Conflito, Identidade e Resistência em O sumiço da santa: uma história de feitiçaria

CONFLITO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA EM O SUMIÇO DA SANTA: UMA HISTÓRIA DE FEITIÇARIA

Autoras: Ana Karine Bittencourt Coutinho Andrade

Eridam de Santana Costa(1).

Orientadores: Prof. Dr. Edivaldo Conceição Santos

Prof. Gutemberg M. O. Barbosa

Co-orientador: Prof. Me. Jônatas C. da Silva

RESUMO: O presente artigo enfoca a representação do processo de aprisionamento, conflito, identidade e excomunhão do corpo, em especial o da mulher negra, na obra O sumiço da santa: uma história de feitiçaria, do escritor baiano Jorge Amado, a partir das personagens centrais Adalgisa e Manela. Dessa forma, serão observados, através das atitudes dessas personagens, traços caracterizadores e reveladores desses processos, tendo como base a estigmatização e estereotipia que contribuem para a formação de uma identidade marginalizada. Assim, através da narrativa, propõe-se uma reflexão acerca de tais representações, bem como de alguns artifícios utilizados por Jorge Amado para desconstruir esse conceito identitário estereotipado, atribuído principalmente à mulher negra, desde o período colonial, numa visão histórico-literária.

Palavras chaves: Repressão, excomunhão, estereótipo, estigma, corpo, identidade, resistência.

ABSTRACT: The present article focuses the representation of the capture process, conflict, identity and excomunhão of the body, in special of the black woman, in the workmanship the sumiço of the saint: a history of witchcraft, the bahian writer Loved Jorge, from the personages central offices Adalgisa and Manela. Of this form, they will be observed, through the attitudes of these personages, traces caracterizadores and revealers of these processes, having as base the estigmatização and stereotype that contribute for the formation of a kept out of society identity. Thus, through the narrative, a reflection concerning such representations is considered, as well as of some artifices used for Loved Jorge desconstruir this estereotipado identitário concept, attributed to the black woman mainly, since the colonial period, in a description-literary vision.

Words keys: Repression, excomunhão, estereótipo, stigma, body, identity, resistance.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A representação do confronto religioso entre povos, na Literatura, já foi amplamente abordada por vários autores. Dentre esses pode-se citar José Saramago, com a obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Dias Gomes, com O Pagador de Promessas (1972), dentre outros. No caso do escritor baiano Jorge Amado(2), vê-se também essa representação. A obra em questão, O sumiço da santa: uma história de feitiçaria(3), delineia imagens de conflitos de identidades fragmentadas, conflitos estes gerados por conta da formação da sociedade brasileira, mestiça por natureza, que no seu bojo tem a presença de povos africanos, europeus e indígenas.

Uma das premissas articuladoras dessa fragmentação identitária está calcada no discurso colonial que afeta diretamente a sociedade e os sujeitos nela inseridos. À luz das análises de Homi Bhabha (2005), esse discurso está pautado na metáfora e na metonímia(4), em que o narcisismo e a agressividade são formas de identificação que constituem a estratégia dominante do poder colonial, executada em relação ao estereótipo no que se refere ao sentimento de pertença a culturas étnicas, religiosas e raciais. Para Marco Aurélio Luz (1983, p.70), “a característica do estereótipo é justificar a exploração e a opressão pelo índice imaginário de superioridade de um grupo humano sobre outro, recalcando todo o processo histórico que engendrou esta determinada situação”.

Através do discurso colonial, em conjunto com o conceito de identidade(5) constituiu-se o estereótipo do negro na sociedade brasileira, equiparando-o à animalidade, à inferioridade, num processo de “desculturação” e repressão ideológica, haja vista que, segundo Luz:

Todas as instituições de produção de ideologias se voltam para a construção de um corpus conceitual capaz de representar o outro como inferior, localizado numa série evolutiva mais próxima da matéria e do corpo que da alma e da razão. Esta falsa representação do colonizado acompanha a ação de colonizá-lo, de conquistá-lo, escravizá-lo e explorá-lo (Ibidem, p.66).

Desta forma, começa a acontecer uma espécie de “crise identitária”, em que nega-se ao negro o direito e a liberdade de cultivar e preservar o que, para este, há de mais sagrado: sua história, sua identidade, fato ocasionador dessa fragmentação identitária tão presente em nossa sociedade.

Por esse viés, a análise em questão pretende, em primeira instância, observar como se dá a representação do conflito identitário, vivido pela personagem Adalgisa, conflito este que a conduz ao processo de aprisionamento e condenação de seu corpo, contrapondo-se à afirmação identitária e resistência de sua sobrinha Manela, que será retratada num segundo momento. Vale ressaltar que o conflito vivido por Adalgisa não só a aprisiona e a condena como também reprime e excomunga o corpo de Manela.

Pretende-se, ainda, através de um olhar direcionado à desmistificação dos estereótipos criados pelo discurso colonial e direcionados ao negro, principalmente à mulher negra, apresentar os artifícios utilizados por Jorge Amado para desconstruir essas atribuições negativistas, na obra em foco. Para tanto, buscaremos na personagem Yansã(6) os subsídios necessários à afirmação de identidade e resistência para a resolução dos conflitos que permeiam a trama.

1 – ADALGISA: FRAGMENTAÇÃO DE UMA IDENTIDADE

O Sumiço da Santa... relata, dentre outras situações, a história de Adalgisa, uma mulher extremamente religiosa, educada nos preceitos cristãos e seguidora fiel dos ensinamentos que lhe foram transmitidos: “Dona Adalgisa Perez Correia, de proclamado sangue espanhol, pelo paterno e de escuso sangue africano pelo materno” (AMADO, 1999, p.39). Inserida num universo de cultura híbrida, Adalgisa, “de leito católico, puritano, regido por padre confessor” (Ibidem, p. 41), o reverendo José Antônio Hernandez, fiscal de sua pureza, tenta a todo custo “apagar” sua identidade negra, firmando-a nos padrões do catolicismo. Em sua rotina, incluí-se um “controle semanal, aos domingos, no confessionário da igreja de Santana, antes da missa das dez e da sagrada comunhão” (Ibidem, p.41).

