DIREITOS HUMANOS, LUTA DE CLASSES E LITERATURA

Resumo:

Neste artigo apresentamos algumas reflexões sobre a obra de Antonio Candido: Direitos Humanos e Literatura. Nosso intuito é o de precisarmos em que medida podemos aproximar o pensamento deste autor com o de Mészáros, Evaldo Vieira e Paulo Freire. A discussão enfoca as contribuições de Antonio Candido ao descrever a realidade desumana como um produto de um sistema político-econômico-social que atrapalha consideravelmente a democratização da educação e, consequentemente da leitura.

O processo remonta desde á nossa colonização, a vinda da família real para o Brasil e o impacto causado disto tudo na atualidade. Leituras de Paulo Freire, muito podem ajudar neste sentido. Não obstante, entendemos que todos estes episódios/ fatos históricos só podem ser compreendidos a luz do imperialismo do capital, que para sobreviver precisa estar em constante expansão-dominação. Sendo assim, compartilhamos das idéias de Mészáros, pois, compreendemos que as soluções não podem ser apenas formais ou pontuais, elas necessitam ser essenciais. Sem a leitura da luta de classes e os seus respectivos interesses, pode se correr o risco de, mesmo com as melhores das intenções, se fazer a defesa da classe dominante. Deste modo, acreditamos que este estudo possa colaborar para a formação do leitor, com o objetivo de lutarmos conscientes, para cambiarmos nossa sociedade antes que seja demasiado tarde.

Capitalismo e direitos humanos

Antonio Candido (1980, p. 107), ao refletir sobre os direitos humanos e a literatura chama a atenção sobre as muitas abordagens que podem ser feitas, porém estas só podem ser bem compreendidas após algumas considerações prévias feitas por ele, a respeito, do que significa direitos humanos e qual a localização deste na atual sociedade capitalista vigente. Compartilhamos da descrição caótica apresentada por Candido a respeito da realidade. O domínio da natureza chegou a seu ponto máximo. As contradições se fazem sentir por todos os cantos e aumentam diuturnamente. Nas palavras do próprio autor:

Assim, com a energia atômica podemos ao mesmo tempo gerar força criadora e destruir a vida pela guerra; com o incrível progresso industrial aumentamos o conforto até alcançar níveis nunca sonhados, mas excluímos dele as grandes massas que condenamos à miséria; em certos países, como o Brasil, quanto mais cresce a riqueza, mais aumenta a péssima distribuição dos bens. Portanto, podemos dizer que os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria (CANDIDO, 1989, p. 107).

Esta realidade injusta e desumana, segundo Candido, indubitavelmente tem prejudicado o acesso das pessoas aos bens literários. Compreendemos o valor desta reflexão, entre outros aspectos, por ela nos ajudar a descortinar, desvelar os meandros destas situações históricas econômico-sociais que marginalizam a vida em detrimento do capital. Ou seja, a vida que deveria ser o valor “fim” para o qual tudo converge se transformou em um valor “meio”, mercadoria de troca refém do capital, a seu serviço. Deste modo, a questão que nos causa indignação é o aumento da concentração de renda nas mãos de um pequeno grupo com prejuízos para todo o conjunto de uma população mundial. Este fato afeta consideravelmente o comprimento do direito que os pobres a uma educação de qualidade (CANDIDO, 1989, p.110).

Para Antonio Candido existem os “bens incompressíveis e os compressíveis”. Incompressíveis, no sentido, que não dá para comprimir, que não podem ser negados a ninguém. O próprio autor reconhece a dificuldade em se fixar a fronteira entre ambos: incompressível (necessário) e compressível (úteis, mas não necessário). Para a teoria marginal, o valor de uma coisa depende em grande parte da necessidade relativa que temos dela. Sabe-se que o dispensável para uma classe social não o é para outra. Os pobres têm direitos que não se restringem aos bens materiais. Candido sabe bem disso e por isso vai afirmar que os bens incompressíveis não são somente ‘os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual’. Seu objetivo é o de mostrar que à arte e à literatura são direitos inalienáveis, isto é, eles também não podem ser comprimidos:

São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.: e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura (CANDIDO, 1989, p. 111).

