Uma análise da obra machadiana “Memórias Póstumas de Brás Cubas” sob o ponto de vista da Estética da Recepção

Adilson Barbosa

Resumo:

Este ensaio pretende em linhas gerais referir-se a uma análise de estética da recepção através da obra literária Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Trabalharemos com teorias de Jaus e Iser, primeiros e mais importantes teóricos da Estética da Recepção. A narrativa será enfocada sob um ângulo que mostre a importância do leitor durante a produção da obra, a fim de iluminar e preencher o significado. É nesta área que reconhecendo o leitor ideal e o leitor ficcional da obra, entenderemos a magnitude desta obra machadiana, que representa um marco histórico na literatura brasileira.

Palavras chaves: Memórias – Estética.

Resumen:

Este ensayo busca, en líneas generales, se referir a una análisis de estética de la recepción a partir de la obra literária Memórias Póstumas de Bras Cubas, de Machado de Assis. Trabajaremos con teorías de Jaus e Iser, primeros e más importantes teóricos de la Estética de la Recepción. La narrativa será enfocada so un ángulo que muestre la importancia del lector durante la producción de la obra, a fin de iluminar y llenar el significado. Es en esta área que reconociendo el lector ideal y el lector ficcional de la obra, entenderemos la magnitud de esta obra machadiana, que representa un marco en la literatura brasileña.

Palabras – clave: Memórias – Estética.

Nosso trabalho consiste em analisar uma obra literária conhecidíssima entre os leitores de todo o mundo e que faz parte do cânone literário brasileiro, “Memórias póstumas de Brás Cubas” do grande escritor do Realismo brasileiro, Machado de Assis, sob a ótica de uma categoria de análise ainda nova nos estudos literários: a estética da recepção.

Primeiramente é importante destacarmos que nosso campo de análise é um objeto artístico e que, portanto, obedecem algumas convenções que são inatas a essa categoria. Sabemos que toda a transformação feita na natureza a partir do ser humano deixa de ser um objeto natural para se tornar um objeto cultural. Destacam-se nossas considerações a respeito de que o racionalismo surgiu no século XIV por Decartier que trabalha a idéia de ciência, como aquela que trabalha com o objeto de mensuração e repetição, definindo sua classificação através da generalização. De mesmo modo Decartier coloca que a arte trabalha com língua, poética, e com certas convenções: Literatura, pintura, escultura, arquitetura, música. Objetos que ultrapassam a utilidade imediata, pois têm uma intenção puramente estética e trabalham com a sensibilidade.

A categoria que nos importa nesse momento é a Arte, no caso a literatura. Para Platão o poeta é o imitador da imitação e procura afastar o indivíduo da realidade. Entretanto, Aristóteles diz que a poética ajuda a conhecer a realidade de um modo fingido. Ele entende que o “catar-se” é o efeito, ou seja, a descarga emocionante ao ver a literatura.

O Formalismo Russo do século XX diferencia autor de narrador e, consequentemente, de personagem.

A Estética da Recepção é a teoria que valoriza, acima de tudo, o leitor. Para Jauss, ela estuda a maneira como o leitor recebe o texto. Nas décadas de sessenta (60) e setenta (70), Hans Jauss trabalha a História da Literatura do Leitor, no chamado horizonte de expectativa. O teórico Iser fala em Leitor implícito e sua fruição (compreensão) educativa. Também se concebe a idéia de leitor empírico, aquele que deve obrigatoriamente preencher as lacunas do texto, que necessariamente é subjetivo.

O teórico da Estética da Recepção, Jauss entende que o leitor atualiza a obra. Ele diz que desde o século XIX a estética se concentrava no papel da apresentação da arte e a história da arte se compreendia como historia das obras e de seus autores. Ainda ele acrescenta que das funções vitais da arte passou-se a considerar apenas o lado produtivo da experiência estética, raramente o receptivo e quase nunca o comunicativo. Ele sabe que “hoje se pode

reconstruir, com mais facilidade, o lugar de uma obra de arte em seu tempo, sua originalidade em contraste com as fontes e os antecessores, mesmo até sua função ideológica, do que a experiência daqueles que na atividade produtiva, receptiva e comunicativa desenvolveram a práxis histórica e social, da qual as histórias da literatura e da arte sempre nos transmitiram o produto já objetivado”.