A história dessa personagem gira em torno de um conflito religioso, em que Adalgisa sente-se dividida entre os princípios católicos e os ritos do candomblé, uma vez que, embora possuísse a condição de abicum(7), por um lado, por outro, fora educada nos padrões do catolicismo. Desta forma, Adalgisa procura direcionar sua identidade pelos caminhos da cristandade, por julgar ser o candomblé “centro de perdição, onde o demônio se apossa das almas dos cristãos” (Ibidem, p.71), optando, então, por nem ouvir falar, guardar a maior distância. Na concepção de Ordep Serra,

Adalgisa é a mulata inaltêntica, pernóstica, que não reconhece sua origem negra; valoriza apenas o sangue espanhol, que tem da parte do pai, e até se considera espanhola, cultivando suas relações com a colônia para o sublinhar. Ao mesmo tempo, como mulher, ela prende-se ao papel de senhora, seguindo princípios que combinam preconceitos sexuais, de raça e de classe. Ainda por cima, adota um catolicismo fanático, marcado pela intolerância religiosa, e tem um confessor fascista (1995, p. 312).

Nesse âmbito, Frantz Fanon (1983) remete a essa questão, semelhante a Serra, compreendendo que o negro, uma vez aprisionado num processo de aculturação, passa a adquirir uma capacidade mimética, no que tange à cultura etnocêntrica, e, por conseguinte, acaba por incorporá-la, torna-se o “outro”.

Vê-se, portanto, que a assunção dessa identidade está predestinada ao fracasso, dada à sua natureza híbrida, o que vem a ocasionar o descentramento identitário, uma identidade fragmentada. Em face dessa dubiez, no que concerne à identificação, negra-branca, a personagem acaba por cometer um ato de violência contra a própria identidade, negando os laços de sua origem. No que se refere ao conflito identitário vivido pela personagem, Fanon (1983) recorre à idéia de que o desejo de imaginar ser, de se tornar o “outro” provoca uma alteração nas posições identitárias, posto que, branco e negro constituem duas identidades que se articulam e encenam em absoluta relação. Assim sendo, por mais que Adalgisa renegue seu passado, sua origem híbrida não permite a fixidez de uma assunção identitária etnocêntrica e fundamentalista, condicionando-a indubitavelmente a uma identidade miscigenada, principalmente no que tange às questões de cunho religioso.

Iniciada, desde o ventre materno, nos ritos do candomblé, fora-lhe atribuída a condição de abicum, o que implica num compromisso com a matriz africana. Todavia, Adalgisa, mesmo sendo alertada por Andreza, sua mãe, “recusou-se a ouvir, sua crença era outra, outros seus santos, seus preceitos e obrigações, seus fundamentos, (...)tinha outros compromissos, a coroa de espinhos, a cruz de Cristo, desprezava crendices e feitiçarias” (AMADO, 1999, p.228). Não sabia, Adalgisa, que o desinteresse para com suas obrigações, com suas raízes, afetaria profundamente sua existência e sua identidade, tornando-a ruim, fria, inclusive nas questões sexuais. Sua vivência resume-se num tormento identitário, como pode ser percebido no trecho abaixo:

Se o abicun cumpre as obrigações e o rigor do zelo pela grandeza do orixá, será uma pessoa igual às outras, com regalias e direitos. Se, porém, não reconhece sua condição, se a renega, não guarda os preceitos, almoça e janta alimentos proibidos, não salva o encantado, não lhe oferece o ossé(8) e o despacho, vira clandestino, sujeito a desconfortos e embaraços de saúde, não tem sossego, não usufrui de paz e alegria, só escuta o que é ruim, só enxerga o que é feio. (...) O abicun que abjura do orixá e o ignora anda pelo mundo como se fosse cego, surdo e desumano, clandestino: um robô, um monstro, um cazumbi, em vez de coração, tem uma pedra no vão do peito (Ibidem, p. 230).

Observa-se que mesmo vivendo num ambiente religioso híbrido, Adalgisa busca não se deixar miscigenar para, assim, manter sua identidade “pura”, distante de uma cultura que não aceita como sua, privilegiando sua origem paterna, européia. Isso é notável no trecho a seguir: “Adalgisa chegava em penitência das procissões da Semana Santa de Sevilha carregando a cruz de Cristo – considerava apenas esse lado (paterno), não queria saber de outro se houvesse” (Ibidem, p.39-40). Destarte, a personagem vale-se de traços característicos da cultura etnocêntrica para firmar essa identidade: o hábito da confissão domingueira, o puritanismo sexual, o fanatismo com que tenta seguir os códigos moralizantes, legitimadores dessa cultura. Além disso, busca “manchar” a imagem da cultura herdada pelo lado materno, marcando-a com estereótipos, os quais podem ser percebidos no momento em que Adalgisa agride sua sobrinha, Manela, e atira-lhe “à cara os maus instintos, a vocação de macumbeira e meretriz e, não se dando por contente, trouxe da paz do cemitério a memória de Eufrásio: teve a quem sair, ao negro cachaceiro, o bêbado que matou minha irmã, a pobrezinha” (Ibidem, p.63-4).

É notável o repúdio sentido pela personagem no que se refere às origens africanas, visto que chega a responsabilizar o cunhado pela morte da Irmã Dolores, por acreditar que Eufrásio era de péssima índole, esquecendo-se que correm em suas veias e, também nas de sua irmã, o sangue africano que tanto despreza. Bhabha afirma que a construção dos estereótipos advém ainda do discurso colonial, o qual:

conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre “no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido... como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano, que não precisam de prova não pudessem na verdade ser provadas jamais no discurso (BHABHA, 2005, p. 105).

