A relação Literatura e História na obra Infância de Graciliano Ramos

A relação Literatura e História na obra Infância de Graciliano Ramos

Adilson Barbosa

No momento, muitos estudos estão sendo realizados sobre a existência da analogia Literatura e História nas obras literárias, sobretudo nos romances do século XX, no Brasil. A dificuldade não está em constituir relações entre Literatura e História. O problema consiste em saber de que Literatura e de que história se fala. Procuraremos analisar a obra “autobiográfica” de Graciliano Ramos, intitulada Infância, publicada em 1944, com a finalidade encontrarmos elementos que comprovem a existência de aspectos reveladores da história econômica, política e social do Brasil no final do século XIX e início do século XX, que serve para o entendimento da ficção. Para tanto faremos uso de textos de vários estudiosos da teoria da literatura.

Infância é um romance memorialista, composto por trinta e nove micro-capítulos que destacam alguma passagem significativa da vida do menino Graciliano, que marcaram e lapidaram sua personalidade. No início do Posfácio da 30ª edição Octavio de Farias fala o seguinte:

Em Graciliano Ramos, o menino Graciliano é tudo. Seus heróis são o menino, sua timidez é a do menino, seu pessimismo é a do menino, sua revolta é a do menino. Em uma palavra: o sentido que tem do humano é o que o menino adquiriu no contato com os homens que o cercavam, com quem travou as primeiras relações, de quem recebeu as primeiras ordens, que conheceu nas suas inúmeras fraquezas. Os homens. (Pg. 251 – 252)

Portanto, Octavio procurou trazer a tona o verdadeiro sentido do livro Infância. Um livro que procurou justificar que a linguagem seca de Graciliano, seu pessimismo presente na literatura e seu modo de visualizar a realidade não poderiam ser diferentes, pois ele se criou num ambiente de total desafeto e desamor, em que as poucas demonstrações de carinho vinham de estranhos como da professora Dona Maria e de José da Luz, o policial que no final seria caracterizado por ele como anarquista. Infância, narrado em primeira pessoa por um narrador – personagem que se confunde constantemente com o escritor regionalista. A partir da leitura do texto de Jacques Le Goff, intitulado A história Nova (1974), vemos que ele trata sobre as novas concepções de História e como, com o passar dos anos, surgiram diferentes correntes que transformaram o pensamento histórico. O texto, denso em suas análises, trouxe diferentes visões da História, desde a tradicional até a crítica. Primeiramente ele começa abordando o tema proposto em seu texto que é, justamente, o de perceber a renovação do domínio científico, principalmente da História. Ele coloca que a afirmação de ciência, e a renovação em seu nível de ensino e a interdisciplinaridade são fenômenos de um novo campo do saber. Le Goff afirma que a História deve seu lugar original a duas características essenciais: a sua renovação integral e o arraigamento de sua mutação em tradições antigas sólidas. Ele comenta que a história política é uma história- narrativa, e uma história de acontecimentos. Para ele, o historiador deve buscar a construção científica do documento cuja análise deve possibilitar a reconstrução ou a explicação do passado. O historiador não deve limitar-se aos acontecimentos, mas buscará saber qual foi o vício radical e a virtude dominante de uma nação

Sabemos que a História Tradicional trata mais das leis e atos políticos do que dos hábitos e da alma nacional. Por isso tem-se buscado construir uma história mais material e cultural. Muitos autores destacam a existência da teoria do ciclo onde três ídolos se destacam: ídolo político, o ídolo individual e o ídolo cronológico. Para o autor a História Nova trata-se, antes de tudo, de uma história particularmente sensível às diferenças. Hoje em dia, a história nova foi definida pelo aparecimento de novos problemas, de novos métodos que renovaram domínios tradicionais da história. Le Goff fala das tarefas da historia Nova, que podem ser assim definidas: serve como promoção de uma nova erudição, uma nova concepção de documento, levando em consideração o oficial e o artístico, um retratamento da noção de tempo, o aperfeiçoamento de métodos de comparatismo. Ele considera que é importante considerar a historia, sobretudo, dos homens e que essa divisão de história com H ou h, seja cada vez menor.