Conforme nossa compreensão, pensamos ser oportuno lembrar que enquanto realidades com esta existirem, acima de qualquer contestação ou aversão, vivo e fundamental sempre será o pensamento de Karl Marx, chave de leitura, para afastar as “nuvens negras” que nos impedem de ver o que se esconde nos “bastidores de realidades” conflitantes e contraditórias que se nos apresentam. O real não se dá a conhecer na sua imediaticidade, isto é o que legítima o fazer científico. A apreensão imediata não nos possibilita a compreender a realidade como ela é. Faz-se necessário sairmos das evidências e desvelar o que se esconde por debaixo delas. As coisas da cotidianeidade não se revelam de imediato (KOSIK, 1976, p. 9).

Toda obra que contesta as desigualdades sociais é um grito a favor da vida e indubitavelmente deve ser amplamente valorizada. A tese apresentada por Antonio Candido, por exemplo, sobre o fato de na Grécia antiga (FLORENZANO, p. 13 – 55), não haver como produzir para satisfazer a necessidade de todos em contraste como a constatação de que hoje, devido em grande parte ao avanço tecnológico termos as condições para produzirmos em larga escala, leva indubitavelmente a nossa indignação ao vermos pessoas a morrer de fome (CANDIDO, p. 108). Concordamos com Candido, uma vez que a constatação de que atualmente a morte por inanição é no mínimo irracional, haja vista, a capacidade de produção que atingimos devido aos avanços tecnológicos.

Contudo, pensamos que o conceito de civilização não pode estar atrelado apenas às questões de desenvolvimento técnico-científicos simplesmente, sem levar em consideração o desenvolvimento da humanidade de forma integral. Deste modo, somente poderemos brindar o “máximo de civilização” quando esta for inclusiva/extensiva a todo gênero humano e não restrita a um pequeno “gueto” privilegiado. A lógica do capital é cindir, dividir para melhor nos dominar. A máxima civilização jamais poderá ser construída por uma minoria. Ela só pode ser fruto da construção coletiva. Enquanto pensarmos civilização enquanto desenvolvimento técnico-cientificista nada mais estamos a fazer, que não seja alimentar a barbárie. Não adianta fazer o “bolo crescer” se este crescimento não vier sempre junto com a preocupação de uma distribuição eqüitativa deste processo. Portanto, é extremamente perspicaz a afirmação de Antonio Candido:

Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. Penso que o movimento pelos direitos humanos se entronca aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade, à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em correlação a cada momento da história (CANDIDO, 1989, p. 108).

Somos assim, interpelados a nos questionarmos, segundo Antonio Candido, sobre o que fazer e como fazer para transformarmos a sociedade. Os escritos de Candido nos interpelam, nos inquieta, nos anima e convida para conjuntamente com a literatura estarmos nos armando tendo em vista a construção de uma sociedade mais justa, solidária e para todos. Portanto, para além das questões conceituais no que tange o conceito civilização ou sua afirmação de que “somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça...”; importa para nós o valor dos escritos de Antônio Candido para a literatura e consequentemente para a construção de um mundo melhor.

Sabemos da gravidade dos tempos que estamos a viver. Todo otimismo se tornou altamente questionável. Ainda mais, se descolado do contexto histórico que vivemos onde quem domina de todas as formas busca implantar ideologias em nome de uma pseudo-neutralidade pró dominação. Assim, busca-se não falar de luta de classe, de existirem pessoas que são exploradas em seu corpo e em seu espírito. Karl Marx, já há muito tempo deu a receita para a única possibilidade de construirmos um planeta onde a vida possa ser para todos. A solução por ele apresentada passa pela quebra do sistema capitalista. Mas, a distância entre o como e o que deve ser feito para se quebrar com à expansão/dominação do capital e sua efetivação é um caminho muito longo e para isto é necessário muito mais que homens de boa vontade. O capitalismo em sua sede de lucro tem tornado aquilo que é um “valor fim” um meio e os “meios” em um fim. A vida humana passou a valer menos que o capital. O homem passou a valer menos do que pode produzir ou consumir.