Quando partimos do pressuposto de que “Memórias Póstumas de Brás Cubas” trata-se de uma obra Realista, vemos que Machado de Assis teve uma profunda preocupação com a questão da leitura do leitor. Temos na obra dois leitores, dos quais muito se fala: Leitor Implícito e Leitor explícito. O primeiro trata-se daquele que verdadeiramente o narrador pretende atingir ou chocar, ele representa a classe que de fato o autor buscou atingir ou que fatalmente acabou atingindo já que após escrita a obra não mais pertence ao autor, mas sim ao leitor que se apropria do imaginário despertado a partir da literatura. O segundo pode ser considerado o leitor fingido pelo narrador.

É importante destacar o histórico da vida de Joaquim Maria Machado de Assis. Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 1839, no Morro do Livramento. Filho de pai muito pobre (pintor) e de mãe lavadeira, ficou órfão muito cedo. Pobre, mulato, tímido, gago, epilético, conseguiu sobreviver e fazer carreira de funcionário público e escritor. Autodidata, conquistou vasta cultura literária. Aos 16 anos, trabalhou na Imprensa Nacional, como aprendiz de tipógrafo, em jornais. Aos 30 anos, casou-se com Carolina Xavier de Novais. Ascendeu na carreira burocrática. Teve vida social e burocrática ativas. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Academia brasileira de Letras. Morreu aos 69 anos, também no Rio de Janeiro. É considerado praticamente por unanimidade, como o maior escritor em prosa da literatura brasileira. Iniciou o Realismo em 1881, com o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, ao mesmo tempo realizando a sua superação, num salto mortal para a modernidade, de que é um antecipador, em vários aspectos: a crítica da linguagem e da estrutura tradicional da narrativa; os micro-capítulos e o enredo não-linear, descontínuo: a constante meta-linguagem, questionando o próprio fazer do livro; o estilo substantivo, anti-retórico; a análise psicológica que vai além dos limites da consciência do personagem; o humor sutil e permanente, destruindo as ilusões e as pieguices românticas; a visão aguda e profundamente relativista, com linguagem sutil, ambígua, de múltiplos sentidos etc. Além de seu grande salto de qualidade “Memórias Póstumas de Brás Cubas”,

publica outros romances profundamente fundamentais: “Quincas Borba”, “Dom Casmurro”, “Memorial de Aires” etc.

Nesta história fantástica narrada por um defunto-autor, Machado de Assis faz uso da pretensa superioridade de Brás Cubas, o narrador-personagem, para revelar a precariedade da condição humana, num exemplo universal e intemporal de Realismo irônico, niilista, filosófico e metafísico.

Desde a narração de cenas da infância, Brás Cubas confunde e ludibria o leitor. Se num primeiro momento afirma: cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos, no próximo apressa-se em adicionar: talvez os gatos são menos matreiros e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância. (Capítulo IX: O Menino é o Pai Homem).

Na verdade, Brás Cubas foi um menino não apenas matreiro, mas malvado. Apelidado de “menino-diabo”, mentia, escondia o chapéu das visitas, colocava rabo de papel em pessoas graves, puxava cabelos, dava beliscões e maltratava cruelmente os escravos. Enfim, possuía um temperamento maligno, pelo qual o pai e a mão não o repreendiam. Ela por sempre ter sido fraca, omissa; ele por admirar-lhe as “traquinagens”, chamando-o brejeiro.

Desenvolvendo-se num ambiente familiar que o favorece e justifica, Brás Cubas sintetiza o seu ambiente doméstico com estas palavras: O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, - vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu essa flor.

Tal flor acaba por transformar-se num adulto egocêntrico, mentiroso, cínico, entediado e petulante; isto é, que se coloca como superior às outras pessoas, para assim disfarçar a seqüência de fracassos que na verdade foi sua vida.

