O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DA MANCHA

Em não havendo restrições quanto ao romance de Cervantes, obra prima consagrada ao longo dos seus 400 anos de idade, o foco literário volta-se para as traduções, como esta última anunciada na divulgação feita por Gustavo Bernardo, saída n’ O Globo Prosa & Verso de 14/01/2006 [O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha: Primeiro Livro, de Miguel de Cervantes Saavedra. Tradução de Carlos Nougué e José Luis Sanchez. Editora Record, 570 páginas].

Existe uma analogia com outras artimanhas: no futebol, por exemplo, o técnico se arvorou de maioral. Não é mais o jogador o centro das atenções, nem o craque, nem o goleador. Como por um milagre se descobriu que o futebol não existiria sem aquela figura que fica à margem do campo fazendo gestos e mímicas, inventando uma linguagem marginal, que só ele entende.

Vaidade das vaidades! Ora, mas no teatro também foi assim. Que seria de Shakespeare, de Moliére ou Brecht ou Becket se não fosse a inventividade criativa e genial dos montadores? Pois, pois, cada nova apresentação é uma releitura não autorizada. Aonde se desemboca na pura verdade: a maioria das montagens modernas está tão distante da produção inicial que do autor mesmo sobram apenas o título e o texto. Quanto ao contexto...

Assim é que as novas traduções, de uns tempos para cá, têm como objetivo principal caracterizar-se como a mais atual, a especial, a novidade. E para ser especial e vendável, tem de trazer em si algo de novidade que justifique não só a aquisição física do exemplar, mas que também traga prazer à leitura. Um objetivo secundário – ainda que seja anunciado nas primeiras linhas – é o de cooptar a linguagem quinhentista de Cervantes, trazendo-a para ser digerida e consumida nos dias atuais.

Isso já foi tentado com outros livros – a Bíblia – por muitas outras editoras, como na recente tradução feita para a Editora 34, segundo a qual aquele era, sim, o Quixote definitivo, atualizado e normalizado para o brasileiro dos nossos tempos. Mas também as traduções têm vida breve, como as mariposas. A singularidade é que esta edição, bem recente (2005), que provavelmente deu muito trabalho a seus produtores, outros já julgaram superada, descartável, de ontem e tome tradução! Vem coisa nova por aí...

Para isso é mister dar ares de modernidade, de coisa nova, assim como é propagado. Esta tradução, feita por brasileiro e espanhol, revela sutilezas da obra-prima Cervantes (sic). É como ressalta Gustavo Bernardo na divulgação. Baseados em quê os tradutores desvendaram tais sutilezas? Em busca da solução para três incógnitas, compactadas numa só: como escreveria Cervantes o Quixote no português de sua época, mas de modo tal que não perdesse o sabor hispânico de então e fosse compreensível para o leitor de hoje?

Pois não é que sem querer Gustavo Bernardo coloca uma questão que bem pode ser aproveitada em quase todos os vestibulares vindouros? Sim, leiam bem, repitam a leitura mais uma vez, mais outra vez como se faz no vestibular e então respondam: como? Sim, como escreveria Cervantes o Quixote no português de sua época, mas de modo tal que não perdesse o sabor hispânico de então e fosse compreensível para o leitor de hoje?

Em seguida a essa contundente questão – que se nos concebe irrespondível – Gustavo Bernardo enumera as enormes dificuldades e desafios enfrentados pela dupla de tradutores, que em essência são os mesmíssimos já enfrentados outrora por inúmeros outros tradutores de todas as partes do mundo. A viagem da tradução é uma odisséia sem fim. É, porém, assunto totêmico, próprio para tradutores, nunca para resenhistas...

Neste caso em particular, porém, nós, que somos simples admiradores da obra de Cervantes, temos a obrigação de meter o bedelho. Isto porque os tradutores Nougué e Sanchez ousaram em matéria que nenhum outro havia se atrevido: mexer no título da obra. Sim, porque desde longo tempo o título da obra vem merecendo algumas observações, muitas ressalvas, escassas contestações, até medo, mas ninguém havia ousado adulterá-lo como agora foi feito.

O título original é: EL INGENIOSO HIDALGO DON QUIJOTE DE LA MANCHA. Primeiro vem o caso da expressão “Ingenioso” que aqui se traduz por Engenhoso. Este caso, por exemplo, já é merecedor de alguma discussão. A expressão ingénio, de onde vem o ingenioso, é irmão do nosso genioso (genial), bem diferente do nosso engenho e, por extensão, do engenhoso que é sempre utilizado para traduzi-lo. Ingénio fragmenta-se em in-génio = gênio interior. Para evitar digressões que poderiam levar ao didatismo desnecessário, o resumo da ópera é o seguinte: ao rigor do pé da letra, uma das opções para traduzir o ingenioso para o brasileiro, seria a expressão genial. Então teríamos: O GENIAL FIDALGO DON QUIXOTE DE LA MANCHA.

