Uma lady canadense na Amazônia

UMA LADY CANADENSE NA AMAZÔNIA

Helio Rodrigues Rocha

O europeu tem necessidade de conhecer o outro e de organizar um mundo tão diferente do seu – urbano e industrial.

Mary Louise Pratt – Os olhos do império

Into the Amazon: the struggle for the rain forest (Dentro da Amazônia: a luta pela floresta) é um relato de viagem escrito por Augusta Dwyer, jornalista canadense que percorreu a região norte do Brasil em 1988 em busca de dados para a escrita da obra. Dwyer contribui com o The Globe e Mail, Toronto Star, Macleans´s, The Nation e San Francisco Examiner, jornais do Canadá. Segundo a capa de seu livro, a escritora também trabalhou como jornalista no Haiti, na República Dominicana e na América Latina.

Into the Amazon é um retrato dos diferentes modos de vida dos indivíduos de um dos maiores rio da Terra e de seus afluentes: o rio Amazonas e do modo de vida de seringueiros no Acre. Na capa do livro é destaque a seguinte declaração:

Into the Amazon is Augusta Dwyer’s revealing portrait of the rubber tappers, the river people of the Tocantins, and many other Amazon dwellers. For more than five years, Dwyer traveled extensively throughout Latin American, particularly in the Amazon Basin. She was one of the few journalists to become close friends with Chico Mendes, who, before he was murdered in 1988, did more than any individual to tell the world about the rain forest struggle .

Dwyer empresta sua voz aos sujeitos amazônicos – uma tentativa de representação do Outro - e declara que a única forma de salvar as diferentes formas de vida amazônica não pode ser separada de uma boa ecologia. Viajando como uma jornalista canadense, certamente nunca esteve na Amazônia como um amazônida, e sim como estrangeira, como ela mesma registra: “I was an object of curiosity among the children ” (1990: 211). Objeto de curiosidade somente para crianças indígenas que, no despertar de seu imaginário, possuem somente imagens de seus familiares e membros da aldeia em que vivem e que, provavelmente, jamais haviam visto uma estrangeira em seu meio, mas não para todos os outros indivíduos que moram na Amazônia, pois estes, já estão, de certo modo, habituados a esses viajantes que, volta e meia, rondam pela Amazônia.

Segundo a escritora, os ribeirinhos, os seringueiros e outros extrativistas são capazes de viver em harmonia com os índios da região e o meio ambiente, aprendendo e sobrevivendo reciprocamente. Eles são os únicos que podem tomar decisões sobre a Amazônia. Afinal, será que os amazônidas não têm consciência desse fato? Entretanto, em se tratando de um enunciado reconhecedor dos direitos dos sujeitos amazônicos, é algo positivo.

Entretanto, como Dwyer escreve para um público canadense, é ideal que se tenha essa consciência lá fora - no Primeiro Mundo. Contudo, cremos que cabe aos amazônidas tal postura, tal esclarecimento e consciência, que com certeza, já a possuem. Não é preciso que o Outro nos diga que podemos sobreviver em reciprocidade, pois desde os seus primeiros habitantes, os ribeirinhos, índios, e extrativistas em geral, têm vivido em harmonia com o meio ambiente. Do contrário, não existiria mais meio ambiente. Todo o sistema ambiental estaria devastado. Apesar de seu público alvo ser o canadense, é sobre as formas de sobrevivência da Amazônia e de seus habitantes que está registrando a autora. Logo, é ideal sabermos o que registra sobre os sujeitos amazônidas para compreendermos como somos vistos pelo viajante e ainda, nos questionarmos sobre essa representação do Outro sobre nós mesmos. Assim, nosso objetivo neste artigo é mostrar como a Amazônia foi traduzida para os leitores canadenses e, ao mesmo tempo, mostrar-lhes o que fazemos com o que pensam sobre os brasileiros.

Esse olhar de curiosidade, de afirmações categóricas e direcionamentos em relação ao que deve ser feito pela/para sobrevivência dos povos deve ser decidida por amazônidas, visto que realmente não saberiam viver de outra forma. Se as diferentes formas de vidas existentes na floresta levaram inúmeros anos para se formarem, como poderia o homem e os animais modificar-se instantaneamente? Essa metamorfose deverá ocorrer em tempo certo, com o caminhar da História, com o vento do progresso, do desenvolvimento e da própria caminhada da humanidade.