Quando Brás Cubas era jovem, apaixona-se por Marcela, uma cortesã espanhola que o ama durante quinze meses e onze contos de réis. O pai assustado com os gastos do filho transfere-o para a Europa para estudos aos quais pouco se dedica, tornado-se um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Retorna alguns anos depois, poucos dias antes do falecimento de sua mãe.

O pai arranja-lhe um duplo negócio: torná-lo deputado e casá-lo com Virgília.

No entanto, ambos os projetos falham: Brás Cubas perde a noiva e o cargo de para Lobo Neves, além de morrer-lhe o pai, desgostoso e decepcionado.

Nhá Loló (Eulália), outra possibilidade de casamento, agora arranjada pela irmã Sabina, morre vitimada por uma epidemia de febre amarela.

Quincas Borba, um colega de infância que se diz filósofo, visita-o, rouba-o o relógio e desaparece, para retornar posteriormente, enriquecido graças a uma herança. Devolve-lhe o relógio, passa a freqüentá-lo, tornando-se um de seus raros amigos e conta-lhe sobre o Humanitismo: teoria filosófica que inventa e com a qual também justifica- lhe os caprichos e fracassos. Quase no desfecho do romance, enlouquece e morre em casa.

Inventar um emplasto contra a hipocondria – a seu ver um remédio miraculoso que curaria os males da humanidade – constitui a última tentativa de Brás Cubas, o seu último projeto, sem sucesso e inútil como todos os outros, inclusive aquele com o qual pretendeu adquirir uma pasta no ministério: “diminuir a barretina (antigo chapéu militar, alto) da guarda nacional...”

Segundo o personagem, o que impede enfim realizar-se por meio do divino emplasto, o que lhe daria o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza é a morte, já que ironicamente contrai pneumonia ao sair de casa, logo que ia patentear o invento.

Quando saímos da diérese das Memórias, percebemos claramente com o narrador influencia gradativamente na questão do leitor, o que nos interessa nessa análise de estética da recepção. Supostamente escritas um defunto-autor, isto é, por um narrador-personagem que resolve contar sua vida “de além túmulo”, estas Memórias Póstumas de Brás cubas constituem um romance grandioso, de leitura difícil, mas profundamente enriquecedora.

O foco narrativo em 1ª pessoa faz com que a palavra de Brás Cubas monopolize o texto, num relato aparentemente caracterizado pela isenção, pela imparcialidade de quem já não tem necessidade de mentir, pois deixou o mundo e todas as suas ilusões.

Entretanto essa constitui uma das famosas armadilhas machadianas. Com ela, o escritor desafiou a credulidade do leitor romântico de sua época e do leitor ingênuo, intemporal e universal: aquele acostumado com os romances de ação, lineares e sem densidade literária.

Nessa linha do pensamento, uma das chaves para compreendermos a obra é justamente colocarmos em dúvida a veracidade do relato, prestando atenção nas “pistas” que denunciam as mentiras, os exageros e as incongruências do narrador-personagem. Sua capacidade de

manipulação, tanto quanto sua presunção de superioridade ou “mania de grandeza” transparece desde a 1ª página.

Ao lermos o primeiro capítulo chamado “Óbito do autor”, reparemos que o narrador compara suas Memórias com o Pentateuco: os cinco primeiros livros do Velho Testamento, atribuídos ao profeta Moisés, sugerindo que a diferença radical entre ambas as obras estaria apenas na seqüência que se utilizam.

Entretanto, é notória a distância entre um livro sagrado, histórico, fundador de uma tradição religiosa atribuído a um profeta de importância universal e o relato da vida de apenas um homem cuja identidade não se conhece. Percebe-se nessa mentira de Brás Cubas a referida “mania de grandeza”, a comentada presunção, que se confirma com a continuidade da leitura.

Quando conta sobre o seu enterro, ele se refere aos onze amigos que o acompanham, imediatamente apressando-se em justificar essa exígua quantidade com a falta de cartas ou anúncios de que falecera e também com a chuva que caía na ocasião. Em seguida, transcreve o elogio fúnebre que lhe teria sido proferido por um dos amigos.

