UM MISERÁVEL POR OPÇÃO

Prólogo

02/09/2021 — Quando o tempo esfria e a chuva cai não saio de minha cama. Sob os lençóis tépidos, ouvindo o marulhar da água doce, mesclo esse som mavioso com uma música imaginária para urdir um novo texto.

Ocorre que, nem sempre acontece o necessário “insight” para eu escrever algo compreensível, bom e satisfatório. O “insight” também está relacionado com a capacidade de discernimento, pode ser descrito como uma espécie de epifania, Isto é, sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas.

NO DIA SEGUINTE — 03/09/2021

Necessitando de uma inspiração para eu escrever sobre um texto novo, fui cedo ao Açude Novo, sito nas proximidades do Terminal de Integração, em Campina Grande, PB, para assistir “in loco” a distribuição de alimentos (almoço) aos pobres em situação de rua.

Naquele local pessoas paupérrimas incitam compaixão, algumas por terem sido alvo de alguma indesejável desgraça. Minha intenção era fazer uma entrevista com um daqueles pedintes. Há quem diga que levar uma vida miserável requer um esforço sobre-humano, não é qualquer pessoa que consegue chegar ao fundo do poço e arruinar o seu próprio bem-estar durante 24 horas por dia, sete dias por semana.

07h37min — A ENTREVISTA

Naquele horário já havia, numa fila improvisada, algumas pessoas à espera do almoço. Aproximei-me de um homem alto, malvestido, com ares de impaciência e um olhar bovino.

— Bom dia! Tudo bem? Meu nome é Wilson. Não sou jornalista nem repórter, mas apenas um curioso. Posso lhe fazer algumas perguntas? Talvez o senhor possa me ajudar.

— Bom dia senhor.... Meu nome é Jonas Cordeiro. Eu lhe ajudar? Essa é boa! — Disse o homem, olhando-me desconfiado, dos pés à cabeça, e cofiando uma barba rala sob uma máscara bege, tão sebosa e encardida o quanto o boné de pala quebrada e suja. Sua camisa puída, de cor indefinida, fedia a mofo.

— O senhor vem sempre aqui pegar alguma comida? — Perguntei com voz sussurrante em respeito aos outros mendigos nas proximidades.

— Sim. Sem essa ajuda eu não teria como sobreviver. Sou um excluído social e a minha família não quer saber de mim porque sou um miserável sem eira nem beira. — Fazia tempo que eu não ouvia alguém dizer essa expressão: “sem eira nem beira”.

— Mas o senhor não é um desprovido de valor, isto é, sem importância. O senhor é uma pessoa especial e filho de Deus igual a mim.

— Ah! Minhas filhas e ex-mulher não pensam assim. Tenho três filhas que não sei nem onde moram porque elas não me dizem onde se escondem. — Os olhos do mendigo se anuviaram — mas se eu tivesse voltado do Rio de Janeiro com muito dinheiro elas certamente iriam me convidar para um cachorro-quente com café. — Completou o homem aspergindo gotículas de cuspe, em forma de espuma, envoltas em fétido hálito fecal.

— O que o senhor fez de tão grave para receber essa cruel e desumana exclusão fraterna?

— Quando elas, minhas filhas, eram pequenas fiquei desempregado aqui em Campina Grande. Um irmão me ajudou e fui para o Rio de janeiro para trabalhar e enviar o sustento da esposa e meninas.

Fui embora porque além do desemprego havia muitas brigas com a esposa. Cheguei a ser preso por haver agredido minha mulher e fui humilhado pela polícia; também fui alvo de piadas pelos vizinhos.

Com pouca instrução e sem uma boa profissão, trabalhei de porteiro com carteira assinada por pouco tempo e segurança ostensiva sem carteira assinada por um longo período. Doido de saudade das meninas larguei tudo. Não recebi nenhuma indenização trabalhista e voltei para Campina Grande sem nenhum dinheiro em setembro de 2018.