Não bastasse ser Adalgisa severa consigo mesma, ainda oprime e reprime sua sobrinha Manela, que fora deixada aos seus cuidados em virtude da morte dos pais. Por ter sido criada aos moldes da igreja católica, Adalgisa tenta fazer de Manela uma senhora, do mesmo modo que sua madrinha Esperanza a fez, sem medir as conseqüências de suas atitudes tiranas, mesmo que para isso fosse necessário valer-se de agressões físicas e psicológicas. Além disso:

Adalgisa aprendera com padre José Antônio, seu diretor de consciência, a não usar a palavra castigo: mãe não castiga, exempla, corrige. Dizia: mereceu um corretivo, eu o apliquei, cumpri com meu dever pois a estou criando no respeito à lei de Deus, para fazer dela uma senhora (AMADO, 1999, p.69-70).

Como se pode notar, tal prática da tia é por acreditar que está agindo de forma correta, educando a sobrinha na obediência à lei divina, Adalgisa não se dá conta das agressões que comete, valendo-se, ainda de uma arma poderosa para corrigir os “erros” cometidos por Manela: a taca de couro que recebera de “presente do Padre José Antônio ao saber que a cara diocesana decidira criar a sobrinha órfã: vai lhe ser de utilidade, não tenha escrúpulo em utilizá-la, corrigir quem prevarica não é pecado, não ofende a Deus, é de seu agrado” (Ibidem, p.70). Assim, a taca de couro representa uma forma de repressão contra quem transgride aos valores instituídos pela igreja, tornando-se um meio de “purificar” o corpo do pecador.

Nota-se, portanto, que a tia puritana criara a sobrinha a rédeas curtas. Jamais aceitara o gosto, a identificação de Manela com o candomblé e a quaisquer manifestações da cultura afro-brasileira, por isso desde cedo, “pusera-lhe o cabresto, ditara horários. (...)Terreiros de santos, nem falar: Adalgisa tinha horror a candomblé. Horror sagrado, o adjetivo se impõe. Cabresto curto, pulso forte, trazia-a sob controle, castigava-a sem dó nem piedade” (Ibidem, p.50). Esforçara-se em conduzí-la ao bom caminho, livrando-a das garras da perdição. Para Bhabha (2005):

a recusa da diferença transforma o sujeito colonial em um desajustado – uma mímica grotesca ou uma “duplicação” que ameaça dividir a alma e a pele não-diferenciada, completa, do ego. O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais (2005, p. 117).

A recusa da personagem em aceitar o culto aos orixás, negando sua origem e não permitindo que Manela se afirme enquanto afro-descendente, faz com que Adalgisa torne-se a mediadora do que se pode chamar de processo de aprisionamento e excomunhão do corpo, uma vez que utiliza-se de tais artifícios para manter sob controle a sobrinha, condenando qualquer atitude que julga ser pecaminosa. Analogamente, mantém-se aprisionada, pois vive uma relação matrimonial conturbada, por conta dos recalques construídos pelos dogmas religiosos, os quais vêem no ato sexual o mero dever de procriação. É importante observar a seguinte passagem em que Adalgisa relembra os conselhos que sua madrinha lhe dera antes do casamento, para que fossem rigorosamente seguidos na lua de mel:

Estivesse atenta sobretudo às proibições e limitações impostas ao relacionamento sexual dos cônjuges pela Santa Madre Igreja, para não praticá-las, não correr o risco de ver-se de repente excomungada. Existem homens depravados – la mayoría, mi niña – que abusam da inocência das pobres criaturas e não se acanham de arrastar as próprias esposas pelos caminhos da luxúria, da devassidão, como se elas fossem prostitutas. São caminhos da ignomínia, da perdição (AMADO, 1999, p. 181).

Isso posto, indaga-se: poderia Adalgisa viver feliz e em paz, se não conseguisse definir sua verdadeira identidade? Percebe-se, mais uma vez, o conflito identitário presente na personagem, representado por Jorge Amado, tornando-a uma pessoa dura e fria, impedindo-a de afirmar suas raízes africanas, fato que a faz viver dividida entre a felicidade, pessoal e conjugal, e a obediência; entre o candomblé e o catolicismo.

2 – MANELA: RESISTÊNCIA E AFIRMAÇÃO

Contrapondo-se à personagem Adalgisa, sua sobrinha Manela é o avesso daquela. Enquanto a primeira segue as rígidas determinações do catolicismo, a segunda resiste às imposições e às inúmeras tentativas da tia em fazer dela uma distinta “senhora”. Percebe-se, desde já, na figura de Manela a representação da resistência, como se mostra no trecho a seguir:

Foi tão inesperado, tão insólito e absurdo, que Adalgisa se calou, apatetada. Fora de si, não se dera conta da estranha atitude da sobrinha que até ali se mantivera em silêncio, apanhando calada, sem choro, nem pedido de perdão. Onde se perdera a Manela submissa e temente, desfeita em lágrimas e soluços, caída de joelhos a solicitar clemência? Basta, tia juro que não faço mais, juro por minha salvação, pela alma de minha mãe. Por fim destrancara a boca, recuperara a voz, mas o fizera para mandar que a tia se calasse. O que se passara, capaz de torná-la assim ousada, de exibir tamanho atrevimento? Que estava acontecendo? (AMADO, 1999, p. 64-5).

É importante informar que, Manela, a priori, como todo sujeito oprimido, não resistiu de imediato às deliberações da tia. Deixada aos cuidados desta, em virtude da morte dos pais, a jovem mulata sofrera agressões de toda espécie nas mãos de uma fanática que não aceitava a sua crença religiosa, por acreditar que tais manifestações a estavam tornando pervertida e desviando-a dos caminhos divinos.

De acordo com Bhabha (2005, p.118), “no ato da recusa e da fixação, o sujeito colonial é remetido de volta ao narcisismo do imaginário e sua identificação de um ego ideal que é branco e inteiro”. É o que acontece com Adalgisa ao tentar impor suas crenças em detrimento das de Manela, não respeitando uma identidade cultural-religiosa que também é sua, mas que esta se nega a assumir, aprisionando, desta forma, a sobrinha numa redoma da cristandade, obrigando-a a utilizar a ideologia do falseamento para não se deixar dominar, preservando sua cultura e afirmando sua identidade negra. Assim, inicialmente, o autor apresenta Manela: “Oprimida, sem vontade própria, sempre na defensiva: medrosa, embusteira, esmorecida, fingida, submissa. Sim, tia. Ouvi, tia. Já, vou, tia. Bem-mandada” (AMADO, 1999, p.47).