Into the Amazon é um apaixonante relato escrito por uma mulher que, apesar de alguns ligeiros acenos para as medições e comparações culturais, não se mostra preconceituosa, sarcástica e arrogante em relação ao povo amazônico exageradamente. É, tão somente, uma forma diferenciada de ver e registrar o Outro. Nada novo em seus acenos verbais. A redundância em relação ao verde, às águas, às extensões territoriais e aos modos peculiares de vida, continua dominando a prática discursiva da jornalista. Vejamos como Dwyer consegue ver, sentir e registrar, de forma inteligente e poética, a jornada de Clarice, uma personagem amazônida, entre a sua colocação (colônia, sítio) e a de seus vizinhos seringueiros:

To get to the neighbors, Dona Clarice will walk along one of the rubber tappers` paths, through the filtered rain forest light, along corridors of trees and hanging vines cool under the infinite canopy of green. She will go accompanied by the sounds of forest life: the wind through the multishaped leaves, the cries of birds, perhaps the fall of a dying tree from its thin footing of soil, the persistent tapping of a monkey truing to break the shell of a Brazil nut against a tree trunk, like a man hammering a nail. Butterflies as bright as any carnival mullata flash among the bushes (1990: 01).

No percurso, Clarice, uma mulher que cortava seringa em Xapuri, no Acre, é seguida por olhos (da jornalista) impregnados de respeito pela Natureza. Trilhas iluminadas pelos raios de luz filtrados pela copa das árvores, por trepadeiras que se debruçam sobre as cabeças do transeunte. Um caminhar acompanhado pelos sons da floresta: o vento através das multiformes folhas, o canto dos pássaros, talvez o estrondo da queda de uma árvore, o estrondo de um macaco tentando quebrar a casca de um coco contra o tronco de uma árvore, como um homem martelando um prego. Borboletas, tão brilhantes quanto qualquer mulata do carnaval, lampejam entre os galhos. Essa poeticidade que é entretecida pela musicalidade dos passos ao tocarem as folhas do chão da floresta seria resquícios de leituras anteriores sobre a floresta? Solidariedade com o ecossistema? Expansão de seu território sobre o amazônico ou classificação dos diversos aspectos percebidos pelo sentido, olhar e visão? Conhecimento objetivo da realidade? Ou ainda, autocongratulação por estar na floresta amazônica e posteriormente, vender essa imagem ao mundo?

Ao tratar no capítulo A threat to the forest (Uma ameaça para a floresta) da invasão de fazendeiros às terras de seringueiros, a jornalista destaca a idéia de Chico Mendes em transformar os seringais em reservas extrativistas; lembra a medalha que o sindicalista recebeu em Nova Iorque da Sociedade para um Mundo Melhor e da presença de Chico Mendes no Primeiro Conselho Nacional de Seringueiros, onde foi resolvida a criação das reservas extrativistas. Essa idéia trouxe novas possibilidades que excitaram Chico Mendes, fazendo-o pensar sobre o futuro. Com suas sobrevivências garantidas em reservas extrativistas, os seringueiros poderiam formar cooperativas, procurar novos produtos para vender, até mesmo plantar mais seringueiras na floresta. O dinheiro seria requisitado do governo local para a construção de escolas e postos de saúde. Organizações internacionais poderiam ajudar a financiar esses pequenos projetos e tornar a extração mais prática para o seringueiro do que tinha sido nos dias dos barões da borracha, esclarece Dwyer.

Duas imagens são sugeridas no enunciado citado acima: o carnaval e as mulatas. Uma fazendo parte da outra. A primeira como metáfora de festa e a segunda como resultado metonímico da primeira, isto é, do carnaval com mulatas esfuziantes. Essa é a imagem de um país – o Brasil – ainda in voga no exterior. A construção dessa imagem se perpetuou graças ao material divulgado pelos viajantes em suas metrópoles. O historiador inglês, Peter Burke, em uma entrevista concedida à Revista Idiossincrasia, no Portal Literal, no dia 23 de maio de 2007, quando de sua participação no colóquio Itaú Rumos Jornalismo Cultural, declarou: “Na Inglaterra, ao falar em Brasil, as associações, com exceção do carnaval, são quase todas ruins, sobretudo com a violência. É importante dar a eles uma visão alternativa de outros Brasis”. Compreendemos, dessa maneira, que aos olhos imperialistas, o Brasil é um país de carnavais, podendo significar, tanto da alegria, receptividade e diversão, quanto desordem, falta de seriedade e, principalmente, um paraíso de mulatas dispostas a satisfazer seus visitantes. A vivacidade de um país mergulhado na luxúria e na violência segue como um dos dogmas imperialistas sobre o país do Outro.

