidar do óbvio e do hábito, e, depois disso, o homem nunca mais pode crer fielmente em nada. Nietzsche clamara impreterivelmente a atenção aos dogmas e às tradições da história, a nos mostrar, com vigor, que nossas mais imponentes versões da vida não eram senão versões, não são senão invenções, ficções. Desse ponto para diante, torna-se impossível sermos obsoletos, prendermo-nos inocentemente a conceitos de absolutos, ou de imutáveis.

É comum ouvirmos que o filósofo não passa de um tipo mítico, como se suas palavras fossem uma poesia inócua, sem realidade ou efetividade. Desprezam, porém, que a modernidade intelectual rende-lhe culto, ama-o ou refuta-o: Heidegger, Foucault, Deleuze são alguns exemplos de influência. Ouso apontar ainda as confluências possíveis com Einstein e Freud, por exemplo. Todos estes, como sabemos, são prospectos da mais próxima modernidade. Assim, nós mesmos podemos nos considerar também parte desse rol, em toda a nossa simplicidade, já que somos fruto de um pensamento que nos precede e que passa inevitavelmente a nos habitar, desde o nascimento e ainda na barriga de nossas mães. E sendo Nietzsche esse proclamado arauto do tempo moderno, não seríamos nós, conclamados homens pós-modernos, parte dessa teia de avanços intelectuais?

A verdade é que pensamos pensar. Nos afirmamos dizendo: “Eu penso isso, eu falo o que penso, eu sou dono de mim”. No entanto, não passamos de um emaranhado polifônico de vozes que aos ouvidos de nossos tatatatatatataravós chegaram e, sem imposição, sem que as percebêssemos, passaram a ecoar através de nossas bocas e de nossos atos. E das mais sonoras dessas vozes, desde que se enunciou, é deveras a do filósofo alemão, amparado em Schopenhauer, que nos faz perceber que a história não é algo consolidado, sua experiência e a guarda da tradição não são demonstrativos de progresso nem prosperidade e que nada se pode afirmar solidamente, quando tudo é somente interpretação. Assim, anunciando enfim o seio da modernidade e o desenrolar de um novo processo histórico, o da transmutação, da ressignificação, ou da criação de novos valores; projeto já encravado em nossas consciências, mesmo que queiramos, por hipocrisia ou medo, recusar.

Jesus realmente mudou nossas vidas, mas Copérnico, revisando nossa posição no universo, transformou a própria visão cristã. Galileu Galilei, contestando Aristóteles, possibilitou a dessacralização de sua inquestionável autoridade, levando a ciência a avançar. Einstein, concebendo a Relatividade, desfez a visão medíocre que tínhamos sobre o tempo e o espaço. A física quântica nos lançou a um mar matemático insolúvel, cheio de possibilidades. E nós, cidadãos comuns, passamos despercebidamente a conceber as coisas de maneira diferente, conforme essas ideias foram ecoando na poesia, nos romances, no teatro, nos jornais e revistas, nos meios de comunicação, na televisão. E Nietzsche ecoou e ecoa insistentemente em toda a vida intelectual, sendo atualmente um dos filósofos de maior popularidade, até mesmo ganhando repercussão em obras de imensa mediocridade. Por fim, ganhou atualmente um tipo de tratamento interpretativo que se resolve em obras de autoajuda, claro que, neste caso, sua voz deturpa-se.

Dessa maneira, embora ignoremos nossa participação nessa cadeia de pensamentos complexos, pelo fato de não nos envolvermos com eles diretamente, não somos senão fruto de grandes operações intelectuais, desde Salomão a Sartre, desde Platão ao feminismo, as quais levamos a cabo. Pensamentos que se unem a ações ideológicas e que, quando em grande escala, passam a interagir conosco imperceptivelmente, modificando tudo ao redor. E se um dia formos capazes de transformar a realidade como Nietzsche requer, aí então seremos novos homens, teremos vencido séculos e séculos de história estigmatizada. Teremos, quem sabe, por fim, nos libertado de vez do sofrimento da vida, para nos encontrar com a alegria na tragédia que é a existência.