Além dessas práticas absurdas, o narrador evidencia outros tratamentos que a tia dava a Manela quando julgava que a sobrinha fizera algo de “errado” ou desobedecera às suas ordens:

Manela recebeu a primeira chibatada, alcançou-a na altura dos rins, cortou-lhe as carnes. Mas cortante e intolerável o xingo cuspido pela tia:

- Cadela!

Adalgisa suspendeu o braço, fazendo zunir a taca de couro, utilizada com freqüência nos dois anos decorridos desde o concurso de Miss Primavera, (...).

- Cadela! Excomungada!

Adalgisa moveu o braço, o chicote assoviou no ar (...). (Ibidem, p. 76-7).

As atitudes agressivas para com Manela, por supor que esta não é dotada de uma boa conduta, não tem moralidade, castigando-a severamente para corrigi-la, comprovam que Adalgisa traz consigo traços que identificam o processo de opressão e condenação, partindo do conceito de estigmatização e estereotipia, agentes formadores de uma identidade marginalizada. É possível relacionar as atitudes de Adalgisa ao que Fanon, citado por Bhabha, descreve:

A cultura anteriormente viva e aberta para o futuro torna-se fechada, fixada no estatuto colonial, presa no jugo da opressão. Presente ou mumificada, ela testemunha contra seus membros... A mumificação cultural leva a mumificação do pensamento individual... Como se fosse possível a um homem desenvolver-se de outro modo senão dentro da moldura de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir (FANON apud BHABHA, 2005, p. 120).

Comprova-se, portanto, a ingenuidade de Adalgisa em acreditar que, impondo suas crenças, seus costumes a Manela, esta assumiria tal identidade, tornando o processo de dominação, almejado pela tia, mais simples de ser executado, posto que é sempre mais fácil dominar um território conhecido, isto é, os preceitos religiosos cristãos, o qual segue com maestria, do que um território totalmente desconhecido e temido, o candomblé, temor este que, nas palavras de Julio Braga, pode ser lido como:

suporte permanente do processo de construção e revitalização da identidade do negro que se apropria constantemente e nem sempre de maneira consciente de um vasto e complexo conteúdo simbólico que remete, via de regra, às ocorrências históricas e na mesma dimensão aos mitos pretéritos que subjazem na memória coletiva e, conjuntamente – mito e história – elaboram os caminhos da ancestralidade afro-brasileira (1995, p.20).

A preocupação de Adalgisa quanto à assunção de Manela de sua identidade negra, visto que, uma vez iniciada no candomblé, tornar-se-ia difícil, senão, impossível, o controle da tia sobre a sobrinha, no que se refere à imposição da cultura do branqueamento em detrimento da cultura afro, pois, como afirma Braga (1995), tal manifestação religiosa tornou-se uma arma de combate ao discurso colonialista. Desta forma, Manela não se deixaria curvar diante da opressão sofrida, buscando na afirmação de sua identidade cultural-religiosa um estratagema de resistência.

Em diversas passagens da obra, o narrador deixa transparecer a luta de Manela em busca de sua afirmação identitária, vendo na segunda tia materna, Gildete, a cumplicidade e o apoio que ora lhe fora negado por sua tutora. Ressalta-se que a personagem em questão era adepta ao candomblé e figurou um relevante papel na libertação da sobrinha das garras da tia tirana, encorajando-a e encaminhando-a, mesmo que às escondidas, ao seu verdadeiro espaço cultural, a fim de proporcionar à sobrinha a liberdade de expressão cultural de seu povo.

Tomemos como base, na obra, a passagem da Lavagem do Bonfim(9), um dos eventos culturais mais significativos da Bahia, em que Manela, sem o conhecimento e consentimento da Tia Adalgisa, participa do festejo e, sentindo-se pertencente àquele meio, assume uma identidade que há muito fora obrigada a ocultar.

Comparecera [Manela] à procissão porque Gildete exigira, num ultimato de ameaças medonhas: - Se você não estiver aqui cedinho, vou lhe buscar, e sou muito mulher de partir a cara daquela tipa se ela ousar dizer que você não pode vir comigo (AMADO, 1999, p. 47).

Essa prática da personagem vai de encontro às ordens da tia opressora, Adalgisa, pois que, em meio à procissão, toda de branco, Manela realizou o ritual da lavagem, junto com a tia Gildete e suas primas, dançou e, como uma escrava alforra, comemorou a tão sonhada liberdade, embora ainda temesse os castigos que receberia caso atrasasse para o almoço, horário estipulado para chegar em casa. Mas:

ao susto e à mortificação que a dominaram quando os sinos marcaram a hora do meio-dia sucedeu um completo desafogo: tomada de alegria, na repulsa à canga e ao cabresto, Manela rediviva. Assim rolaram naquela Quinta-Feira do Bonfim as águas de Oxalá. Apagaram o fogo do inferno, axé (Ibidem, 55).

(...)nenhuma palavra pronunciada contra a violência e a tirania é vã e inútil: alguém ao ouvi-la pode superar o medo e iniciar a resistência. Eis que Manela percorreu os caminhos de Oxalá no pátio da basílica do Bonfim na hora em que devia estar chegando em casa (Ibidem, p. 52-3).

Com esse comportamento, ratifica-se o processo de resistência de Manela contra as imposições e opressões sofridas, já que, de acordo com Serra (1995, p. 323), “o dogmatismo intolerante e repressão sexual constituem dois pecados mortais do catolicismo, pecados cuja redenção o encontro com o candomblé torna possível”. Nesta passagem, o narrador vale-se da representação do contato direto, de Manela, com a cultura herdada dos pais, mas negada pela tia, como instrumento assegurador da resistência. Vê-se, portanto, a familiarização da personagem com esse espaço definidor de sua identidade, tendo em vista que, em companhia dos pais, Manela já freqüentava os terreiros, mas a partir do convívio com a tia puritana, fora proibida de retornar a esse ambiente, segundo esta, pecaminoso.

