Meu apreço não tem preço

Antigamente homens enfileiravam-se para entrar nas fábricas e produzir. Os prédios imponentes, enormes, guardavam dentro de si trabalhadores disciplinados, que formavam as massas no século 19. A disciplina era aprendida em etapas, primeiro na família, depois na escola, na fábrica, e assim por diante.

Hoje as fábricas tornaram-se empresas e já não possuem o mesmo tamanho físico. Os prédios imponentes do passado hoje são prédios históricos. O valor de uma empresa não está em seu prédio (que pode funcionar dentro de casa), nem na quantia de empregados, mas sim no valor de seu capital, nas ações flutuantes num mercado instável e complexo como a bolsa de valores, na confiabilidade dos investidores que ditam quem é a bola da vez. No passado, poderíamos medir riquezas pela quantia de ouro carregado. Atualmente, são medidas virtualmente, num laptop ou celular, por exemplo.

O primeiro mundo já não compra matéria-prima para revender produtos industrializados. Esse papel ficou relegado ao terceiro mundo, que agora mudou de nome. Antigamente, a economia mundial norteava-se por riquezas possuídas ou produzidas. Atualmente, norteia-se por confiabilidade e pré-disposição ao sucesso econômico. Nada mais subjetivo e abstrato que nossos tempos atuais.

Nos séculos 19 e 20, o homem era apenas uma assinatura e um número seqüencial que o identificasse por um documento. Era disciplinado pela família, escola e fábrica. Hoje somos cifras carregadas virtualmente num cartão qualquer, e dependemos de máquinas (que muitas vezes falham), para reconhecer estes valores. Na literatura, por exemplo, não importa se você é um medíocre escritor, mas sim quantos milhões de exemplares você vendeu: é isso o que torna uma obra merecedora ou não de nosso apreço (embora meu apreço não tenha preço).

Ser humano importante é aquele que tem poder de compra, e isso não significa ter dinheiro em mãos, basta apenas ter confiabilidade virtual para adquirir crédito financeiro. O homem de cifras é importante para o mundo, e os homens sem cifras vivem a explodir nos guetos, subúrbios e favelas.

No século 20 vimos ascender a idolatria pela tecnologia, por formação educativa contínua e interminável, pela readaptação constante aos novos procedimentos e regras, pela ficção em detrimento da realidade, pelo minimalismo cultural e literal, pela rapidez virtual da letárgica realidade. No século 21 estamos vendo a tecnologia demolir alguns poderosos como a Indústria Fonográfica, as Editoras e jornais impressos, como um tiro que sai pela culatra, na distribuição gratuita e irreversível de conteúdo virtual, muitas vezes pirateado. Os vírus virtuais causam tantos danos quanto os reais. Os 3/4 miseráveis de um mundo inconsistente se joga diante de nossas faces. A ciência muitas vezes é comprada para comprovar interesses escusos dos donos do capital, chegando até mesmo a dizer que o aquecimento global era mentira, como aconteceu pouco tempo atrás. A vida importa menos que as cifras. Vivemos enlouquecidos acumulando conteúdo virtual e gratuito, suficiente para ser ouvido e lido durante toda uma vida, pois o importante é possuir. Mas ainda assim, continuamos ignorantes marionetes nos digladiando em confusos e sujos espaços públicos, festejando a tecnologia que o mundo vende e não podemos comprar, aplaudindo espetáculos “no sense” que só vemos pelo televisor. Transformamos o verbo celebrar (louvar) em adjetivo (celebridade), idolatramos reality shows irreais e nos interessamos por gente insípida. Antigamente marcávamos encontros nas praças e bares, e hoje nos encontramos no MSN. Somos tão fictícios quanto nossos anseios, tão irreais quanto nossos sonhos e tão insustentáveis quanto nosso mundo, mas meu apreço não tem preço.

(Texto inspirado em Foucault, Gilles Deleuze e a Escola de Frankfurt).