Antonio Candido é alguém preocupado com as injustiças sociais que assolam nosso país e tanto prejudicam a população e seu desenvolvimento literário, humano-espiritual. Frente à verificação desalentadora de barbárie interpela á todos para abraçarem a luta pela emancipação de todos os seres humano-sociais. Longe das disputas teórico-metodológicas, o fundamental aqui é a responsabilidade que cada ser humano tem frente o avanço do capital e sua barbárie. As soluções por hora ainda existem e devemos nos empenhar antes que seja demasiado tarde. Eis o que Candido afirma:

Quem acredita nos direitos humanos procura transformar a possibilidade teórica em realidade, empenhando-se em fazer coincidir uma com a outra. Inversamente, um traço sinistro do nosso tempo é saber que é possível a solução de tantos problemas e no entanto não se empenhar nela. Mas de qualquer modo, no meio da situação atroz em que vivemos há perspectivas animadoras”(CANDIDO, 1989, p.108).

Ao lado de Candido é importante a leitura do pensamento de István Mészáros, que nos alerta sobre a utilização do discurso da luta em defesa dos “direitos humanos” como um mecanismo para que o “império do capital” avance sobre países periféricos recolonizando-os. Neste sentido, temos percebido o avanço norte-americano sobre o mundo em nome de uma vida melhor para todos. Mészáros em seu livro: “O Século XXI, Socialismo ou Barbárie?”, apresenta a relação entre a tendência globalizante do capital transnacional no domínio econômico com a dominação continuada dos Estados Nacionais como estrutura abrangente de comando da ordem estabelecida. Segundo ele, vivemos a fase potencialmente fatal do imperialismo e as contradições do capital não se resolvem com retóricas mentirosas (p.33). Para exemplificar Mészáros, mostra a atitude de Rossevelt, presidente americano, que venceu o imperialismo inglês com uma retórica de liberdade para todos: “uma civilização melhor, ou dito de outro modo, o pleno exercício dos direitos humanos para todos”.

Com o surgimento de um competidor imperialista incomparavelmente mais poderoso, os Estados Unidos, selou-se o destino do Império Britânico. Esse fato se tornou ainda mais urgente, e enganosamente atraente para as colônias, porque Rossevelt apresentava suas políticas com a retórica da liberdade para todos, e até mesmo com a alegação de um ‘destino’ universalmente acelitável (MÉSZÁROS, 2006, p. 37).

Compreendemos assim, que sem uma visão mais abrangente das grandes correlações de força corremos o risco de estarmos a justificar o avanço do capital com prejuízos ainda maiores para os seres humanos que cada vez mais passam a valer pelo quanto ganham ou possuem e não pelo que são na verdade. Mais, adiante Mészáros, nos alerta para o discurso do “New Deal” e o avanço da hegemonia imperial americana com discursos ainda mais cínicos envolvendo “democracia multipartidária’, defesa dos direitos humanos e assim por diante:

( ...) em vez do melhor discurso dos anos do ‘New Deal’, somos bombardeados com discurso da pior espécie: uma camuflagem cínica da realidade que apresenta os mais gritantes interesses imperialistas dos Estados Unidos como a panacéia da ‘democracia multipartidária’, a defesa seletivamente tendenciosa dos ‘direitos humanos’ (que acomoda, entre muitos outros, o genocídio turco contra os curdos, ou o extermínio de meio milhão de chineses na Indonésia na época da subida de Suharto, e mais tarde de centenas de milhares de pessoas no Timor Leste pelo mesmo regime cliente dos Estados Unidos), e a denunciada ‘dominação por monopólios no país e no exterior’ como o ‘mercado livre’ (MÉSZÁROS, p. 41).

Segundo Mészáros (p. 42), o capital se opõe ao trabalho e a construção da paz, ele vive de crises que desembocam em guerras (seus remédios parciais). Para D. Pedro Casaldáliga, “o capitalismo é intrinsecamente pecaminoso”. Antonio Candido, por sua vez, busca ver com bons olhos o fato de serem encobertas as mazelas sociais ao afirmar que isto ocorre porque os homens já não as acham mais naturais. Ou o fato de hoje “ninguém” mais defender que a pobreza é “vontade de Deus”. Ou ainda, a constatação em forma de lei de que a discriminação é crime (p. 109). Nosso objetivo neste artigo é o de estar a fazer o esforço filosófico dos porquês e até que ponto? Isto é, aquilo que ocorre, acontece apesar de parecer, será que caminha na direção de uma sociedade mais justa e solidária? Todo pensador é historicamente situado ao pensar e escrever. Candido por exemplo, revela as contradições quando escreve que há uma diferença significativa entre o que os homens falam e o que fazem.