A diferença cultural, como conceitua Bhabha (2005: 63), “é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade”. O carnaval, no Brasil, é a parte mais visível da identidade cultural brasileira. Assim, o processo de enunciação da cultura local é re-conhecível através da legitimação desse evento cultural brasileiro. Ainda prevalece a identidade coletiva única em se tratando de carnaval. Aos olhos do observador, não importam as singularidades, mas um corpo social único. Parece que, se Brasil, se brasileiro, então, tudo é festa.

Nessa fronteira do (des)conhecido, é preciso que questionemos acerca do encontro que tanto pode ser consensual quanto conflituoso, como sugere Bhabha: “Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas de desenvolvimento e progresso” (2005: 21). É nesse embate que buscamos seguir os passos de Dwyer que se declara fascinada pela política e pela rara educação que Chico Mendes tinha recebido de Fernando Távora. “Perhaps one of the reasons we got along so well, though was just that: my curiosity about his political philosophy. Chico was a committed socialist; the lessons of 1964 and Fernando Távora played a fundamental role in forming his vision ” (1990:18). A curiosidade é o que levou a escritora ao Acre e ao líder sindical. Como uma forma de instigação, a curiosidade impulsiona a estrangeira em busca de novas informações para a construção de seu relato/retrato da Amazônia.

Se utopia ou ideologia, não importa. O que interessa são os pensamentos do maior líder sindical no Acre; o interesse dele e de outros sindicalistas e sindicalizados em melhorarem a situação de vida dos seringueiros e castanheiros, foi o que levou Chico Mendes a enfrentar impetuosos e cruéis inimigos; a combater as maiores invasões a espaço de vivência dos “povos da floresta”. Essa imagem grotesca de luta se junta a outra ainda mais monstruosa, a trágica morte de Chico Mendes. Assim, Dwyer, impressionada e fascinada pela competência do líder, acompanha-o a diversas colocações (espaços onde vivem o seringueiro e sua família) e participa das várias reuniões na tentativa de conscientizar os seringueiros de seus direitos e deveres. O sonho não morreu, pois muitos são os que lutam pela causa das minorias, tanto no estado do Acre, quanto em outras partes do mundo.

O capítulo com o título Chico Mendes é uma homenagem da escritora e amiga para essa voz de libertação no Acre. Segundo o quadro criado nesse capítulo, Chico nasceu no dia 15 de dezembro de 1944, no seringal Bom Futuro. Conforme a autora, o seringal é denominado profeticamente “good future”, o que, ironicamente, nega o desfecho trágico de Mendes. Chico Mendes era um dos dezoito filhos da família Mendes. “Chico was one of the oldest of Francisco Mendes´ eighteen children. “All rubber tappers have big families” he remarked to me. Most of the children died in childhood. To help the growing family survive, Chico had to begin tapping rubber when he was just nine years old ” (1990:15). Um grande número de filhos, infanticídio e exploração infantil é o significante/significado deste enunciado. A maioria das famílias dos seringueiros, ribeirinhos e extrativistas era numerosa, como a família Mendes. Uma nação desumana uma vez que põe suas crianças na labuta em vez de colocá-las na escola. Esse é um dos registros de Dwyer.

Mas também, pode se deduzir que na Amazônia, os indivíduos são um tanto quanto ativos sexualmente, pois, como bem registra a viajante, todos os seringueiros possuem famílias numerosas. É isso, o sujeito amazônico produz a si mesmo infinitamente, sexualmente e pouca coisa mais. Aos olhos da viajante, os seringueiros são grandes e tão somente produtores de famílias. Porém, isso nega a passividade dos nativos presumida pelos viajantes. Aqui, surge uma antítese radical do mito da indolência do brasileiro. Nas palavras de Said (1990, p. 316), “um mito não analisa os problema nem os resolve; quer dizer, ele os apresenta como imagens já montadas, do mesmo modo que se monta um espantalho com trapos e paus velhos e depois faz-se com que ele represente um homem”.

Denunciando a situação de miséria em que viviam as famílias da floresta, com as crianças tendo que enfrentar a estrada de seringa desde uma idade muito tenra, sem escolas, sem acompanhamentos médicos, Dwyer retrata o verdadeiro descaso do Estado para com seus cidadãos, naquela época. Em sua opinião: “In the Amazon, progress seemed to reside between the horns of a Zebu ox, or somewhere at the end of the expensive road projects, roads that, as many a cynic like to say, go from nowhere to nothing all. ”Ou ainda na seguinte bombástica declaração: “In 1966, the Brazilian government set up the Superintendency for Development of the Amazon, SUDAM, an organ whose basic and exclusive was and still is to give money to the rich ” (1990: 20). O desenvolvimento da Amazônia parecia-lhe estar além, em outro lugar, menos naquela extensão da floresta. Um jornalismo político preenche a maior parte do relato de Dwyer, que se quer grande conhecedora da realidade amazônica, pois mostra os indivíduos como incapazes de inovação e ainda, como se toda a Amazônia caminhasse da mesma forma, como se em toda a extensão verde amazônica habitassem os mesmos indivíduos. Aqui, a diferença cultural é negada, seja por desconhecer a diversidade do povo ou, simplesmente, por desacreditar em suas competências desenvolvimentistas.

