MANDU E A NUDEZ REVELADA

A vida real pode ser ainda mais fascinante que as aventuras mitológicas. Não resta dúvida que o herói e o mito são fontes de inspiração para ousar proezas surpreendentes. Mas o percurso de uma vida calcada no cotidiano da realidade, repetitiva e parcimoniosa, é inigualável. Isso se aplica à história de Mandu Ladino, o líder indígena cuja saga está para completar três séculos e se mantém fascinante, exatamente pelas lacunas documentais de que padece e que abrem espaço ao imaginário.

Tais lacunas emolduram a obra harmoniosa de Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco, em que História e ficção são tecidas com esmero, esta a serviço da explicação dos feitos reais e remotos de Mandu. Em todo caso, a figura do líder indígena permanece fonte de deleites da imaginação, na medida em que permanecem as lacunas documentais. Até que, caso um dia venham essas a ser sanadas, avulte uma história ainda mais enternecedora do que as versões romanceadas tenham podido criar.

Como Zumbi, Mandu recebeu educação católica romana. Já no século XVI, há registro de reclamações dirigidas a Carlos V, constantes de denúncias de que os índios ladinos - aqueles que aprendiam o latim, com mais facilidade que os próprios espanhóis, conforme testemunho dos agostinianos e franciscanos - se tornavam insolentes. Eles percebiam que, séculos antes, quem agora os fustigava lhes havia sido considerado igual pelo então dominador: polígamo, bárbaro, analfabeto, servil, eventual e intermitentemente insurgente contra o domínio imperial romano.

O Rei estava nu! O mito de superioridade, despedaçado. A crua visão da nudez real não teria mais força motivadora à luta que o rancor pelos maus tratos? Ao usar o critério comparativo da crueldade para avaliar o grau de humanização das raças ou sociedades, há sempre o risco de cair no maniqueísmo desleal. E na medida em que se "coitadiza" uma raça ou sociedade, também se lhe impõe a posição humilhante de alheamento a seu poder intrínseco, uma emasculação bem intencionada.

Anfrísio foi feliz em seu romance Mandu Ladino. Ele não se permitiu descambar ao maniqueísmo maçante e gratuito. Há uma atmosfera consistente nos rituais indígenas de canibalismo, que não foge àquele "mundo de barbárie monótona", na expressão genial de Jorge Luiz Borges. Ainda assim, a esfinge da motivação de Mandu e dos índios que massacraram os soldados, até então seus parceiros na campanha de Souto Maior, insiste em insinuar que ainda não foi inteiramente decifrada.

Há uma cortina em nosso horizonte intelectual e acadêmico. Um anticlericalismo intolerante e iluminista, que não nos permite ver que estamos todos nus. Pois ainda que façamos o Mea Culpa, que estejamos empenhados nas mais pesadas penitências, todas as nossas queixas serão mera retórica. Nós somos, em nossa própria carne, o resultado do massacre dos índios no Piauí. Em nosso sangue multiétnico corre a latinização, que sustenta nosso senso crítico a cada vislumbre de nosso passado histórico.