Sintoma complementar eu vejo na mudança do discurso dos políticos e empresários quando aludem à sua posição ideológica ou aos problemas sociais. Todos eles, a começar pelo Presidente da República, fazem afirmações que até pouco seriam consideradas subversivas e hoje são parte do palavreado bem pensante. Por exemplo, que não é mais possível tolerar as grandes diferenças econômicas, sendo necessário promover uma distribuição eqüitativa. É claro que ninguém se empenha para que de fato isto aconteça, mas tais atitudes e pronunciamentos parecem mostrar que agora a imagem da injustiça social constrange, e que a insensibilidade em face da miséria deve ser pelo menos disfarçada, porque pode comprometer a imagem dos dirigentes (CANDIDO, 1989, p. 109).

Contudo, nossos direitos continuam na formalidade, no palavreado. Deste modo, compreendemos que apenas se esta substituindo uma ideologia por outra que diz: “Estamos indignados com a pobreza”. Evaldo Vieira por exemplo, fala da importância da democracia formal para justificar o domínio de uma classe sobre as demais menos favorecidas. Assim, defende-se o direito de que todos são livres e iguais, porém, quem pode pagar é mais igual. Logo, com o aumento da pobreza a indiferença e o pré-conceito passam a ser combatidos, porém, sem combater a lógica do capital que empurra inexoravelmente continuamente pessoas a marginalidade todo discurso, por melhor que seja, pode se transformar em ideologia reforçadora do sistema capitalista desumano em vigor.

Deste modo, é preciso que se afirme sempre que o problema do capitalismo não é conjuntural e sim estrutural. Baseado na concorrência e acumulo de capitais ele é um constante provocador de crises. Se entendermos bem isto, saberemos que o inimigo com quem temos que lutar não são os políticos conservadores ou liberais e sim contra esta forma com que se organizou a nossa sociedade que constantemente esta a produzir os seus “escorpiões”. Assim, consideramos válida a posição de Antonio Candido, que vê com bons olhos o fato de que os políticos todos já entenderam que é suicídio político se declarar ‘conservador’. Compreendemos também que a televisão mostra as mazelas sociais não para despertar as consciências e sim para naturalizar o inaturalizável, pois é um instrumento a serviço de quem detêm o poder econômico-político-social. A seu modo, Antonio Candido, busca ver em tudo motivos para encorajar a luta daqueles construir um mundo onde a vida possa ser de direito e de fato para todo gênero humano:

Do mesmo modo, os políticos e empresários de hoje não se declaram conservadores, como antes, quando a expressão “classes conservadoras” era um galardão. Todos são invariavelmente de ‘centro’, e até de ‘centro-esquerda’, inclusive os francamente reacionários. E nem poderiam dizer outra coisa, num tempo em que a televisão mostra a cada instante em imagens cujo intuito é mero sensacionalismo, mas cujo efeito pode ser poderoso para despertar as consciências – crianças nordestinas raquíticas, populações inteiras sem casa, posseiros massacrados, desempregados morando na rua (CANDIDO, 1989, p. 109 – 110).

Segundo Antonio Candido, devemos ter uma postura otimista, pois, hoje ninguém defende que a pobreza é “vontade de Deus”. A luta dos direitos humanos aumentou e nós estamos nos aproximando de um estágio melhor. Os argumentos deste autor se referem ao fato de que agora a imagem da injustiça social constrange e faz com que políticos de plantão ou não passem a entender que é suicídio político se declarar conservador. Na concepção de Candido devemos nos alegra, pois, apesar da barbárie crescer, não se vê o elogio, como se todos soubessem que ela é algo a ser oculto e não proclamado (CANDIDO, 1989, p. 108).