Nota-se, desta forma, o empenho e a necessidade de Manela em afirmar-se, haja vista que estivera, por alguns anos, em contato com um espaço cultural que não era seu. Vale ressaltar que, embora vivesse num ambiente culturalmente híbrido e deixando-se, em alguns momentos, aprisionar-se, fosse por medo ou estratégia de resistência, Manela demonstrou ter certeza de sua identidade, de sua origem, necessitando, apenas libertar-se das amarras de uma cultura etnocêntrica, afirmando-se.

Para Osmar Moreira, “libertar o corpo” é uma questão de experimentar o que lhe é sempre negado, o que não fora experimentado, posto que:

o ato, o procedimento de “excomungar” o corpo, é uma questão política. O corpo a ser excomungado talvez tenha sido aquele que primeiro resistiu ao aprisionamento, ou aquele que escapou por um buraco do muro, da cerca, do discurso, ou ainda aquele que, mesmo aprisionado, soube manter intacta a sobriedade do desejo e daí ter acentuado toda demência e fascismo do ato de excomunhão (MOREIRA, 2002, p. 162).

Sabe-se que todo processo de ação implica em uma reação. Tal teoria adequa-se ao caso de Manela, que, ao sofrer coerções e opressões, resistira instintivamente na tentativa de dissolver o elo do culturalismo hegemônico(10), deixando sobressair-se a cultura do oprimido, rejeitada sob a alegação de que se tratava de “práticas de feitiçaria”, tratamento comum à época, posto que a sociedade dominante, como informa Braga (1995, p. 24), demonstrava seu medo em ver que “essas formas de religiosidade popular, chamadas com escárnio de cultos ‘primitivos’ ou feitiçarias, avançavam e se reproduziam rapidamente, e se constituíam em sério entrave a sedimentação da desejada civilização moldada em padrões europeus”.

Muito embora a obra tenha sido escrita no Século XX, esses comportamentos remontam ao período colonial. Muitos foram, nesse período, os artifícios de persuasão utilizados pelos colonizadores para converter os africanos à sua religião dita “salvadora”, já que, segundo Fanon (1983, p. 133), “o Negro incomoda o esquema postural do Branco, e isto, naturalmente, no momento em que o Negro surge no mundo fenomenal do Branco”. No entanto, essas atitudes provocaram um forte sentimento de resistência embasado em valores profundos e enraizados na própria “noção de ser e de pessoa” do negro. Analogamente, o narrador vale-se do artifício da resistência para representar a tomada de consciência da personagem Manela, no que se refere à sua afirmação enquanto ser, enquanto mulher negra, que, por décadas lhe foram atribuídos os mais diversos estereótipos: negra lasciva, destruidora de lares, pecadora, desencaminhadora dos homens dos caminhos divinos, dentre tantos outros.

Típico do discurso colonialista, esse tipo de preleção tem sua teoria abalada posto que, o narrador traz à tona os comportamentos de Diana Teles, de codinome Silvia Esmeralda, e da senhora Olímpia de Castro, duas distintas senhoras da alta sociedade baiana, que costumavam obter na cama, entregando-se a homens influentes, promoções e favores para o marido desta última, como também, entregando-se a jovens sacerdotes, por puro prazer e diversão, como artifício desmistificador dos estereótipos. A presença dessas duas personagens torna-se importante na obra, no tocante à desconstrução da imagem distorcida das mulheres negras pintadas por uma sociedade etnocêntrica.

Ao incluir em sua trama duas personagens brancas dotadas de características, até então, atribuídas exclusivamente à negra, o narrador, mais uma vez, utiliza-se desse contexto como artifício para desconstruir estigmas e estereótipos firmados pela sociedade dominante, desmistificando o mito da compulsividade e lascividade do corpo da mulher negra.

Em suma, o narrador ampara-se na personagem Manela e nas “distintas senhoras” para realçar o conceito de resistência, assim como para desmistificar os estereótipos criados pelo discurso colonial, discurso esse que no entender de Moreira, só será eficaz quando a arte for tomada como máquina de guerra. Sobre essa questão, o autor assim se pronuncia:

possivelmente, apenas, uma arte ou uma cultura tomada como máquina de guerra, fez/faz/fará circular as forças ativas ou os elementos capazes de se reengendrar uma desconstrução efetiva tanto de uma ética de repressão do corpo quanto dos discursos ou modos de representação de uma arte comprometida com os valores de uma cultura de dominação (2002, p. 164).

É nessa linha de pensamento, que o narrador vale-se da personagem Yansã, como veremos no capítulo seguinte, para dar continuidade à luta pela afirmação de uma identidade negra, apresentando-a como um instrumento de libertação, em meio a um processo conflituoso de aprisionamento e excomunhão do corpo e da cultura negra.

4 – YANSÃ: PODER E LIBERTAÇÃO

Yansã, âmago determinante da narrativa, transita na obra como simbologia de poder e libertação, afirmando a identidade negra a partir de sua aparição e desaparição, e isto se verifica quando ela, Yansã, personificada, intercede por Manela e cobra a Adalgisa o que lhe é devido, já que esta última possui a condição de abicum, além de exemplar a quem lhe faltara e propagar o direito à vida, ao amor, à felicidade. Partindo desta premissa, confirmando este argumento, o narrador afirma:

Viera [Oyá(11)] à cidade da Bahia para concluir tarefa iniciada em janeiro, na Quinta-Feira do Bonfim, trazia um propósito e uma decisão: libertar Manela do cativeiro e mostrar a Adalgisa com quantos paus se faz uma cangalha. Seus cavalos, ela os montaria em pêlo, em Adalgisa poria uma cangalha e assim a montaria. Para lhe ensinar a tolerância e a alegria, o bom da vida (AMADO, 1999, p.30).

