Homem versus Dignidade

Na Grécia antiga, ouvia-se sempre o seguinte: quando criança, o deus Dioniso foi aprisionado pelos titãs, seres gigantescos e poderosos, que o despedaçaram e o devoraram; Zeus, o maior dos deuses e pai de Dioniso, enfurecido, fulminou-os com seu raio. Do fumo de seus restos calcinados surgiram os homens, uma mistura das tendências destrutivas dos titãs com uma pequena parcela divina e que age em seu interior como um eu oculto.

Esse mito tardio teria sido uma das respostas que os gregos deram à sua inquietude diante das contradições da natureza humana. Irresolutos, eles se perguntavam como era possível a convivência de convergências radicalmente opostas no ser humano, como era possível que os atos do homem revelassem a existência em seu espírito, tanto de um deus quanto de um criminoso (Dodds, 1988, p.171). Como dizia o filósofo Aristóteles: “o homem não é apenas um animal racional é, sobretudo, um animal político que convive com os outros". Esta afirmação aristotélica define o humanismo que Aristóteles reconhece devido a seus estudos antropológicos, ou seja, na Grécia antiga, aquele que fosse incapaz de associar-se em uma comunidade, ou que seja auto-suficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma polis (cidade), por ser um “animal selvagem”. O homem só alcança sua plenitude em meio à comunidade.

Pelo mito, as pessoas explicavam e tornavam aceitável algo antes incompreensível. Em uma visão contrária ao mito, a religiosa, por assim dizer, conhecemos bem o livro do Gênesis da Sagrada Escritura, o qual revela o ato da criação do homem por Deus e esta é a revelação que cabe aos cristãos aceitar, mesmo diante de muitas indagações feitas por estudiosos acerca de sua veracidade.

Diante destes exemplos, pode-se perceber que o homem tem certa necessidade de se encontrar, de buscar sua origem onde quer que seja. Ele tem a capacidade de criar momentos, situações que muitas vezes, depois de descobrir de onde saiu ou de que forma foi criado, se esquece que o outro é seu semelhante. A partir daí, a dignidade humana se perde em um vazio que ele próprio cria para si.

O Papa João Paulo II, na mensagem para o dia mundial da paz do ano de 1999, disse o seguinte: “A dignidade da pessoa humana é um valor transcendente, como tal sempre reconhecido por todos aqueles que se entregaram sinceramente à busca da verdade. Na realidade, toda a história da humanidade deve ser interpretada à luz desta certeza. Cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-28) e, por conseguinte orientada radicalmente para o seu Criador, está em relação constante com quantos se encontram revestidos da mesma dignidade. Assim, a promoção do bem do indivíduo conjuga-se com o serviço ao bem comum, quando os direitos e os deveres se correspondem e reforçam mutuamente”. Nestas palavras do Papa, está a segurança que falta para milhares de pessoas que estão à margem da sociedade e que muitos tapam os olhos e fingem não ver. E isso não é uma crítica ao sistema religioso e nem governamental e sim à realidade que está diante de nós vinte e quatro horas por dia, realidade esta que nos deixa de pés e mãos atadas. O que fazer? Como fazer?

Quando se trata de comida ou moradia, sempre damos um “jeito” para resolver o problema por um tempo, mas sabemos que não é só comida ou moradia que faz a dignidade da pessoa, porque se fosse isso, aqueles que vivem na rua, nem o mínimo de dignidade teriam. O enigma é muito maior. Falta amor, atenção, carinho, amizade, compreensão, solidariedade. Falta justiça, a virtude da justiça, isto é, “a virtude da cidadania, de um bem para todos. Toda cidadania está ligada a um conceito de justiça. Então, não adianta que eu reivindique ao Estado direitos se eu não convivo numa comunidade onde todos não se tratam com justiça. Dessa forma, nunca haverá tribunais suficientes para resolver nossas causas, porque cada um de nós trapaceia o outro assim que puder. Isso não é uma convivência justa”(PEGORARO, 2000).

Ao falarmos da criação do homem e de sua dignidade, estamos falando de nós mesmos e com isso, deveríamos olhar por um espelho e descobrir no nosso reflexo outro alguém, diferente de nós e ao mesmo tempo, parte de nós, que contém a mesma essência. Essa essência chama-se VIDA. Se pararmos de criar mitos e olharmos mais para a realidade, encontraremos soluções não longínquas para muitos dos problemas do nosso País. À necessidade de caminharmos juntos, de perceber o outro, desvendando o enigma citado à cima. Descubramos o amor, demos mais atenção e carinho, vivamos na verdadeira amizade, tendo a capacidade de compreender e de sermos solidários. Sejamos justos, pratiquemos a justiça sempre.

Marcos Paulo Rodrigues