O FETICHE AUTORITÁRIO

Em termos de vivência da história recente do Brasil, atualmente, temos, grosso modo, três grupos de profissionais no país: aqueles que, à época do golpe militar de 1964, estavam em plena atividade profissional, hoje minoria, (praticamente todos aposentados); os que eram estudantes ou nasceram no auge do regime militar (a maioria em atividade hoje); e os que nasceram nos últimos anos ou logo após o fim do regime (a segunda maior parte em atividade).

Isso, sozinho, não explica tudo, mas lança luzes importantes sobre o momento de polarização político-ideológico que o Brasil vive.

Quem viveu com maior intensidade esse período faz parte do grupo, hoje, economicamente inativo (aposentados). Os que tiverem uma vivência mais teórica do que prática daquele momento (estudantes da época) estão divididos em dois grupos bem distintos: os devotadamente favorável e os radicalmente contra os regimes totalitaristas. O terceiro grupo (dos que nasceram no fim ou logo após o regime) é o mais vulnerável à tentação totalitarista (o fetiche autoritário) por não ter, como os dois anteriores, um conhecimento de vivência daquele período.

Vivemos um momento delicado e perigoso. Hoje, a sociedade brasileira é um solo bastante fértil para a germinação de ideologias fascistas e totalitaristas – “estamos órfãos e carentes de um messias”. Há um vácuo favorável a esse tipo de expediente nos espaços de poder mais relevantes do país; isso, repito, é perigoso. O caos político, econômico e institucional – ainda que (ou, talvez, mais ainda quando) instalado não naturalmente, mas como parte de um projeto de ascensão ao poder, o que parece ser a nossa realidade atual – é, ao mesmo tempo, pressuposto e indicativo básico para a instalação desses tipos de regime, assim mostra a História.

Causa-me apreensão, entre outras demonstrações de ameaças sérias à frágil Democracia brasileira, a crescente notoriedade e dependência do poder Judiciário – o menos republicano dos três – no cenário das mais importantes decisões políticas (e não jurídicas) do país. No complexo e delicado jogo do sistema democrático, a meu ver, deve valer a máxima do simples e popular jogo de futebol: juiz bom é juiz que passa despercebido durante a partida. Qualquer comum sabe disso: quando, em uma partida de futebol, o principal destaque foi o árbitro, o jogo não prestou. Essa máxima vale, com suas consideradas ressalvas, evidentemente, para o jogo do mundo político.

Vivemos um momento delicado, repito.

É temerária a naturalidade com que uma parcela tão grande e tão influente da sociedade (como a classe média) sai às ruas para ovacionar e aclamar como herói um representante de um poder que, embora constitucionalmente fazendo parte da República Democrática, não tem nenhum dos seus integrantes eleitos pelo povo e não está submetido a nenhum tipo de controle externo e popular, pelo contrário, é sabidamente por todos, dos poderes, o mais elitizado, o mais hermético, o mais corporativista, ou mais autoritário, o mais distinto e o mais distante do povo.

Causa-me certa apreensão pessoas irem às ruas não para defenderem um grande debate em busca de saídas para o país, mas para ratificarem seu apoio a um pré-estado de exceção e, exaustivamente, clamarem por mais rigor – leia-se: mais decisões arbitrárias e mais ingerência dos magistrados – da Justiça em lugar de mais diálogo e da construção de uma agenda proativa para o país.

Embora seja comum se falar em governantes ditadores, em certo sentido, não existem governantes ditadores; ditadora é a parcela da população que o apoia. Nenhum governo totalitarista se instala e, principalmente, permanece sem a aceitação (leia-se: apoio) de setores importantes da sociedade, inclusive dos indivíduos, desde o cidadão comum aos diversos profissionais mais intelectualizados e mais gabaritados.

Não são apenas os governos democráticos que precisam de base de apoio. As ditaduras também, e, diga-se de passagem, apoio mais eficaz e mais qualificado até.

Não vejo como não sentir apreensão vendo, cada dia, ganhar mais notoriedade, mais popularidade e, por conseguinte, mais poder e mais legitimidade, dos três, o poder (Judiciário) que, constituitiva e historicamente, é o mais fechado, o mais arbitrário, o mais elitizado e, como consequência, o menos representativo, uma vez que nenhum de seus integrantes, em nenhuma das esferas, é escolhido por vontade popular.

Ante essa situação, não há como não perguntar: o que queremos mesmo? Um sistema (republicano e democrático) fulcrado na participação popular e no debate exaustivo, onde os poderes representativos (Executivo e Legislativo) sejam os protagonistas dessa representatividade, ou um sistema (monárquico totalitarista), onde tenha mais legitimidade quem menos tem representatividade; onde a pena do magistrado tenha mais força que o voto do eleitor?

Ademais, é de bom alvitre lembrar que nenhum ditador conquista o trono sem antes conquistar corações. A história de Hitler que o diga.

Precisamos estar atentos ao fetiche do autoritarismo; ele tem os seus encantos e, por isso, os seus adeptos.