Quanto vale ou é por filme? (ou: Sobre Sérgio Bianchi, o bravo)

Acho que o país ainda não ouviu o recado de Sérgio Bianchi, cineasta paranaense radicado em São Paulo. Ou, pelo menos, não lhe deu a devida importância.

São três os seus longas mais conhecidos: o subestimado “Romance” (1988, co-roteirizado por Caio Fernando Abreu e Prêmio Bizz de Melhor Filme em 1989), o improvável cult-movie “Cronicamente Inviável” (2000, prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte e do Festival de Locarno) e o recente “Quanto vale ou é por quilo?” (2005).

O primeiro é bastante tosco - finalizado sob o peso das mudanças políticas que levariam ao fim da Embrafilme – mas as características básicas do cinema de Bianchi já estão lá: o misto de documentário e ficção, o uso de atores e não-atores, a crítica social engajada e por vezes panfletária. É seu filme mais diretamente político e pessoal, rodado parcialmente em Curitiba, e acompanha uma jornalista paulista que busca desvendar o assassinato de um deputado paranaense e acaba envolvida numa trama insólita que mistura homossexualismo e corrupção.

“Cronicamente Inviável” é seu filme mais contundente e bem acabado. Do roteiro à edição, dos atores à fotografia, Bianchi realiza no Brasil um expurgo das mazelas e hipocrisias nacionais, abertas como a ferida na perna de seu protagonista (um velho professor), tornadas invisíveis pela cegueira de todos nós, que não queremos enxergar. O filme é uma espécie de “Anna dos Seis aos Dezoito” ("Anna: Ot shesti do vosemnadtsati" - 1993), clássico documentário do russo Nikita Mikhalkov, que passa a limpo a história do fim do império soviético; com uma diferença fundamental: o ambicioso Bianchi perfaz um corte transversal, de norte a sul do país, enquanto seu colega russo prefere a longitudinalidade do tempo. Ambos prestam, com seus filmes-denúncia, imprescindível serviço ao público de suas nações: o de informar com opinião.

Adaptação livre de um conto de Machado de Assis ("Pai Contra Mãe"), utilizando-se ainda de algumas crônicas de Nireu Cavalcanti como inspiração, “Quanto vale...” tenta traçar um paralelo entre a vida no Brasil durante o período da escravatura e a atualidade, tendo como alvo principal, desta vez, as organizações não-governamentais que fazem da exploração pobreza uma nova forma de comércio.

Panfletário, exagerado, intencionalmente artificial (ou não), “Quanto vale...” não tem a acertada dose de comédia (de humor negro), irreverência e denúncia política do filme anterior. Falta-lhe também ritmo, elos mais claros que facilitem o saltitar de uma história para outra ao longo do filme, uma unidade maior que o torne mais palatável. O que se vê na tela é mais um trailer do que o filme poderia ter sido do que uma obra acabada.

Nem por isso se deve deixar de assisti-lo. Por sua capacidade ímpar de caracterizar os maus hábitos da sociedade brasileira, Sérgio Bianchi faz um cinema que incomoda, esmurra o estômago, traz náusea e desgosto para dentro de nossas cabecinhas menos perceptivas. Por isso mesmo, o cara deveria ser reconhecido (e tratado) como um patrimônio nacional da coragem, como um ícone da “contracultura” (num sentido bem amplo), como a necessária mosca, que ao pousar em nossa sopinha diária de pequeno-burgueses, estraga nosso bem estar ilusório ao descortinar um país que teimamos em não querer ver, encastelados que estamos por força da rotina diária de trabalho incessante (“escravo?”), violência e pequenos delitos urbanos.

É. O Brasil de Sérgio Bianchi, o bravo e corajoso Sérgio Bianchi, pode não ser “o” real, nem o único, pois seu cinema parte de uma visão bem particular. Mas é o retrato mais fiel, até o momento, da crise moral que corrompe todos os estratos sociais da nação.

Em tempo: Sérgio Bianchi é filho de Rauly, primo de meu avô Oscar, conhecido fotógrafo da cidade natal que compartilhamos: Ponta Grossa. Foi no centenário estúdio de seu pai – depois levado adiante com brilhantismo por seu irmão Raul - que foram tirados meus primeiros 3x4, assim como tantos outros ao longo da vida. Há alguns anos, encontrei seu irmão por acaso numa visita ao Paraná, e conversamos longamente sobre o sucesso de Sérgio e de seu “Cronicamente Inviável”, de como ele conseguiu, com estratégias bastante pessoais e inteligentes, “vender” aquele filme “invendável”, e transformá-lo no fenômeno “underground” que ocupou salas de exibição no país todo por mais de dez meses em 2000/2001. Foi a última vez que tive a oportunidade de contar com sua conversa agradável, culta e espirituosa.

Este artigo é dedicado a estes primos.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 26/03/2006
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