A jornalista ainda denuncia a tortura dos seringueiros envolvidos ou não na morte de um fazendeiro, que havia mandado assassinar Wilson Pinheiro, morto em julho de 1980, quando assistia a um filme policial no escritório do sindicato:

Early on July night in 1980, while Pinheiro was watching a police thriller on the old black-and-white television set in the union office, a gunman crept onto the roof, slid in through a window and, waiting for the covering sound of shots from the television program, pumped Pinheiro full of bullets.

At Pinheiro´s funeral, fifteen hundred workers gathered around the coffin and demanded justice. They appealed to the authorities to punish the criminals – it was well known who they were. But justice crossed its arms. Seven days later, the rubber tappers resolved to kill a rancher known to be one of the instigators of Pinheiro´s death.

They were true to their word. On July 27, two of them killed rancher Nilo Sergio de Oliveira. “This time,” said Chico, “justice moved instantly. Twenty-four hours later, dozens of workers were in jail, tortured, their fingernails pulled out. There was an enormous torture session in the Brasiléia jail (p.23).

É o retrato de um país que faz justiça com as próprias mãos; que outra imagem poderia sugerir mais hostilidade do que a apresentada aos canadenses por Dwyer? A violência é uma das características dos indivíduos visitados e observados, como afirma Bhabha, “o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerativos com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (2005: 111). Esse Outro colonizado é sempre apreensível e visível. Um colonizado que necessita, ainda, da educação do colonizador. No caso deste enunciado: de um sujeito violento que precisa da educação de seu Outro, o “civilizado”. Uma das lentes por onde o viajante olha o seu Outro: a violência, o ser bestial. O estereótipo de um sujeito que é sempre isso ou aquilo. A conjunção alternativa está em operação constante, pois segundo Bhabha, “o estereótipo é uma falsa representação de uma dada realidade” (2005: 117). Não queremos, sobremaneira, concordar com as ações dos agricultores e seringueiros, contudo, apenas esclarecer que o episódio relatado tem como objetivo perpetrar a idéia de que na Amazônia não há lei, uma imagem sempre afirmada pelo discurso colonizador.

De acordo com Dwyer, Chico Mendes não estava na cidade no dia do assassinato do fazendeiro. Ele estava viajando para outras áreas do estado, tentando organizar e conscientizar mais trabalhadores acerca dos seus direitos pela terra. Mesmo assim, uma ordem foi expedida para sua apreensão e prisão imediata. Esse fato fez com que o líder sindical passasse três meses dormindo em casas diferentes a cada noite, tanto com medo dos pistoleiros quanto da polícia. A seguir traduzimos um trecho da fala de Chico Mendes no livro de Augusta Dwyer: “Em 1981, eu fui pego e posto no banco de defesa em uma corte militar em Manaus. Estava feliz por não estar na cadeia, mas nós tínhamos um bom advogado. Em 1984, em uma audição, o caso foi arquivado por falta de evidência. Mas de lá pra cá, começou uma vida difícil para mim, perseguido pela polícia federal, a força de segurança e assim por diante” (1990: 23).

O signo que denota o nome da jornalista Dwyer pode muito bem se transformar em lawyer (advogada). Assim, advogada dos trabalhadores, pois, esteve ao lado de Chico durante as duas viagens ao Acre, especificamente, para o município de Xapuri e participou de muitas reuniões do sindicato. Denúncia de descasos, mortes e mentiras circulam em seu livro. Há dois capítulos sobre os Yanomami, o capítulo X e o XII. No décimo há a denúncia de que os Yanomami não queriam “brancos” em suas terras. Com algumas declarações de políticos, religiosos, índios e certas impressões um tanto quanto preconceituosas, Dwyer retrata, mais uma vez, a política pelo ouro em terras indígenas e acentua sua nacionalidade canadense. Como esclarece Bhabha, “a estratégia dominante de poder colonial, exercida em relação ao estereótipo, como uma forma de crença múltipla e contraditória, reconhece a diferença e simultaneamente a recusa ou massacra” (2005: 119).

