Reflexões de Quarentena - Qual o melhor presente de aniversário?

21.03.2020

Dia 24 de março de 2020, faço 30 anos. Nascida na gloriosa década de noventa, onde bombavam os vídeos clipes, os walkmans e brinquedos como bate e bate, tamagoshi, barbies, além das clássicas bolas de gudes.

Hoje, dia 21 de março me ponho a refletir sobre a minha situação pessoal e a respeito do contexto lastimável em que se encontra o nosso país.

A situação pessoal apresenta algumas novidades. Estou solteira, acabei de sair de um relacionamento difícil que durou por cerca de quase 7 anos. Morando sozinha até que tenho me virado bem. Mesmo em quarentena, tenho recebido cotidianamente demonstrações de afeto, carinho, e até declarações de amor, e preocupação para com a minha pessoa. O que me faz chegar a conclusão de que estar morando em um espaço sozinha, não é sinônimo de estar abandonado. Às vezes nos encontramos em situações de abandono e de extremo vazio mesmo estando rodeados de pessoas.

Não estou podendo ir visitar à minha família, pois como todos sabem, estamos expostos ao vírus Covit-19, e não podemos vacilar neste questão. Com uma mãe idosa e uma irmã especial, não posso arriscar a vida delas só para comemorar um aniversário de 30 anos. Trinta anos é muita coisa, são três décadas de vida. Mas, acabei chegando à conclusão que terei nove meses para saldar este novo ciclo em minha vida.

No campo profissional, estou desempregada. Escolhi uma profissão que em nenhum momento me trouxe arrependimento: a de professora de História. Terminando um doutorado, fazendo um curso de Psicanálise, desempenhando a função de professora de Dança do Ventre, assim me encontro.

E a situação do país? Terrível, estamos deixados ao léu sem nenhum apoio do Governo Federal. Um Estado que se mostra perdido, sem o minimo de responsabilidade ou de seriedade para se lidar com um assunto tão delicado e perigoso que é essa Pandemia em que vivemos.

Diante destes aspectos da minha vida, decidi refletir nessa manhã qual seria o melhor presente de aniversário que eu poderia receber neste ano.

Percebi que o melhor presente eu já havia recebido: a liberdade de ser eu mesma. Sim, o maior presente foi a liberdade. A liberdade da condição feminina, de desempenhar o tipo de papel social de mulher que você escolheu, é o melhor presente. A liberdade do empoderamento. A liberdade de poder acordar se amando, tendo auto estima, fazendo o que se quer, o que se tem vontade de fazer, sem se preocupar com a opinião dos outros. Sem se preocupar com as ideias tradicionais de como deve ser uma boa mulher. Isso não me exime de ter problemas, de enfrentar dificuldades, mas eu enfrento as batalhas cotidianas da vida com mais força, tranquilidade, beleza, aceitação, alegria e amor.

O melhor presente que uma mulher pode dar a si mesma é ter o direito de ser ela mesma. Eu sei que existem mulheres em tamanhas condições de vulnerabilidade social e afetiva que a impedem de ser elas mesmas, de ser o que escolheram ou o que desejaram para suas vidas. Para uma mulher ser livre, é imprescindível que ela desperte para três elementos básicos: sua classe social, sua raça (etnicidade ou ascendências étnicas) e seu gênero.

A classe social diz muito a respeito de suas origens sociais, a que grupo social ela pertence. Eu por exemplo pertenço a um grupo social marginalizado da sociedade, sou uma moça de origem pobre, nascida do Rio de Janeiro, em um sub bairro pobre de Guaratiba, bairro pobre da zona oeste fluminense (carioca). Filha de uma ex trabalhadora de fábrica e ex-auxiliar de serviços gerais, e de pai ausente, cheguei a universidade através da educação pública, de professores excelentes, do apoio de várias pessoas e também do meu esforço.

A raça aponta para as suas questões étnicas. O que você sabe sobre a etnia ou etnias a que pertence? Sobre as culturas europeias nós já sabemos o bastante. Eu chamo atenção a respeito do que nós sabemos sobre as culturas marginalizadas desses país, principalmente as de matrizes africanas e indígenas. O que você e eu compreendemos sobre as ancestralidades que essas culturas que temos presentes em nossas linhagens nos proporciona? Será que não temos as silenciado em nosso inconsciente? Será que não temos nos matado a cada dia com vergonha de assumir as ancestralidades que recebemos dessas culturas? Será que isso não reflete em nossa auto estima, em nosso olhar no espelho e no não queremos enxergar que somos negros e indígenas? Temos procurado em nosso semblante apenas aspectos brancos, e essas características tem nos adoecido, nos matado, nos transformado em mortos vivos.

Por último, falo sobre a questão de gênero. Nas relações de poder que implicam o masculino e o feminino, da masculinidade e da feminilidade, do binarismo que sempre procuramos do que ser homem e do que é ser mulher. A masculinidade se materializa em atitudes abusivas, tóxicas e opressivas de dominação contra a mulher e contra tudo que pode ser dominado, subjugado e oprimido pelo homem, ou por quem o assim entende ser.

E a feminilidade, por um tipo de mulher ideal, feminina, doce, bela, recatada, educada, que se subjuga, se anula, se silencia para nutrir e proteger o lar, as pessoas, a sociedade. Mulher que compete, que encontra na outra, ou outras, a rivalidade. Mulher que precisa estar em dia com a beleza midiática. Que precisa estar casada para estar completa e feliz, que não pode se destacar no trabalho, que sempre está abaixo dos homens. Mulher que é considerada louca ou histérica. Mulher que apanha e ainda entende que apanhou porque mereceu. Mulher que é assassinada porque levantou a sua voz, como Marielle Franco ou como a irmã Dorothy. Essa foi a feminilidade que construímos ao longo dos anos de história do país e da nossa sociedade ocidental. Sobre essa, precisa ser desconstruída, questionada e urgentemente vencida. Precisamos nos apoiar em outras formas de condição feminina. A ancestralidade e os papeis sociais que as mulheres assumiram e assumem nas culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras, vem nos dar boas respostas.

Finalizo este longo texto, dizendo que o melhor presente de aniversário, eu recebi: a liberdade e a consciência dessas questões. O despertar de uma sociedade de mortos vivos. De pessoas que olham, mas não enxergam, veem, mas não reparam. Estão cegos. Cegos pelo medo, pelos genocídios, por cumprir ordens, por magias brancas e europeias, pelo colonialismo, pela submissão, pelo silenciamento. É tempo de despertar.

Carmen Rosa de Jesus
Enviado por Carmen Rosa de Jesus em 21/03/2020
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