No texto O diálogo com a História (2003) de José Saramago , o autor nos traz algumas concepções do que seria esse estreitamento que podemos dizer que existe entre a Literatura, enquanto produção cultural e a História, como transposição memorial do “real”. O autor ainda nos coloca a par do que seria uma “crise na História”, e sua possível causa a ressurreição do romance histórico. Saramago também disserta a respeito da insegurança que nós temos, geradora da crise na História. Ele nos coloca frente à incerteza do historiador, aquele que escreve, ou como diria ele, aquele que faz a História, como nós percebemos, no trecho, a seguir:

Claro que não esqueço que o mesmo historiador sempre fará, ele próprio, outras viagens ao tempo por onde antes viajara, esse tempo que por sua intervenção deixará de ser informe, que passara a ser História, e que graças a visões novas, a novos pontos de vista, a novas interpretações, irá tornando sucessivamente mais densa a imagem histórica que do passado nos vinha dando. Restará sempre, contudo uma grande zona de obscuridade, e é aí, segundo entendo, que o romanista tem o seu campo de trabalho. (Saramago, 2003, pg. 502).

Ele coloca que, nós em nossa inquietação e incapacidade de reconstituir o passado, e “não podendo reconstituí-lo, somos tentados (...) a corrigi-lo (...) não os fatos da História (...) mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir (...), substituir o que foi pelo que poderia ter sido”. (Saramago, 2003, pg. 502). Procura mostrar que seria útil para o entendimento de nosso presente, a perturbação, a inquietação, uma vibração do que poderia ter sido causada pela leitura crítica de um romance histórico. Fala também do mundo das verdades históricas e do mundo das verdades ficcionais, princípio sem conciliação, porém harmonizáveis na estância narradora:

(...) A História, e também o Romance que procura para seu tema fundamental a História, são, de alguma maneira, viagens através daquele tempo, tentativas de itinerários, todas com um só objetivo, sempre igual: o conhecimento do que em cada momento vamos sendo.(Saramago, 2003, pg. 503).

Saramago conceitua o historiador, conforme sua função, dizendo que ele “realiza uma rarefação do referencial, criando uma espécie de malha larga, perfeitamente tecida, mas que envolve espaços de obscurecimento ou de redução de factos”. Comenta que ao lermos esses historiadores temos a impressão de estar diante de um romancista da História, que devido a uma grande insatisfação, abriu-se à imaginação.

No seu texto Sobre o conceito da história (1994), ainda alerta que é importante saber com quem o historiador estabelece empatia ao ressuscitar uma época, para assim sabermos interpretar os implícitos do texto histórico e da própria história:

A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. (Walter Benjamin, 1987, pg.225).

A relação entre Literatura e História, não trata de uma concepção isolada, especificada no Tempo e no Espaço da Historiografia e da História Literária. Flávio Loureiro Chaves em sua obra História e Literatura (1998), indaga sobre a fronteira entre a história e literatura: “Há, pois, um momento privilegiado em que as paralelas se cruzam e a ficção imaginária ilumina a realidade insatisfatória que lhe deu origem” (Chaves, 1998, Pg. 9). Seguindo a mesma linha de análise, o estudioso cita alguns estudiosos da teoria da literatura que ajudam a desvendar alguns pontos de alinhamento que podem nortear a busca insistente não pelos limites, mas sim pelas fronteiras entre a História e a Literatura, afinal a fronteira neste casso não significa a separação, mas sim o encontro entre duas áreas.

Roland Barthes, em “O Rumor da Língua” (1998), escreve um capítulo inteiramente voltado para o discurso da História, na qual destaca o ponto de convergência das esferas da Literatura e da História:

(...) a narrativa dos acontecimentos passados, submetida comoventemente, em nossa cultura, desde os gregos, à sanção da ‘ciência histórica’, colocada sob caução imperiosa do ‘real’, justificada por princípios de exposição ‘racional’, essa narração difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pede encontrar na epopéia, no romance e no drama?(Barthes, 2004, Pg. 164)

Hayden White , em “Texto Histórico como artefato literário” (1994) procura trazer uma breve discussão sobre a subjetividade do texto histórico. Ele coloca idéias que corroboram para a crença de que o texto histórico está muito mais próximo do texto literário do que do científico, como geralmente se acredita. Expõe sobre a concepção do texto histórico como material que quando abrangente se torna mítico. Obviamente que a seleção dos fatos e a ordem como são distribuídas na narração, possibilitam que o leitor a interprete como trágica ou cômica. Portanto, o autor conclui que a narrativa presente na história e na ficção, busca duas fontes distintas: na primeira ela visa construir a verdade e na segunda visa construir “a quase verdade”, ou seja, não aquilo que houve de fato, mas aquilo que poderia ter acontecido. Outra questão levantada pelo autor diz respeito ao papel da narrativa histórica como uma metáfora de longo alcance. Ele entende que metáfora é mais uma construção simbólica do que representação. Ela procura ser símbolo e não signo. Tanto a narrativa ficcional como a histórica procuram dar um sentido ao mundo. Eis aí o grande ponto de mediação entre o mundo real e o mundo ficcional. Vejamos o que Hayden diz sobre isso:

Na realidade, a história – o mundo real ao longo de sua evolução no tempo – adquire sentido da mesma forma que o poeta ou o romancista tentam provê-lo de sentido, isto é, conferindo ao que originalmente se afigura problemático e obscuro o aspecto de uma forma reconhecível, porque familiar. Não importa se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesm”. (1994. P-115).

Walter Mignolo em sua conferência debate Lógica das diferenças e política das Semelhanças: da Literatura que parece História ou Antropologia e vice-versa. Coloca que a Literatura e a História somente foram dissociadas nos fins do século XVII, e a partir daí a primeira entrou para o sistema das artes, enquanto que a segunda entrou para o sistema das ciências. O autor nos coloca sobre duas convenções importantes para o entendimento da diferenciação das duas áreas de análise. A literatura está submetida á convenção de ficcionalidade enquanto que a História está submetida à convenção de veracidade.

Bella Josef (2003) comenta que a autobiografia tanto pode ser um discurso documental, testemunhal ou até ficcional, baseando-se em dois territórios considerados diferentes: a verdade histórica e a verossimilhança ficcional. Comenta que a definição enciclopédica para autobiografia é “história de uma pessoa contada por ela mesma”. Considera como tema essencial de toda autobiografia as realidades vivenciadas concretamente, em que a realidade externa se altera pela vida interior. Assim toda a obra é uma maneira de escrever-se, de conservar-se no ambiente da memória, na arqueologia da recordação. A memória tem como alvo localizar o tempo perdido e fixá-lo para sempre. A autobiografia é de caráter híbrido. Conforme suas palavras

“A autobiografia, modo de ler e escrever, apresenta uma natureza híbrida. É um discurso ordenador de texto, uma convenção que se escolhe para poder transgredir. Parte do pessoal e tenta-se superá-lo para impor uma problemática coletiva. É sempre uma representação de acontecimentos baseada na memória. ( Bella Jossef, Pg. 221).

Portanto, isso se traduz na própria ação de escrever as recordações que se caracterizam pela aproximação ou choque entre o passado e presente da escrita.Vemos que a autobiografia conserva afinidade parecida com a alocução historiográfica, pois readquire aspectos da realidade vivenciada por um sujeito real, colocando-se portanto, entre o relato verídico, característica da História e a ficção, atributo da edificação literária assinalada pelo uso de expedientes de estilo e de estética.

Phillippe Lejeune acrescenta a seguinte definição à autobiografia: “relato retrospectivo em prosa que uma persona real hace de su propria existencia, poniendo énfasis em su vida individual y, em particular, em la história de su personalidad”. (Lejeune, pg. 48).

Partindo desta definição, Lejeune descreve uma série de elementos pertencentes a quatro diferentes categorias: forma de linguagem, tema tratado, situação do autor e posição do narrador. Vejamos o detalhamento destas categorias:

La definición pone en juego elementos pertenecientes a cuatro categorías diferentes:

1. Forma de lenguaje:

a) narración;

b) en prosa.

2. Tema tratado: vida individual, historia de una personalidad.

3. Situación del autor: identidad del autor (cuyo nombre reenvía a una persona real) y del narrador.

4. Posición del narrador:

a) identidad del narrador y del personaje principal;

b) perspectiva retrospectiva de la narración..(Lejeune, pg. 48).

Para Bella Jossef, a autobiografia é um experimento do sujeito por penetrar na retenção de si mesmo. Torna-se único pela identidade do narrador e do personagem principal. Portanto, Memorialismo e autobiografia são maneiras de autoconhecimento através da escrita. Diferenciando-se, porém, pelo fato do objeto da narrativa da autobiografia ser o próprio eu autoral, enquanto que o objeto da narrativa do memorialismo é aquilo que foi observado pelo eu autoral. Porém, entendemos que tanto a autobiografia, quanto o memorialismo são guiados pela memória e, portanto são reféns de suas deficiências temporais e psíquicas. A respeito da memória Jaques Lê Goff comenta as funções psíquicas:

A memória, como propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos em primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode actualizar impressões ou informações passadas, que ele representa como passadas. (Le Goff, 1997. Pg. 11).