Entre os Tikuna, povo indígena da região do município de Tabatinga, no alto Solimões, no estado do Amazonas, Dwyer, também esteve, conforme nota de rodapé número 4, aliás, a tônica de viajantes estrangeiros para/na Amazônia é marcada pela necessidade de ver o indígena tal qual relatam alguns livros de histórias produzidos pelo olhar do “branco”, tendo índios como produtos de uma literatura que se quer indigenista. Dessa forma, sobre a origem dos índios na região, mostrando certo domínio, escreve a jornalista:

The Tikuna have had contact with the white man for more than three hundred years. Some anthropologists believe that the Tikuna originally came from farther inland to occupy the banks of the Solimões when slavery and the presence of rival Portuguese and Spanish colonists had driven the Omagua and Yurimagua tribes to Peru. The Tikuna were frequently forced to gather forest products for the profits of the Portuguese garrison commander in Tabatinga, were sold into slavery and were even sent to fight during the war with Paraguay in 1860s. During the rubber boom, the Solimões River was an important thoroughfare between Iquitos, in Peru, and the Atlantic Ocean (p. 214).

O olhar apropriador de Dwyer não consegue apenas ver, mas interpretar. Como afirma Alfredo Bosi, “o olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o sujeito irá distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar” (1997: 66). O que nos interessa muito nesse tipo de enunciação é como é feita essa interpretação.

Assim, nossos olhos procuram por modos de olhar o olhado, o perscrutado. Dwyer, por exemplo, em alguns pontos reforça a idéia de civilizados e “incivilizados”. Ao declarar, “I was in the depths of depression, with nothing to do, not even a book to read. Everyone was friendly, but I wanted badly to get back to civilization ” (1990: 221), seu discurso se revela colonial de tal forma que, o estabelecimento de relações entre a metrópole e a Amazônia está associado a circunstâncias de desigualdade radical e obstinado; como diz Bhabha (2005, p. 339), “o espaço colonial é a terra incógnita ou terra nulla, a terra vazia ou deserta cuja história tem de ser começada, cujos arquivos devem ser preenchidos, cujo progresso futuro deve ser assegurado na modernidade”. Essa desigualdade radical e obstinada entre o mundo do viajante e o mundo do nativo requer, no mínimo, uma tomada de posição por parte desses últimos. É preciso não somente que o viajante saiba da diferença cultural, mas que a compreenda e que a respeite como tal. Todos diferentes, mas todos semelhantes, porque filhos de um mesmo planeta, que apesar da separação geográfica e histórica, devem estar abertos ao diálogo, à reciprocidade do discurso. Estar na fronteira deve significar estar aberto ao contato, às interações sociais, econômicas, e principalmente, políticas.

Apesar de estar entre amigos, diz a escritora, “queria voltar à civilização”. Isso significa claramente, que na Vila Vendaval, onde estava com os índios Tikuna, todos eram incivilizados. Assim, Dwyer reproduz o discurso de superioridade do europeu. Se o enunciado fosse invertido, desse jeito, eu queria voltar à civilização, apesar de eles serem amigos, suavizaria um pouco essa pretensa superioridade. Contudo, não queremos, sobremaneira, condenar tal postura, haja vista liberdade de expressão da viajante, antes, declarar que existem outras formas de produzir tal enunciado em relação ao seu Outro. A falta é uma característica do estereótipo, como escreve Bhabha: “a completude do estereótipo está sempre ameaçada pela falta” (2005, p.119). Fazendo nossas as palavras do teórico, o narcisismo e a agressividade são duas formas de identificação associadas com o imaginário. Uma dama entre os indígenas - sem um livro para a leitura e um barco para retornar para Manaus – entra em depressão e almeja, desesperadamente, retornar à metrópole, à segurança do lar e à “civilização”. O Outro lhe servia apenas enquanto admiração/rejeição e autocongratulação para histórias entre os seus concidadãos e não para companhia e convívio prolongados. Prolongando um pouco mais essa perspectiva, o Outro servia apenas enquanto estudo e considerações finais, não enquanto companheiro e indivíduo humano porque “incivilizado”.