Nesse mesmo ano descobri que, em sigilo, provavelmente por orientação da família, minha esposa havia se divorciado de mim em 2012. Não pude mais voltar para casa e receber o abraço de minhas filhas que, iguais a mim, foram e são vítimas de alienação parental.

Elas foram preparadas, manipuladas, para me hostilizar... Desde então estou sobrevivendo graças a caridade alheia. — Alienação parental é o processo psicológico e social através do qual uma pessoa manipula o filho (a) para afastá-lo (a) do outro genitor. — (N. do Autor.)

Envelheci. Não sou bem qualificado em nenhuma profissão. Não sei dirigir. Não consigo pilotar uma moto. Não sei de nada sobre o básico de informática. Não arranjo emprego. Sou um fracassado. Já estou com sessenta e dois anos de idade e não progredi em nada. Pelo contrário, me transformei nisso que o senhor está vendo. — Disse, apontando para o próprio corpo esquálido e continuou se vitimizando.

Vivo da caridade dos outros. Se há comida venho buscar. Caso contrário faço dieta. De qualquer forma sou feliz. Creio em Deus. O cristão não tem que se preocupar com o futuro, com o dia de amanhã. — Esboçou um sorriso amarelo, mostrando os dentes estragados e malcuidados. A tentativa de sorrir mais parecia um esgar de dor e tristeza.

MEU ENTENDIMENTO ENCERRANDO A ENTREVISTA

Há deficiências físicas ou mentais tão severas que limitam seus portadores ao extremo. Ademais, existem as limitações socioeconômicas, culturais, ambientais (provocadas pela natureza). Algumas dessas limitações podem ser superadas no todo ou em parte, mas há outras que obstam totalmente as mais gratificantes iniciativas.

Não existe nada de errado em admitirmos nossas limitações e fracassos passados, pois realmente todos nós os temos. Eu diria que os admitir é essencial. Todos temos limitações. E, às vezes, elas nos fazem sentir inadequados, impotentes, incapazes para os desafios que estão diante de nós. A escravidão pela falta de oportunidade é pior do que a manutenção de alguém num estado de miséria pelo abandono social e afetivo.

CONCLUSÃO

Durante a entrevista o homem defendeu, de forma fervorosa, o livre-arbítrio. Citou “Deus proverá” algumas vezes! Seria essa a livre opção dele? Queria ele me dizer que era MISERÁVEL POR OPÇÃO? Estaria eu diante de um fanático religioso que fazia da religiosidade o seu precioso ópio?

Enfim, pude compreender o porquê daquele homem (senhor Jonas Cordeiro) haver se transformado em um mendigo. Entendi que a falta de qualificação associada a interpretação errada que ele fazia do que está na Bíblia (Mateus 6–34) foi a principal causa de sua atual desgraça.

Mateus 6–34: “Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.”.

O não se preocupar com o dia de amanhã, no entendimento torto daquele cidadão, se transmudou em severa desídia pela NÃO PREPARAÇÃO PARA A VELHICE (Grifei) e ócio danoso potencializado pelos ressentimentos, maquinações e rancores familiares.

Será que aquele homem, excluído pela sociedade e família, não se qualificando, não se preparando para o rigoroso inverno que representa a velhice, estaria errado esperando de braços cruzados por um milagre na forma do DEUS PROVERÁ?

Em Timóteo 3: 1–5 podemos ler: “1. Saiba disto: nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis. 2. Os homens serão egoístas, avarentos, presunçosos, arrogantes, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios, 3. sem amor pela família, irreconciliáveis, caluniadores, sem domínio próprio, cruéis, inimigos do bem, 4. traidores, precipitados, soberbos, mais amantes dos prazeres do que amigos de Deus, 5. tendo aparência de piedade, mas negando o seu poder. Afaste-se desses também.”.

Afastei-me do miserável homem. Dei-lhe uma generosa gratificação em dinheiro. Disse-lhe para ter fé em Deus porque ele, mais cedo ou mais tarde, proverá e segui, pesaroso e reflexivo, meu caminho de volta ao lar.