A NOITE QUE NÃO ACONTECEU... (crônica-artigo)

A NOITE QUE NÃO ACONTECEU

Por Abilio Machado de Lima Filho...

A lua deitada ao sul, anunciava o frio com o reflexo solar que a deixava santificada, com aquela auréola azul-amarelo e laranja. Os cães ladraram em horário incomum, eram quase duas horas do início do domingo, dia em que os homens devem curvar-se a Deus.

Ataniel levantou da cama jogando rápidas as cobertas que aqueciam o casal, tateou no escuro sentindo o frio da manhã.

Os cachorros estavam aos fundos da casa em pavorosa inquietação, os sons de conversas chegaram com o medo habitual, será que os rapazes haviam invadido seu solo sagrado em busca de retaliação por ele ser um dos vizinhos que chamaram a polícia para que intervissem por causa da bagunça que faziam na frente da casa de um reformado militar, mas que infelizmente ainda usava seus documentos da ativa para amendrontar os descontentes com a conduta de seus filhos e a quase gang que formavam. Sem citar que contava com a ajuda dos policiais da antiga companhia para lhe dar assistências em seu novo trabalho, segurança de eventos musicais, que na tradução correta seria leão de chácara em boates e barzinhos da região. Mas não só ele fazia este tipo de trabalho, era comum ver uma viatura policial fazendo guarda à porta de uma panificadora todas as noites de contra turno, encostada das dezoito e trinta até as vinte e uma horas.

Achou o que procurava na terceira gaveta, o frio do aço foi sentido primeiro, a pistola foi arrastada de mansinho para que saísse de sob os livros e ao perceber a coronha áspera uma energia oriunda do passado lhe percorreu o corpo, era o lado animal do antigo soldado que emergiu, a força da empunhadura e a auto confiança que aquela muleta avassaladora lhe oferecia era assustadora.

Era chegada a hora, a guerra até o momento tinha sido repudiada e nem levada a sério, as ameaças, os gritos no começo da noite, as pixações, as pedras sobre o telhado, o lixo de suas noitadas contendo garrafas e restos de alimentos no canto do terreno, as reclamações, as ligações ao telefone policial que não apareciam ou quando faziam nada surtiam de efeito; lembrou daquele fim de semana que os garotos pareciam estarem no cio etílico e que jogaram a base de sua caipirinha de abacaxi sobre seu telhado e ele fora reclamar com os donos da casa onde havia acontecido a festa, a qual acontecera na véspera do dia de eleição, dia que é expressamente proibido a utilização de álcool por setenta e duas horas, mas como era casa de um ex policial a reclamação não foi ouvida e os vizinhos é que pagaram o preço. O jovem recolheu os restos em uma sacola e foi aos donos da moradia e ouviu coisas absurdas, e que dali nada tinha se iniciado, que foram talvez os meninos da favela que passavam por ali na noite anterior e indicaram talvez três possibilidades, o ruivo do hotwaler, o filho do oficial do fórum e seu fiel amigo menor filho dos sacoleiros do Paraguai.

Que inesperadamente vieram em bando a tomar satisfações sobre o acontecido e este na fúria de se ver acuado e ter em si uma baforada de fumaça do cigarro que este menor segurava aos dedos soltou dois dedos na face do mesmo e jogou-o por terra. Tendo um pequeno rebuliço na frente da casa, alguns empurrões, ameaça de vida do pai de um dos fanfarrões, este pai mesmo sabendo das atitudes do filho acoberta-o. Pior é saber que as algazarras que os filhos fazem fora, nas casas dos outros não são aceitas na própria casa.

O interessante que então os policiais apareceram, e por que não no dia em que os vizinhos chamaram e aquela pergunta ficou engasgada, tudo ficou resolvido, ou melhor, abafado e fermentando como tudo que é soterrado em ambiente hostil, é um algo crescente que envenena, são provedores de palavras e desejos loucos que em tempo comum não fariam parte daqueles pensamentos e daquela vida tão cheia de amor e vida.