Nessa transformação ritualística, Santa Bárbara, a do Trovão, como a nomeia o autor, espalha seu erotismo sagrado mostrando o poder de sedução e a força do hierofânico que, juntando-se ao natural, vai modificando, à sua passagem, o comportamento dos que com ela se cruzam. Sua postura altiva e decisiva altera os padrões sociais ali vigentes, apontando as falhas deste sistema político-ideológico. Surge, enfim, como afirma Moreira:

uma máquina de guerra, que procura liberar a potencialidade do indivíduo; desejo, corpo, pensamento, liberar a máquina do desejo, reinstaurar a dança, o tempo e a teatralidade no corpo, colocar o movimento no pensamento, liberá-lo para a criatividade e para os jogos de linguagem (2002, p. 165).

A metamorfose da santa associa-se a certas características marcantes do orixá, pois, como afirma Serra (1995), Yansã é uma guerreira que subverte regras estabelecidas, alimenta a rebeldia, convida à libertação. “As façanhas da deusa constituem uma série de metamorfoses, de conversões. (...)Branca-negra, negra-branca, orixá e santa traduzem o sincretismo na cifra de uma fusão de raças, em hieroglifo da mestiçagem (Ibidem, p. 305).”

Antes, porém, de dar continuidade à sua missão, libertar Manela e Adalgisa, iniciada na Lavagem do Bonfim, Yansã passa por diversos terreiros famosos da Bahia: Terreiro do Gantois, Casa de Alaketu, Opô Afonjá, Terreiro de Portão, Odô Oyá, dentre outros, enaltecendo as mães-de-santo, cada uma com sua peculiaridade. Elas são: Stella de Oxóssi(12), Jacira do Odô Oyá, Menininha do Gantois, Olga de Yansã. É interessante observar como Jorge Amado, transmutado em narrador, utiliza-se da composição dos nomes das mães-de-santo, os quais são acrescidos das denominações de seus deuses, para, mais uma vez, afirmar a identidade cultural-religiosa afro, visto que tal composição torna-se, também, um artifício de resistência dessas mulheres no que tange à preservação das tradições africanas. Retomando a missão da visita da santa a Salvador, o primeiro momento em que esta se manifestou em defesa de Manela foi quando a tia Adalgisa tentou punir a sobrinha, em virtude de tê-la flagrado dançando na Lavagem do Bonfim, pela televisão, festa essa que a moça participara sem o conhecimento e consentimento da tia. Antes da Lavagem, Manela era outra pessoa submissa à tia, contudo, ao chegar em casa, após ser “possuída” por Oyá na Lavagem, era outra, não mais submissa e calada, era, agora, uma nova Manela, convicta de sua cultura, crença e identidade. Ao vestir o traje branco das negras do candomblé, já consumava uma ato significativo de profunda transformação, de retorno às origens cujo esquecimento lhe era, a cada dia, imposto. Mas, agora, pela primeira vez, com ajuda de Oyá, enfrentara a tirania da tia e impusera respeito, deixando-a em completo estado de perplexidade, como confirma o narrador:

(...)Romeira da festa do Bonfim, o corpo limpo, a cabeça feita, Manela segurou com a mão direita o pulso da tia, com a esquerda abriu-lhe os dedos: tomou a taca de couro e a atirou longe. Olhos arregalados, incrédula, perdida, sem ação e sem palavras, Adalgisa fitou a sobrinha, viu Satanás em sua frente – acontecia o fim do mundo (AMADO, 1999, p.77).

Era o fim do mundo para a beata puritana: ver a sobrinha de “cabeça feita”, assumindo uma identidade que a tia tanto condenava, tinha imenso pavor e rejeição, ainda mais, naquele momento em que perdera completamente o controle sobre esta.

Inconformada com as ações de Manela e por desconfiar de uma suposta fuga desta com Miro, seu namorado, Adalgisa, sob orientação e cumplicidade do padre confessor, consegue interná-la no Convento das Arrependidas, visando controlar, mais uma vez, o corpo e a mente da sobrinha. Entretanto, Oyá manifesta-se, novamente, em prol da “salvação” de Manela. A santa vai, em pessoa, até o convento, munida de uma autorização do juiz da Vara da Infância, libertar a jovem da clausura a que fora submetida. A seguir, após tomar-lhe o corpo, encaminha a moça ao Terreiro do Gantois, onde um barco a esperava para fazer-lhe a cabeça. Eis que se consolida a primeira missão de Oyá: a libertação da jovem Manela e a sua condução à real identidade cultural-religiosa.

Oyá precisava, ainda, cumprir outra parte de sua missão: libertar Adalgisa do fanatismo religioso cristão, ao qual esteve aprisionada ao longo de sua vida, por intermédio de uma rígida educação que lhe fora transmitida desde o berço e que, através do Padre Antonio Hernandes, fora extendida. Tal educação transformara Adalgisa numa pessoa fria, áspera e, acima de tudo, repressora.

Analisa-se, aqui, a conversão de Adalgisa, a mais radical e espetacular já pintada pelo narrador. Depois que cuidou da “alforria” de Manela, Yansã sai em busca de Adalgisa para, definitivamente, conduzí-la à libertação. No momento em que Adalgisa descobre que a sobrinha fora retirada do convento, segue imediatamente para lá, acompanhada do padre confessor. Mas, durante o percurso, Yansã tenta tomar o corpo de Adalgisa, embora esta relutasse em deixar-se “cavalgar”, fato que é ratificado pelo narrador:

Adalgisa se contorceu, mordeu a boca, os olhos faiscaram (...). Os lábios roncaram resmungos inaudíveis, o abicun deu três saltos no ar, cada qual mais alto. (...) Tentou controlar-se a espanhola ungida e iluminada, católica da Santa Inquisição, buscou fugir do transe, escapar ao santo. (...) Negar-lhe passagem, trancando a porta aberta com a navalha quando a mãe embarcou na camarinha sem imaginar que levava no bucho a filha de dom Paco (Ibidem, p.378).

Embora houvesse, a princípio, resistência por parte de Adalgisa em receber o orixá, Oyá consegue se apossar do corpo da abicun, fazendo-a, finalmente, render-se à sua verdadeira cultura. “Quarenta anos depois de ter feito o santo, apenas concebida no ventre de Andreza, sua mãe, Adalgisa abandonou o estado clandestino de abicun, assumiu a gloriosa condição de filha de Oyá Yansã” (Ibidem, p. 379).