Percebemos que a memória, acima de tudo, é conservada fundamentalmente pelo comportamento narrativo, caracterizado pela função social, pois na ausência da lembrança o que resta é a narrativa do outro que vai montando o mosaico da memória. Podemos citar as palavras de Lê Goff:

Assim, Pierre Janet considera que o acto mnemônico fundamental é o comportamento narrativo que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social, pois que é comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objecto que constitui o seu motivo. ( Lê Goff. 1997. P. 12)

Pelo que podemos ver a memória é considerada não somente um produto individual, mas também coletivo. É aí que podemos nos referir a idéia de memória coletiva, que certifica a reprodução de comportamentos nas sociedades humanas. Esta memória é sempre muito polemizada nas lutas sociais pelo poder. Ao falarmos em memória coletiva, nas sociedades que dominam a escrita, temos que pensar que o que aparentemente dá sentido à existência destas sociedades são os mitos de origem, transmitidos oralmente. Isso ocorre por que os “guardiões da memória”, geralmente anciões e sacerdotes, trazem diferentes versões de suas histórias. Na oralidade, muito se perde com o tempo e conforma o contador do mito:

Os homens-memória, na ocorrência narradores, não desempenham o mesmo papel que os mestre-escola (e a escola não aparece senão com a escrita). Não se desenvolve em torno deles uma aprendizagem mecânica automática. (Le Goff. 1997. P.15).

Portanto, podemos concluir que nestes povos primitivos, sem escrita, a recriação mnemônica tem mais valor pela sua narratividade do que pela memorização mecânica, normalmente vinculada à escrita, abrindo assim um leque muito maior de criatividade e imaginação:

Assim, enquanto que a reprodução mnemônica palavra a apalavra estaria ligada à escrita, as sociedades sem escrita, exceptuando certas práticas de mormorização ne varietur, das quais é o canto, atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas. (Le Goff. 1997 P. 15).

A idéia de memória coletiva, num primeiro momento, confunde-se com o conceito de memória da nação. Na antiguidade, segundo Le Goff, uma maneira de conservar na memória, fatos considerados heróicos e de relevância para a nação, é a construção de monumentos e obeliscos, bem como estátuas. Como a maioria do povo era, em suma, iletrada, entendia-se que a visualização destes ícones, geralmente gigantescos, lembraria os atos de “grandes homens”. É importante ressaltar que costumeiramente estes monumentos e obeliscos remetiam-se a homens nobres ou de famílias tradicionais, e estavam relacionados a fatos de grandeza e soberania nacional. Observemos o exemplo:

No oriente antigo, por exemplo, as inscrições comemorativas deram lugar à multiplicação de monumentos como estrelas e os obeliscos. Na Mesopotâmia predominaram as estrelas onde os reis quiseram imortalizar os seus feitos através de representações figuradas acompanhadas de uma inscrição, desde o III milênio, como atesta a estrela de Abutres (...). (Le Goff, 1997. P 16).

Com o desenvolvimento da escrita os reis criaram instituições-memória como museus, bibliotecas, arquivos, entre outros, objetivando deixar para a posteridade seus feitos grandiosos.

Vemos, pois, que a memória do povo, popular, é como afirmam muitos estudos, influenciada pela presença de elementos da classe dominante. Entretanto, é mister ressaltar que essa memória possui suas características próprias, transmitidas oralmente de geração para geração, através da ritualização da vida desse povo. Os mitos aparecem muito nestas memórias.

A autobiografia aparece neste ponto como sendo uma maneira particular de contar o geral. A partir da pré-seleção do autor, que também é personagem e narrador e tem o objetivo de conhecer um pouco de si mesmo e de contar o que pretende deixar para a posteridade, Le Goff vê uma forma, muito sutil, de contar a história de sua nação. Na grande maioria das vezes, o autor-narrador, não tem clara esta intenção, mas conta a história da nação a partir de sua vida particular. O modo como viveu; como percebeu o mundo; como influenciou o mundo (mesmo quando percebeu que nada fez, já fez muito, pois o não-fazer-nada significa agir no mundo omissamente, não procurando transformá-lo); o modo como o mundo o influenciou: tudo isso faz com que a história de sua nação seja contada.