É uma chama de justiça, uma busca pelo certo que muitas vezes o empurra ao errado. Às maquinações de vingança, que procura nas lágrimas frente ao Altar na Igreja um sinal de perdão, um clamor silencioso que sua mão seja contida, que esta vontade que corrói seus dias tenha fim e que não seja finalizado, que não aconteça, que tudo seja um sonho, nada mais.

São frações de minutos que peleja em pensamentos e como slide programado aparecem em si mesmo, cavalgando os cantos escuros dos sonhos insanos.

O desenho reto da arma que repousa em sua mão, é um marcador, um contra peso em sua conduta de homem, o que reflete agora é que tentou evitar por tantas vezes, quantas vezes, quantas noites em claro, quantos dias temíveis... Como quando quebraram a árvore dos fundos para provocar e sua mulher o segurara, pois aquele dia ela temia que ele pusesse fim em alguns daquele marginalcollizados. Ele ainda guardara as fotos do que fizeram e lamentou não ter atirado, não ter se desvencilhado dos braços temerosos de sua mulher.

A pistola iluminou-se com a réstia de luar que entrava pela janela, o frio daquela manhã, o chinelo estava tão gelado que lhe parecia úmido. Bateu na cadeira fora de lugar, teve vontade de gritar com a pancada gelada. Havia um outro tremor, desconhecido, apenas de pijama e camiseta, atravessou a cozinha, o ar fazia sinais de respiração com o calor que saia. A mão tocou a chave da porta, fria, girou devagar esperando que não fizesse barulho.

De supetão escancarou a porta, uma das mãos acendeu a luz que o cegou por breve e foi levada aos olhos buscando uma sombra sobre a retina e a mão direita desenhou o ângulo tão ensinado, tão exigido nas aulas de tiro quando de sua estada no serviço militar. A pistola ganhou altura e o dedo acariciou o gatilho, naquela distância aquele pequeno delinqüente se faria óbito pelo álcool e pela ignorância de pais que tampouco sabiam onde ele se encontrava, camulfrado de bom garoto bebendo em frente à casa de um juramentado em proteger e servir... Um frio gelado passou pela sua alma, acabou não reconhecendo o garoto que se afastava rapidamente do muro, pela aparência menor de idade e bêbado como um gambá, e tudo isso na frente da casa de um representante da lei e da ordem... E a arma foi retardada, escondeu-se atrás de si, uma breve avaliação do resultado do projétil naquele corpo idiotizado pela corrupção de poder tudo o que quer em casa, no bairro, na escola. Dava quase para ver o vermelho da face, misto de medo e pânico ao ver o brilho metálico do corpo da eagle e do frio que estava no sul e nos olhos que se enfrentaram.

A frase estúpida saída da boca.

___Perdeu alguma coisa garoto?!

___Poxa, só tava dando uma mijada ali oh! – respondeu gaguejante.

___Sei. – fechou a porta ouvindo o riso dos outros pelo cagaço que o pobre novato da turma passou.

A porta foi fechada, um suspiro de alívio passou, quase deu um pipoco no garoto, quase aconteceu uma catástrofe em sua vida por ignorância de alguns... Da cama ainda ouviu os comentários e os risos, as piadinhas que fizeram do garoto sobre ser pego de pênis na mão... E ouviu sobre ele mesmo, o que chamaram de covardia, de medroso, mas será que em algum momento passou pela cabeça de algum deles o quanto estiveram próximos da morte?

Um sorriso encolhido sob os cobertores, ficou adormecido como uma visão. Hora vai chegar que encontrarão um homem não temente a Deus e então terão um encontro marcado com o inferno e com todos aqueles que foram parar lá antes deles. Nesse dia um único policial de verdade pensará com sobriedade sobre o fato e fará uma análise fria e imparcial. E lamentavelmente esse será o dia de despertar dos pais e da responsabilidade que não tiveram, da vida que largaram o controle ou a minaram com excesso de proteção errada e dos conselhos sobre levar vantagem em tudo, desde a mais tenra idade...

Então nesta noite vão chorar, vão lamentar.

Vão à ânsia da perda quem sabe querer surgir uma vingança que será inexistente, pois a marca de não terem educado na vontade de Deus seus filhos serão como pregos em suas Almas. Quiçá que este despertar se manifeste “antes que esta noite “realmente” aconteça...”.