Veja que agora Brás Cubas, justifica-se para despistar o leitor: se fosse importante como o profeta o seu enterro estaria repleto de pessoas, sem a necessidade de cartas ou anúncios. Além disso, repare também que há um forte elemento romântico, presente no elogio fúnebre: a utilização da natureza para expressar sentimentos humanos. Ao afirmar não ter se arrependido do dinheiro que deixara aos amigos, Brás Cubas coloca em dúvida a sua bondade, a sua fidelidade e também a veracidade do elogio fúnebre, no qual encontramos uma clara ironia do escritor ao Romantismo.

Com tais “escorregões” de Brás Cubas, disseminadas ao longo de todo o romance, Machado de Assis vai anunciando o seu verdadeiro caráter.

Hans Robert Jauss, no capítulo intitulado “A Estética da Recepção: colocações gerais” procura sintetizar a concepção dessa área fazendo uso de teorias de outras correntes teóricas por ser esta uma linha de estudo nova e com pouca teoria. Esse teórico diz o seguinte sobre a estética: Desde então, a estética se concentra no papel de apresentação da arte e a história da arte se compreendia como história das obras e de seus autores. Das funções vitais da arte, passou-se a considerar apenas o lado produtivo da experiência estética, raramente o produtivo e quase nunca o comunicativo. A partir de tal colocação prosseguimos nossa análise por este viés. O estilo substantivo e anti-retórico de Machado de Assis; sua linguagem

sutil, ambígua e repleta de uma humor cáustico e permanente que destrói e ironiza cada uma das ilusões românticas, caracterizam estas Memórias..., distanciando-se das obras realistas de seu tempo e fazendo com que anunciem e modernidade literária, quer dizer, a literatura produzida no século XX.

O comentado narrador não-confiável ilude, provoca e desconcerta o leitor, em “conversas” em que muitas vezes ironiza suas expectativas, fazendo a metalinguagem da obra. Tais reflexões metalingüísticas, por sua vez, criticam a linguagem e a estrutura da narrativa tradicional, e questionam o próprio processo de criação literária. Podemos observar no Capítulo LXXI – O Senão do Livro:

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre. Sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e, aliás, ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens presa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...

Jauss fala ainda de Prazer Estético, e trabalha o conceito de catar-se. O texto literário não tem a preocupação de ser compreendido, mas de ser sentido. A concepção de Prazer é relativisada por Jauss, que entende que toma par si a concepção alemã: prazer como apropriação e como alegrar-se com algo.

Quebrando a linearidade do enredo, com micro-capítulos digressivos, que comentam, explicam e exemplificam outros capítulos, Machado de Assis fragmenta o romance tradicional e convida o leitor a um constante esforço de montagem, de organização, de recriação crítica e criativa da obra.

O capítulo XXXI em que Brás Cubas conta o episódio da borboleta preta (uma borboleta que entra em seu quarto, sendo por ele esmagada ), pode ser visto como alegoria do que sucedia na ocasião: ele tentava aproveitar-se de Eugênia, uma moça bonita, mas manca e pobre. Assim, embora não se perceba ligação entre o referido capítulo e o acontecimento

mencionado, o primeiro faz uma referência irônica e cruel ao segundo: como a borboleta preta. Eugenia é um ser fraco e deficiente, o que lhe possibilita, enquanto ser forte e saudável destruí-la também...

Para finalizar citamos o pensamento de Iser:“É sensato pressupor que o autor, o texto e o leitor são intimamente interconectados em uma relação a ser concebida com um processo em andamento que produza algo que antes inexistia. Esta concepção do texto está em conflito direto com a noção tradicional de representação, à medida que a mímesis envolve referência a uma “realidade” pré-dada, que se pretende estar representada”.

Memórias Póstumas de Brás Cubas escandaliza a sociedade burguesa da época em que foi publicado por ser o portador do sarcasmo e da ironia, disfarçados. Quando ele pede para o leitor prestar atenção em tal ponto está na verdade, encaminhando-o para outro bem diferente. Aí está a maestria de Machado de Assis e sua relação constante com o leitor.

Mestrando em Letras Adilson Barbosa
Enviado por Mestrando em Letras Adilson Barbosa em 31/08/2008
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