Sem dúvida, esta visão de mundo de Candido não é a única tese explicativa para os males produzidos pelo sistema capitalista serem encobertos. De qualquer modo, é preciso que se afirme sempre que a verdade deve ser falseada por ser altamente revolucionária. Deste modo é ingenuidade pensar que vivemos em uma sociedade democrática só porque todos têm o direito de expressão se paralelamente estes não saem da mera formalidade. O tempo numa rádio, televisão ou espaço no jornal custa dinheiro. Quem banca os meios de comunicação são os donos do poder. O poder só serve a si mesmo e deste modo, quem tem o poder sobre o que deve ou não ser veiculado na mídia, este é só um exemplo, pouco ou nada se preocupa com os que morrem por inanição.

Porém, o aumento da pobreza representa um perigo. O aumento da barbárie os amedronta. Assim, entendemos que não há motivo para otimismos dado que quem domina não abre mão de explorar e tirar vantagens na fraqueza de quem só tem a força de trabalho para oferecer. O direito tão elogiado por Candido é formal e uma discussão mais séria sobre o que é melhor: a existência de direitos formais ou a falta dos mesmos de forma declarada? Sim, porque de acordo com o entendimento de Evaldo Vieira, a construção de direitos formais são justificadores da sociedade democrática, onde quem governa para os poderosos faz com a aprovação de toda nação. Só há participação entre iguais. Portanto, ideologicamente, o voto serve para igualar as pessoas, porém, legítima o poder que conserva e mantém as desigualdades sociais (VIEIRA, 1992, p. 74).

Deste modo o Estado Capitalista governa a favor dos privilegiados com o aval dos marginalizados. Estes são limitados a aceitarem direitos formais, pois, não é novidade para ninguém que para “fazer valer os seus direitos” é preciso ter dinheiro. Assim, educação, saúde, segurança .... Se queres com qualidade deves pagar. Neste sentido para Evaldo Vieira em seu livro, Democracia e política social, uma verdadeira política social deve buscar diminuir constantemente as desigualdades sociais e critica o fato da participação da cidadania ter se resumido apenas em votar (VIEIRA, 1992, p. 73). Um pouco antes Evaldo apresentava os direitos que a cidadania nos garante:

O século XVIII seguramente ostenta o momento em que a cidadania ganha proeminência e divulgação. Desta época em diante veio acumulando direitos, compondo um leque de prerrogativas dos cidadãos para atuar na sociedade e no Estado. Os direitos de natureza civil dizem respeito às liberdades individuais: liberdade de locomoção, liberdade de pensamento e de crença, liberdade de ter propriedade, liberdade de empresa, liberdade de contrato, liberdade de imprensa, liberdade de recorrer à justiça a fim de garantir direitos (VIEIRA, 1992, p. 72).

Deste modo, é preciso que se afirme sempre que todos os direitos foram conquistados com muita luta da classe trabalhadora. Não foi um presente concedido generosamente por quem é elite dominante. A luta deve ser para que tudo aquilo que é de direito seja também de fato. Evaldo termina por afirmar que a política social inserida na democracia liberal visa a conservação das desigualdades, ou seja, a política social, materializando-se em serviços e em atividades de natureza pública e geral acaba por servir os interesses capitalistas (VIEIRA, 1992, p. 98).

Todo ponto de vista é á vista de um ponto, bem como em todo dito esta o não dito (Heidegger). Portanto, é digno de apreciação todo texto que busca denunciar e convidar a todos para a possibilidade da instauração de uma nova sociedade. Antonio Candido apresenta enquanto amante da vida e da literatura, argumentos suficientemente necessários para que não somente as conseqüências do capitalismo sejam combatidas, pois o próprio capital deve ser quebrado. Segundo ele mesmo, a literatura faz viver (CANDIDO, 1989 p. 113). E porque não dizer que a literatura é a própria vida logo de uma vez. É admirável a forma com que Antonio se refere à literatura, onde a apresenta como um conhecimento e por isso entre ‘aspas’ deve ser colocada à afirmação de que ela é manifestação universal de todos os homens; do mesmo modo é digna de louvor a sua afirmação de que a literatura permite aos homens sonharem acordados (CANDIDO, 1989 p. 112). Neste sentido, Antonio Candido apresenta uma comparação, numa relação de causa e efeito, onde o sonho é o responsável pelo equilíbrio psíquico e a literatura ‘talvez’ como a responsável pelo equilíbrio social. A seguir transcrevo a conclusão de Antonio Candido:

Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente (CANDIDO, 1989, p. 112 – 113).