Nesse momento, é perceptível a completa mudança de Adalgisa, tanto na vida pessoal e social, quanto na vida conjugal. Essa transformação, como afirma o narrador, dá-se de forma positiva, pois todos os infortúnios - as dores de cabeça, a ruindade e o fanatismo - desaparecem, tornando-a uma pessoa mais feliz em sua plenitude, graças à intervenção, mais uma vez, de Yansã.

É importante ressaltar que, mesmo deixando de ser puritana e fanática, e descobrindo-se como mulher negra, a conversão de Adalgisa não denotou no total abandono do catolicismo nem de seus princípios de senhora. Comprova-se, tal afirmação, nas seguintes passagens:

(...) Adalgisa domada, jovial, livre de enxaquecas, daquelas dores de cabeça e do padre confessor, virara pelo avesso, e, sem deixar de ser uma senhora, era uma pessoa igual às outras. Sem deixar de ser católica, era fogoso cavalo de encantado, na roda dos santos (Ibidem, p. 416).

Deixou de ser puritana, mas não se fez devassa, guardou certo melindre no trato do amor que lhe aumentava a graça e a sedução. Continuou sendo uma senhora, dada a licenças no leito, deixou de ser fanática, mas continuou boa católica, vai à missa aos domingos em companhia de Gildete mas já não se confessa ... (Ibidem, p.425).

Nota-se a desconstrução dos estereótipos atribuídos à mulher negra, quando o narrador afirma que a personagem assumiu uma identidade, a qual negara por tanto tempo, mostrando que ao afirmar-se, a mulher negra torna-se mais feliz e não deixa de ser uma pessoa comum, como todas as outras, digna de conviver em qualquer meio social, sem precisar, para tanto ocultar suas raízes. Tal fato caracteriza-se como mais um artifício utilizado pelo narrador para desmistificar a imagem distorcida destas mulheres.

Na construção da cena decisiva, a transformação de Adalgisa, o narrador descreve um cenário semelhante ao conflito final, ao apocalipse. Dá-se, enfim, o confronto religioso que definirá e afirmará a identidade de uma “senhora” que há muito sofrera por não determinar, muito menos aceitar, suas origens negras.

Catolicismo e candomblé confrontam-se, semelhante ao drama de Dias Gomes, em que um devoto de Santa Bárbara faz uma promessa para que seu burro pudesse ser curado. Mas ao invés da igreja, o pobre homem achou-se fazendo a dita promessa num terreiro, por acreditar que Santa Bárbara e Yansã eram a mesma. O narrador, de forma análoga, recorre ao sincretismo religioso para descrever a cena da transmutação:

Enfrentavam-se os contrários, (...), o fanatismo e a tolerância, o preconceito e o conhecimento, o racismo e a mestiçagem, a tirania e a liberdade, na peleja entre o abicum e o orixá, na guerra de Aluvaiá. Essa batalha se trava em todas as partes do mundo, a cada instante: não se lhe vê o fim (Ibidem, p. 377).

Como afirma o narrador, a batalha do sincretismo não tem fim, haja vista que este foi um processo de superação do africano às imposições religiosas do branco, visando resistir e afirmar-se enquanto tal. Esse processo sincrético mantém-se até os dias atuais, onde ainda se percebe associações de santos católicos a orixás do candomblé, como fora feito em O sumiço da santa..., associando Santa Bárbara, a do Trovão, a Oyá-Yansã, para demonstrar a importância da religião negra, valendo-se do sincretismo como artifício de resistência e afirmação identitária, posto que, através da religião o negro conserva, frente às mais diversas circunstâncias, sua personalidade íntegra, o que faz da religião um ponto de resistência, de luta em busca de sua libertação. Conforme teoriza Vincent Mulago:

(...) A Religião impregna toda a vida do africano: sua vida individual, familiar, sócio-política. Ela tem uma função psicológica e social de integração e de equilíbrio; ela permite compreender, valorizar, integrar, suportar sua condição existencial, submeter sua angústia. É graças à religião que se opera a abolição da dualidade entre o mundo visível e invisível para tender à unificação (MULAGO apud LUZ, 1983, p. 38).

Então, novamente, verifica-se a interferência do narrador no que tange à construção de uma personagem que pudesse representar o embate religioso e, a partir deste, consolidar a assunção e afirmação de uma religião que definirá sua personalidade, equilíbrio e integração psico-social, valendo-se da intercessão de uma santa católica que se personifica enquanto orixá para a resolução dos conflitos identitários existentes na trama.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra amadiana, aqui analisada, representa o choque de culturas híbridas, onde uma santa católica assume sua identidade do candomblé para ensinar aos que encontra pelo caminho o melhor da vida, a alegria e a tolerância, em uma história que só poderia transcorrer na Bahia de Jorge Amado: lugar onde tudo se mistura e não há separação entre a virtude e o pecado, o bom-senso e o absurdo, a fé e a feitiçaria, a oferenda e o milagre.

No entanto, há que se informar que a literatura amadiana não propõe a disseminação da liberdade sexual exacerbada, antes, porém, propõe libertar o corpo do negro da repressão que este sofreu, e ainda sofre, ao longo dos anos, desde o período escravagista. Assim, Jorge Amado não visava em suas obras, em especial com a obra O sumiço da santa..., incentivar qualquer prática deliberada, seja sexual ou expressão e manifestação religiosa, muito embora haja controvérsias, mas romper com as ditaduras, as imposições e limitações impostas ao corpo. Para tanto, foi necessário apresentar ao leitor a forma como o corpo do negro vinha sendo conceituado, tratado, as visões distorcidas deste construídas e acentuadas a cada dia por uma ideologia do branqueamento.