Apesar de a jornalista emprestar sua voz ao amazônida – como uma forma de representação e tradução do Outro - como afirmamos no início dessa subseção, e denunciar a invasão territorial, religiosa, política, social e lingüística na Amazônia, há em alguns enunciados, como já destacamos, a autocongratulação de que fala Edward Said em Orientalismo. “Apontar” o Outro é declarar-se pertencer a outro espaço cultural, organizado, confortável e superior, dentre outras coisas mais. Não acontece, nesse embate, a compreensão do Outro, como quer Jorge Larrosa: “a compreensão do outro estrangeiro só pode ser considerada como um processo dialético, que começando por um momento de estranhamento, se resolveria finalmente em uma recuperada re-familiriarização” (2002: 78). Para Said, o imperialismo é uma forma discursiva de opressão, pois “toda a questão do imperialismo projetava a tipologia binária das raças, culturas e sociedades avançadas e atrasadas ou submetidas” (1990: 213). Nessa perspectiva, nos diz Said:

Juntamente com todos os demais povos variadamente designados como atrasados, degenerados, incivilizados e retardados, os orientais eram enquadrados em uma estrutura concebida a partir do determinismo biológico e da admoestação político moral. O Oriente foi assim ligado a elementos da sociedade ocidental (delinqüentes, loucos, mulheres pobres), que tinham em comum uma identidade que era mais bem descrita como lamentavelmente estrangeira. Os orientais raramente eram vistos ou olhados; a visão passava através deles, e eram analisados não como cidadãos nem como povo, mas como problemas a serem resolvidos, ou confinados, ou – posto que as potências ocidentais cobiçavam abertamente o território deles – conquistados (1990, p. 213).

Desse ponto de vista, podemos dizer que assim como os orientais, todos os outros povos colonizados podem estar associados, afinal, foram submetidos ao mesmo processo imperial. A cobiça, ainda é um problema a ser resolvido. A Amazônia desperta a atenção do mundo todo, principalmente, dos Estados Unidos da América. Com a questão do aquecimento global em alta, todos os olhos do “primeiro mundo” se voltam para a região amazônica. É por aquela parte do planeta que circulou, durante a década de 80, grande número de jornalistas estrangeiros que, mesmo sem falar a língua do nativo, algo imprescindível para a compreensão do Outro, lançaram suas reportagens e denúncias jornalísticas ao mundo. O povo oprimido não pode, desse modo, decidir sua própria vida. Essa estratégia é, vergonhosamente, utilizada por olhos imperiais que, a serviço da metrópole, acreditam possuir a verdade sobre o Outro e suas diversas formas de representação e sobrevivência. Nesse sentido, os “olhos do império” continuam em funcionamento. Como escreve Said em Cultura e imperialismo: “Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação” (1995: 40).

Desse modo, o relato de Dwyer demonstra, aos leitores canadenses, as condições em que se encontrava a Amazônia brasileira na década de 80 sob os olhos de uma narradora onisciente uma vez que acredita que sua visão é total. Com dramaticidade, Dwyer registra sua viagem pelo rio Amazonas, de Belém a Manaus em um barco denominado Fé em Deus.

It was still early, about 8:30 in the morning, but the sky was bright, a pale blue airbrushed with luminous cirrus clouds, and the river was the color of milk chocolate, edged in with where it fanned out from the path of the boat. I was aboard the Fe em Deus or “Faith in God,” a name that would have pleased the old man at the curandeiros market in Belém), head up river to Santarém and eventually Manaus. I was surrounded by a tangle of hammocks – stripes, plaids and solid of every color – hung in a pair of uneven rows the entire length of the open deck. Mounds of baggage had been pilled between theses rows on a low platform of woods slats. Passengers sat on the longs benches placed against the railings, chatting with each other or just waiting for time to pass. Leaning out of their hammocks, below and just a bit to the side of me, two men were playing checkers on a torn-off-flap of cardboard, divided in squares drawn with a pen, the pieces made of little circles of cardboard, too.

In three days we would arrive in Santarém, and in two more Manaus. It was not the fastest way to travel, but it was certainly the cheapest and, in spite of the somewhat primitive conditions, probably the most comfortable. The Fe em Deus, one of three or four boats that left Belém each week, it was not a big boat, and it was crowded with at least a hundred passengers. Meals were included in the ticket price, and served on the low deck. Down a narrow stairway, odorous with the large sacks of onion packed around it, and pas the roaring diesel motor, a pair of a long tables was set up, where the passengers ate in shifts. The fare was pretty monotonous. At lunch and dinner, the cook and her assistants would load the table with huge bowls of stewed beef and various kind of starches: potatoes, rice, spaghetti and cassava meal. When everyone had eaten, the crew moved the long benches out of the way and bolted the tables to the ceiling, making space for passengers and their hammocks. Past the tables was the galley, and across from it, the few tiny wood cubicles that served as showers and toilets. On the roof of the boat, tables and chairs had been set out, and a snack bar sold beer and soft drinks. There was nothing much to do but read. The scenery was not exactly exciting in its extravagant but monotonous verdure (1990: 112).