Sabe-se muito da importância de Antonio Candido para a literatura e desta para a humanização das pessoas. Por isto, nosso apreço aos seus argumentos em prol de sua paixão: a literatura-vida. Concordamos com ele na questão que é fundamental: o capitalismo é desumano, pois transforma tudo em mercadoria. A miséria afasta as pessoas não só da literatura como delas mesmas. Indubitavelmente, nosso passado histórico é marcado não somente pela chegada da família real portuguesa no Brasil bem como remonta os primórdios de nossa colonização. Nossa herança histórico-cultural emanou da civilização portuguesa. Com base em estudos de Paulo Freire, podemos perceber que vivemos em uma sociedade em transição. O homem é um ser de relações e não esta somente no mundo, mas com o mundo. Há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, não se esgota num tipo padronizado de resposta. Contudo, o homem recria em si o que recebe. Este processo não é mecânico, e sim dinâmico. O homem por meio da integração enraíza-se. Todo homem é um ser situado e datado. No dizer de Paulo Freire:

A integração ao seu contexto, resultante de estar não apenas nele, mas com ele, e não a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento próprio da esfera dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica em que, tanto a visão de si mesmo, como a do mundo, não podem absolutizar-se, fazendo-o sentir-se um ser desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o seu mundo algo sobre que apenas se acha (FREIRE, 1979, p. p. 42).

O homem não é um ser apenas de acomodação, ele se integra ao relacionar-se, e aperfeiçoa-se na proporção que sua consciência se torna crítica. Neste sentido, Segundo Paulo Freire, ao se suprimir a liberdade, o ajustamento minimiza e cerceia o homem. Sem o direito de discutir o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora. Por meio das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, neste processo se realiza a dinamização das condições histórico-culturais. Ao humanizar o ambiente que o envolve o homem vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Temporaliza espaços geográficos. Em uma palavra: faz cultura (FREIRE, 1979, p. 43).

Após fazer uma análise do significado do termo transição, mudança, trânsito, Paulo Freire trata da questão “sociedade fechada” e no prejuízo desta para o desenvolvimento integral do homem. Denuncia a alienação cultural de elites que desligadas do novo tecido cultural esvaziam-se. Distanciadas do povo, superpostas á realidade destes. A elite não tinha vinculação dialogal com as massas, que só deviam seguir e obedecer. Dentro deste horizonte, torna-se possível a compreensão dos porquês de temas como democracia, participação popular, liberdade, propriedade, autoridade etc, causarem tanto espanto. Um homem, descritizado, acomodado e domesticado interessa a quem domina. Neste direcionamento a crítica de Paulo Freire a estas elites: “Incapacidade de ver-se a sociedade a si mesma, de que resultava como tarefa preponderante a importação de modelos” (FREIRE, 1979, p. 47).

Baseado em Paulo Freire somos interpelados a indagarmos sobre a influência da colonização portuguesa e da vinda da família real portuguesa para o Brasil e as conseqüências imediatas que isto acarretou. A saber de muitos, o idioma português e a manutenção da unidade territorial é apresentada por muitos historiadores como um diferencial da colonização portuguesa frente a colonização espanhola. Enquanto nas colônias vizinhas temos a fragmentação territorial e cultural o Brasil permanece mais coeso apesar de ser um país que de sul ao norte e de leste a oeste apresentar uma variedade lingüística e cultural bastante diversificada. O fato é que a coroa portuguesa aqui esteve e repercussões se fazem sentir.

Forçado por essas circunstâncias, chega ao Rio de Janeiro, em 1808, D. João VI. Chega e instala-se com toda a sua Corte que viria alterar intensamente os costumes, as formas de ser das gentes, não só do Rio de então, atrasada e suja cidade, mas de outros centros provinciais, estimulados pelos prazeres da vida, que a Corte ostentava (FREIRE, 1979, p. 76).