Desta forma, Amado promove a construção de uma imagem da mulher negra “ideal” para compor uma nova sociedade, desvinculada dos padrões e da ideologia dominante, “quebrando tabus, investindo contra o poder exercido por qualquer forma e meio, Jorge Amado continua em seu combate pelo humanismo, atacando, inclusive, as limitações impostas pelas patrulhas ideológicas” (SAMPAIO, 1926, p. 89). Constrói, o autor, uma mulher negra generosa, que cuida da família com o máximo de empenho, esposa dedicada, bem como "mulher" em sua completude e que ao mesmo tempo consegue afirmar sua identidade, desmistificando, assim, os conceitos negativos e os estereótipos que lhe foram atribuídos ao longo dos anos, na busca de não apenas denunciar as “explorações” da classe dominante, mas de revelar uma cultura popular afro-brasileira.

NOTAS

(1)-Alunas graduandas, 9° período, do curso de Licenciatura em Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia, Campus XXII, Euclides da Cunha.

(2)-Escritor baiano, do século XX, Jorge Amado está entre os cinco maiores romancistas brasileiros. Suas obras refletem a realidade dos temas, paisagens, dramas humanos, injustiças sociais cometidas contra o negro, no cenário baiano. Membro da Academia Brasileira de Letras e excelente contador de histórias, sua simplicidade discursiva o insere num rol de criadores universalmente lembrados. “Os textos amadianos se instauram como diálogo intertextual com a cultura popular da Bahia, os mitos e tradições dos descendentes de príncipes e súditos africanos trazidos como escravos” (SEIXAS, 1996, p.88). Era adepto ao candomblé, religião na qual exercia o posto de honra de Obá de Xangô no Ilê Opô Afonjá, do qual muito se orgulhava. As mães-de-santo Mãe Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Stella de Oxóssi, Olga de Alaketu, Mãe Mirinha do Portão, Mãe Cleusa Millet, Mãe Carmem e o pai-de-santo Luís da Muriçoca, todos estes se enquadram num rol de amizades que Jorge Amado prezava no candomblé e que acabam sendo personificadas em suas obras, como forma de homenagem. (Conferir AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001).

(3)-Em O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria, a narrativa é apresentada num período indefinido entre as décadas de 60 e 70, num espaço de quarenta e oito horas, onde uma imagem de Santa Bárbara é transportada, num saveiro, de Santo Amaro da Purificação até Salvador, onde seria exibida no Museu de Arte Sacra. A imagem da santa nunca havia saído da igreja matriz de Santo Amaro da Purificação, mas, requisitada para figurar em uma exposição de arte religiosa, deixou o altar e empreendeu viagem até a cidade da Bahia. O saveiro Viajante sem Porto, conduzido por Mestre Manuel, adentrou a Bahia de Todos os Santos levando a santa católica. Para surpresa geral, ao chegar, Santa Bárbara se transmuta em Yansã, orixá do candomblé, sobe a rampa do Mercado, toma o rumo do elevador Lacerda e some no meio do povo. Veio para libertar a jovem Manela do jugo tirânico de uma puritana fanática, a tia Adalgisa.

(4)-Conferir BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

(5)-Marcada pela diferença, a identidade apóia-se na exclusão do outro para afirmar-se, ou seja, a identidade é definida por aquilo que ela não é. Logo, a identidade constitui-se pela “política da diferença” (HALL, 2001).

(6)-Nome africano de Santa Bárbara no culto jeje-iorubano. (SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1997). Yansã/Oyá: Entidade, energia das tempestades, dos ventos e trovoadas. Na Nação Angola: Bamburussema, Kaiango. Na Nação Jêje: Oyá. Na Nação Ketu: Yansã, entidade feminina, a senhora dos ventos, das tempestades e do fogo, tem domínio sobre os mortos. Segundo essa Nação, conta-se que Yansã é a guerreira companheira de Ogum e dele herdou o exercício da espada. De Xangô, herdou o domínio sobre o fogo. (Caderno de Educação do Ilê Aiyê: A Força das Raízes. 1996).

(7)-"Pessoa feita” de berço, nos Rituais Afro-Brasileiros. (FONSECA JR., Eduardo. Dicionário Yorubá (Nagô) – Português. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1993).

(8)-Rito de purificação através da água.

(9)-Culto ao Senhor do Bonfim. Esta é considerada a mais importante das comemorações de largo de Salvador. A festa realiza-se no Largo do Bonfim, bem em frente à igreja, no alto da Colina Sagrada, na última quinta-feira antes do final do novenário e é marcada pela lavagem da escadaria e do adro da igreja por baianas vestidas a caráter, trazendo na cabeça água de cheiro, muito disputada entre os fiéis, para lavar o chão da igreja e flores para enfeitar o altar. Nos cultos afro-católicos, o Senhor do Bonfim é sincretizado com Oxalá. A festa da lavagem é atribuída à promessa de um devoto. Acredita-se que o ritual da lavagem teve origem nos tempos em que os escravos eram obrigados a levar água para lavar as escadarias da Basílica para a festa dos brancos, desde esta época um agradecimento do povo às graças concedidas pelo Senhor do Bonfim (conferir AMADO, Jorge. O sumiço da santa: uma história de feitiçaria. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 43-60).

(10)-O culturalismo hegemônico, em linhas gerais, pode ser definido como a dominação exercida através de meios ideológicos, e não apenas através da força bruta, de uma determinada cultura sobre a outra, em que classes dominantes universalizam seus interesses através de uma visão de mundo forjada de acordo com suas aspirações. Tal culturalismo tem se materializado como a impossibilidade de identificação racial para os afro-brasileiros, promovendo a discriminação racial ao mesmo tempo em que nega sua existência, dá suporte à reprodução da desigualdade entre brancos e negros, assim como promove a falsa premissa de igualdade racial (a esse respeito, consultar MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006).

(11)-Nomenclatura utilizada pelo autor para referir-se a Yansã.

(12)-Deus africano protetor da caça (Dicionário da Escravidão, 1927. p. 169).

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. O sumiço da santa: uma história de feitiçaria. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

______________. Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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Dam Costa
Enviado por Dam Costa em 03/10/2008
Reeditado em 06/10/2008
Código do texto: T1210237
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