Para o estudioso, a autobiografia é feita a partir da memória. Esta, como nós sabemos, não pode ser mecanizada, na sua totalidade devido às limitações humanas. Para preencher os espaços deixados pela memória aparece à imaginação, a criatividade e a narração de terceiros que vivenciaram os fatos narrados. É importante ressaltar que, apesar do grande grau de imaginação presentes nos textos históricos, ela é característica predominante na ficção. Portanto, para fim de análise preliminar, podemos entender que a autobiografia pode ser enquadrada no gênero ficção. Assim muitas informações chegam até o conhecimento do autor, a partir da narração de terceiros devido à deficiência da memória humana. A partir de então, as informações perpassam o imaginário do autor que se concentra e as seleciona para colocá-las nos diferentes códigos de transmissão.

Bella Josef comenta a respeito da instabilidade do material autobiográfico que transcende as fronteiras entre ficção e literatura. Sabemos que os limites entre essas duas áreas são bastante tênues, não podendo ser distinguidos entre si:

O material autobiográfico inclina-se para a história e para a ficção e sofre permanente instabilidade. Entre o imaginário e o real, a autobiografia pode desvincular-se do documento para realizar-se como ficção. Confere o peso da realidade humana à literatura, que deixa de ser uma arte para agradar e transforma-se no espaço da palavra de um homem. A literatura apropria-se do ser no espaço que abre à ficção. (Bella Jossef, 2003. P-225).

Portanto, podemos entender que o ponto de intersecção entre a ficção literária e o texto histórico é bastante complexo e instável, entretanto isso deve servir como incentivo para aquele que busca transcender esses dois campos de saberes, e não como fator que desencoraje tal aventura.

Podemos considerar que no campo de qualquer produção humana sempre pairará a dúvida como certeza primordial, dúvida esta entendida como sendo a falta de respostas concretas sobre as proposições a cerca de tal produção. Compreendemos que qualquer análise que pretenda levar-se a sério e receber o valor que lhe é devido, deva sempre considerar que não há, e nem deve pretender haver, qualquer conclusão, pois, por si só, é um campo de horizonte aberto e livre. Não existe e jamais existirá uma análise final, na área da produção humana. Qualquer estudo a respeito desta produção deveria entender que se trata de mais do que um oceano, pois este é finito, mas de um universo infinito e etéreo.

É necessário que identifiquemos o seguinte: Infância é mais do que um livro autobiográfico, é uma crônica da sociedade brasileira do final do século XIX e início do século XX, o narrador não narra todos os acontecimentos, mas sim os sugere, por meio de sua vivência, o narrador não é Graciliano menino, mas Graciliano adulto que conta suas experiências de menino, a partir do olhar do menino, mas a pré-seleção dos fatos narrados é do adulto e de sua memória.

Vemos que a dualidade de pontos de vista (do adulto e do menino) remete-nos a pensar na historiografia e chegar a seguinte indagação: Seria a historiografia mais subjetiva do que objetiva, como ela pretende ser? Para respondermos a esta e outras indagações devemos levar em consideração que a historiografia pretende escrever sobre o “real”, mas que o historiador é dotado de ideologia, e como sabemos a mesma está presente em todos os momentos de nossa existência, ainda que “disfarçadamente”.

No caso do romance de Graciliano Ramos, intitulado Infância, podemos compreender que sua escrita é entendida como sendo a autobiografia do autor. Como diria Ocavio Faria, no Posfácio da 30ª edição de Infância, “o passado invadindo constantemente o presente da criação artística, a ficção dando cor e fazendo sangrar ainda mais as recordações da meninice (...)”.

A narração de Infância é condicionada pela ideologia de Graciliano segundo sua intenção de transmitir literariamente seu passado, de tal maneira que provoque um choque inicial e uma estranheza dos fatos até então narrado. Portanto, o menino Graciliano do romance, não é o mesmo que existiu na “realidade”, mas a representação do menino a partir das lembranças de seu narrador. Eis aí, talvez, o sentido máximo da obra. Em Infância, Graciliano consegue realizar o que prometera em Memórias do Cárcere: “Meu pai fora um violento padrasto, minha mãe parecia odiar-me, e a lembrança deles me instigava a fazer um livro a respeito da bárbara educação nordestina”. (Ramos, 1978).