A instalação da Corte portuguesa provoca alterações profundas na vida brasileira. Temos o reforçamento do poder das cidades, das indústrias ou atividades urbanas. Por conseguinte, o nascimento de escolas, o aparecimento de imprensas, de bibliotecas e o ensino técnico. A majestade do patriarcado rural, das “casas grandes”, dá lugar ao modo de viver nas cidades. Porém, não significava a participação do homem comum na cidade, a grande força das cidades estava na burguesia, que enriquecida com o comércio manifestava cada vez mais sua opulência. No entanto, de modo geral, segundo Paulo Freire, “com algumas exceções, o povo ficava a margem dos acontecimentos ou a eles era levado quase sempre, mais como ‘algazarra’ do que porque ‘falasse’ ou tivesse voz” (FREIRE, 1979, p. 81). Mais adiante, acrescenta: “à superação da inexperiência democrática por uma nova experiência: a da participação, está a espera,...”(FREIRE, 1979, p. 83).

Em sua obra, “A importância do ato da leitura”, Paulo Freire, chama a atenção para o fato de todo leitor antes de ler qualquer escrito trás em si uma leitura de mundo. A linguagem é construção coletiva. Dominar uma linguagem é se apropriar de toda uma cultura. Neste sentido Paulo Freire escreve:

No esforço de re-tomar a infância distante, a que já me referi, buscando a compreensão do meu ato de ler o mundo particular em que me movia, permitam-me repetir, re-crio, revivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra (FREIRE, 1988, p. 14).

Assim, uma compreensão crítica gerada por meio da prática de pensar a prática, é absolutamente indispensável. O povo deve assumir a sua tarefa de refazer a sua sociedade, refazendo-se a si mesmo. Caso contrário, ao abandonar sua luta passa a ser somente representado pela história, já não presente na história (FREIRE, 1988, p. 40 – 41). È comum encontrarmos nos livros de história passagens que demonstram a influência da cultura européia no Brasil: “A influência européia era tão grande, que nos saraus familiares e salões literários, o francês era a língua predominante” (CUNHA, 1998, p. 87).

Tendo presente as palavras de Paulo Freire: “a leitura de mundo de cada sujeito é precede suas interpretações textuais”, nossa responsabilidade é pela transformação da ‘sociedade fechada’ em uma ‘sociedade aberta’, onde a vida e a partilha dos bens ocorra entre todos. É neste sentido que os escritos de Paulino J. Orso sobre a comuna de Paris e as questões sociais ganham significado e nos obrigam a pensar: “Nesta sociedade, anormal seria se não houvesse problemas. Pois, nada mais são do que expressão da competição, da exploração e da dominação que os indivíduos sofrem” (ORSO, p. 34).

Concluí-se deste modo, que Antônio Candido, Mészáros, Evaldo Vieira e Paulo Freire se aproximam no seu compromisso de lutarem para que o direito vida sejam para todos. A concretização deste evento nos obriga a lutar por uma educação para além do capital. Quem acredita na educação luta pela transformação da sociedade. Esta que historicamente - desde sua colonização, passa pela estadia da Família real portuguesa e sua corte – sempre se apresentou pautada nos benefícios de uma minoria em detrimento da maioria.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

CANDIDO, Antonio: In: FESTER, A.C. Ribeiro (org.). Direitos Humanos e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CUNHA, Ana Carneiro da: História: estudos correspondentes de 5ª a 8ª séries – Ensino Fundamental, vol. 1/ Ana Carneiro da Cunha. Curitiba: Educarte, 1998.

FLORENZANO, Maria Beatriz B.: O mundo antigo: economia e sociedade. São Paulo – SP: Editora Brasiliense, 11ª ed., 1991.

FREIRE, Paulo: Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, 1979.

FREIRE, Paulo: A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1988.

MÉSZÁROS, Istán. O século XXI: Socialismo ou barbárie? Tradução de Paulo Cezar Castanheira. 1ª Ed. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2003.

ORSO, Paulino j. e GONÇALVES, Sebastião Rodrigues (Org.): Estudos da III Jornada de Rememorização da I Associação Internacional dos Trabalhadores/ in.: ORSO, Paulino J.: Comuna de Paris e as Questões Sociais , Marechal Candido Rondon: Editora Ponto e Vírgula, 2007.

KOSIK, Karel, Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

VIEIRA, Evaldo Amaro. Democracia e política social. São Paulo: Cortez/ Autores Associados, 1992. (Coleção Poêmicas do Nosso Tempo, v.49).

SolguaraSol
Enviado por SolguaraSol em 25/09/2008
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