O caso da palavra Fidalgo já foi vastamente esclarecido pelo escritor marroquino Fernán Arrabal no livro “Um escravo chamado Cervantes”, também da Record e também traduzido por Carlos Nougué. Fidalgo, segundo Arrabal, significa filho de algo. A segunda versão seria: O GENIAL FILHO DE ALGO DON QUIXOTE DE LA MANCHA.

Até o nome do homem foi ameaçado. Vejamos a justificativa para tal, fazendo um flashback das palavras de Gustavo Bernardo: “Quijote” corresponde à peça da armadura que cobre a coxa e deveria ser traduzida para “coxote”, mantendo a terminação “ote” que, em espanhol, tem sentido depreciativo. Pois para mim, um leigo em espanhol, diria que Cervantes estava era fazendo uma gozação a si mesmo, ou seja, à sua condição de manco, coxo – portanto coxote... – mas, como disse, sou asno em espanhol! Então fica só a provocação. Aí explicam o temor de mexer em expressões (quixote, quixotesco e outros derivados) que se tornaram proverbiais em nossa língua Graças a Deus os tradutores acharam temeridade adulterá-la. Caso contrário toparíamos com: O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DE LA MANCHA.

Mas, êpa! de La Mancha?? Aqui, sem querer, tocamos na principal execração de dupla de tradutores Nougué & Sanchez. Pois não é que ousaram modificar o título da obra aportuguesando o Don Quixote de La Mancha para Dom Quixote da Mancha?? Mas a justificativa para adulterar o de La Mancha para da Mancha é realmente trágica. Quem diz é Gustavo Bernardo: “Mas contra as traduções anteriores, optaram “da Mancha” e não “de La Mancha”, se em português se fala na Espanha Central como “a Mancha”.

Péra aí! Eu disse que era leigo em espanhol, mas também não é tanto assim. Em algumas regiões da Espanha e de Portugal – principalmente na Galícia, noroeste espanhol – as cidades são realmente denominadas assim: A Coruña (La Coruña), A Estrada (La Estrada), Oporto (Porto) – nossa muito bem conhecida cidade portuguesa, aquela do vinho de lá mesmo.

Mas não me consta que La Mancha seja chamada A Mancha, porque La Mancha fica na região de Castilla que, como todos sabem, se fala o castelhano. Saibam mais: La Comunidad Autónoma de Castilla-La Mancha es una comunidad enclavada en el corazón de la Península Ibérica. Está formada por las provincias de Albacete, Ciudad Real, Cuenca, Guadalajara y Toledo, siendo ésta última la capital. (http://www.uclm.es)

Mas se querem ousar, então vamos pelo menos obedecer à escrita regional, sem adulterá-la! Ainda mais com o apoio do Instituto Cervantes? O verdadeiro título que a dupla sertaneja de tradutores Nougué & Sanchez deveria usar é: O engenhoso fidalgo D. Quixote de A Mancha (ou d’A Mancha). Ousem, mas ousem como cavaleiros, valentes, corajosos, assumidos. Não chamem “La Mancha” de “Mancha”, pois é certo que os naturais da terra de Quixote não vão gostar nadinha de vê-la com tal nódoa, mácula, labéu, desonra, tacha....

Muito mais do que foi dito na resenha de Gustavo Bernardo mereceria outras reparações – por exemplo, a tradução de en cuanto pelo vicioso enquanto, tão em moda entre nossos literatos – entre outras coisinhas. Mas não deste escriba amador (que se entremeia aqui enquanto poeta), mas de gente gabaritada e do mesmo nível que o autor da resenha, professor de Teoria da Literatura na UERJ.

O meu caso pessoal e que motivou estas linhas, é mesmo com o senhor Carlos Nougué, Prêmio Jabuti de Tradução – seja lá o que for isso – que me fez sofrer a algum tempo atrás com a leitura de uma tradução catastrófica do livro Um escravo chamado Cervantes (Record 1999), de autoria do já mencionado escritor marroquino Fernán Arrabal. Até para se traduzir um porralouca é preciso algum talento.

Tenho a obrigação de fazer uma ressalva positiva, pois, ainda bem que os tradutores Nougué & Sanchez refrearam a dosagem de ousadia senão – segundo seus planos – estaríamos diante das aventuras de tal de Dom Coxote e em conseqüência aterrissaríamos em um novo título para a obra de Cervantes: O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DA MANCHA!

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 19/01/2006
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