A monotonia do verde das árvores enfileiradas às margens do rio Amazonas – uma espécie de paredão entre um lado e outro do rio por onde navegava o Fé em Deus – parece, à viajante, ahistórica. A repetição da paisagem causa fatiga à expectadora que, descontente com a viagem, prefere correr os olhos pelas páginas de um livro, provavelmente, impresso em sua metrópole. Um mergulho dentro de outro mergulho maior. A leitura do cenário, ou do mundo in loco, é substituída pela leitura disposta ou aprisionada em linhas, frases, parágrafos e capítulos. O capítulo que agora se apresenta ao seu redor, em si e fora de si, o cenário amazônico, é abandonado em preferência a um outro cenário menos aborrecedor. Cercada por redes de todos os lados, perdida em meio às conversas dos demais passageiros, e entre jogadores de damas, a viajante canadense – olho onipresente, pois acredita ver e compreender tudo – declara estar realizando uma viagem em condições primitivas. O conforto requerido não é mais do que uma irônica forma de dizer que na Amazônia não há conforto nas viagens – pois, in spite of the somewhat primitive conditions, probably the most comfortable (apesar das condições um tanto quanto primitivas, provavelmente a mais confortável). E ainda, dizer que na Amazônia tudo é igual, que tudo se repete. O verde dessa paisagem é o mesmo verde daquela outra. A mesmice, daí, a pachorra, a languidez. Um discurso típico dos viajantes de séculos anteriores.

A idéia de uma constante festa, também, é sugerida nessa descrição. Mesas e cadeiras dispostas no toldo do barco e um barzinho que vendia cervejas e refrigerantes são indícios de que passageiros se divertiam durante a viagem, afinal, “não tinha o que fazer”. Sem um cenário “excitante” para a jornalista se comprazer e deleitar-se – o que sugere a excitação sexual – a monotonia podia ser vencida – pelo sujeito amazônico, através da bebida, ou do ‘bate papo’ e do jogo – pela viajante canadense, através da leitura. Exercício claro de “intelectualidade”, “desenvolvimento” e espírito “altivo” em detrimento da pachorra e dos vícios de seus companheiros de viagem, pois não conseguindo adentrar o universo, a cultura, ou compreender o assunto de seu Outro, desacredita-o: “Next to me, a man lay in his hammock, reading the Bilble; on the otherside was a man who told me he traveled four times a month to Manaus and bought corn to sell in Belém. I didn’t believe him and speculated that José, as he introduced himself, was probably dealing in a commodity far more lucrative than corn, such as gold ” (1990: 116).

A descrição da paisagem é a tônica de boa parte da narrativa. Pode-se dizer que é uma estratégia de valor qualitativo de sua viagem. Ao viajante importa, portanto, evidenciar seu trajeto através de uma pintura que se revela envolvente, seja por sua beleza natural, seja pelo evidente primitivismo de suas choupanas à margem de um rio.

We were sailing among the dozens of islands, large and small, that formed the Amazon delta. On one side, through a gap in two islands, the river stretched away, flat and gray-blue. On the other side, an island spread a grassy carpet into the water. I watched a man crouched on the bank wash up, sending sprays of water over himself like glass wings. We passed a family of three, paddling in a casco. As we motored steadily west and toward in far shore, the landscape seemed to change from thick jungle to rolling grassy mounds, dotted with short trees. A few cattle grazed on the low plain. Then we passed a row of white cottages, clapboard houses with metal roofs and screen doors, which reminded me of the cottage you might see at a northern Ontario Lake (p. 116).

A paisagem é como um quadro pintado com cores que indicam calmaria. A pintora verbal, através de adjetivos – large/small, flat/gray-blue, thick/rolling, grassy/dotted - acentua a imagem natural. A alternância entre o grande e o pequeno, o horizontal e o pontilhado, por exemplo, demonstra a variedade dos elementos semânticos para a descrição. A estética da visão domina a narrativa e cria um efeito qualitativo para o relato. O exótico está em todos os lugares. O visto e o lembrado fundem-se em uma mesma imagem. O local e o distante ordenam - se para criar uma obra de arte. Um ordenado de ações cria um paraíso terrestre. A simplicidade do visto é enaltecido pelo olhar do gozo. Já não existe, aparentemente, a repetição das imagens, porque aos olhos da observadora, tudo está diante de si, a seu dispor, ao seu alcance. É o olhar de contemplação e regozijo. Como diz Pratt em seu livro Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação (1999), “as qualidades estéticas da paisagem constituem o valor social e material da descoberta para a cultura de origem do explorador”.

A preocupação em ouvir as ‘histórias de boto’ e em ver esse mamífero amazônico parece ser algo extremamente exótico para um viajante estrangeiro. As lendas envolvendo o boto tucuxi são comuns na região amazônica – “dolphin stories abounded in the Amazon. As television, airplanes and hydroelectric dams increasingly invaded their world, people there still believed that an out-of-wedlock pregnancy was frequently o filho do boto, the dolphin’s child ” (1990:113). Pode-se deduzir desse enunciado que a cultura amazônica é incapaz de inovação (enunciados que surgem em todos os outros relatos de viagem aqui analisados). Apesar da onda do desenvolvimento – aviões, televisão e construção de represas – os indivíduos amazônicos ainda, acredita a jornalista, crêem em histórias de mães solteiras que se dizem vítimas do boto. Essa é uma forma de tirar a culpa da mãe por não saber quem é o pai, por não poder ou querer expor o pai de seu filho, coisa comum em muitas áreas ribeirinhas da Amazônia. Para manter a reputação e a honra, ainda, que um pouco esmeriladas, a moça e a família se valem da história do boto. Acreditamos essa ser uma forma de resistência a favor do conservadorismo e/ou carrancismo de algumas famílias de ribeirinhos. Onde há boto não há filho sem pai. Entretanto, um pouco curiosa, a viajante se debruça por cima da varanda do barco procurando ver o famoso tucuxi:

On my last evening on board, I asked Captain Pereira if he had seen any dolphins. Sheesh, lots! He replied emphatically. “Well, I haven’t seen a single one,” I said, “and I’ve seen looking since Belém”. “You can see them in the evening,” said Pereira, “just as dusk is falling. You can see a lot of them then.” Following his advice, I stood on the bow as we headed westward through a narrow channel. All around us, the mounded shore was thickly carpeted with green, a darker green wall of trees behind looking like an enchanted forest in the approaching dusk. The gold of the setting sun through the clouds made a stained-glass triptych on the water. A few tiny houses and cattle were visible on the shore as we passed an island, tidy rows of beans quilted into the soft, rich silt. After a few minutes, I saw a splash several feet ahead of us. Pereira, who was at the wheel, gave his bell a gentle ring to alert me. Soon I saw a half more dozens of dolphins, emerging as if part of the water itself, then diving quickly. It was as if they swam just near enough to the surface to discreetly show glistening backs of purple-gray, their dorsal fins slicing cleanly through the river (p. 124).

Encantamento, vislumbre e congratulação são a máxima de uma viajante que precisa da ajuda do nativo para ver o que é natural para o indivíduo local e comum nos rios amazônicos: o boto. Essa figura lendária, apesar de vigiada pela cronista de viagem, é invisível: “não vi um sequer e estou olhando desde Belém”. É preciso a experiência do olhar e da viagem pelas águas para conhecer parte da cultura ribeirinha. O todo é incomensurável. O boto não é apenas um cetáceo, um mamífero aquático habitante dos rios, mas uma figura folclórica rica em interpretações; um ser lendário que em noites de lua cheia, sobe do rio para a terra em forma humana, para enamorar-se das moças. O boto faz parte de nossa representação identitária como povos da Amazônia. O boto, entre muitas outras lendas, guarda um campo mitológico imenso a ser explorado, pois há uma relação do imaginário popular com essa figura aquática. As águas dos rios, assim como as águas de um texto, podem guardar muitos segredos, como por exemplo, as marcas identitárias de sujeitos em autovalidação de sua cultura.

Encantamento e a construção da paisagem marcam a estreita relação de domínio entre o observador/espectador e o observado/visto. Que expressão melhor do que “tudo a nosso redor” para justificar a supremacia do observador sobre tudo? Parece que tudo está em consonância com sua presença: o alto da praia coberto pesadamente com uma muralha verde-escura das árvores parecendo uma floresta encantada com a chegada do crepúsculo; o dourado do pôr-do-sol através das nuvens construía um espelho tripartido na água; algumas casinhas e gado podiam ser vistos na praia quando passávamos por uma ilha, uma fileira arrumada de feijão alcochoada no leve e rico lodo. A caravana, ou melhor, a procissão rio abaixo – o barco Fé em Deus carregando uma dama escritora da metrópole que se imagina, ou pelo menos se pode imaginar, congratulando-se pela proeza de estar sendo conduzida. Uma dama empertigada olhando o reino paisagístico ao redor: o tudo ao meu redor. É o reino de tudo eu posso porque pertenço ao “primeiro mundo” parece inebriar a viajante que, ao mesmo tempo em que quer ver tudo não consegue, sequer, ver um boto que sobe à flor da águas do Amazonas. É preciso, ao viajante, como acentuamos a pouco com Larrosa, uma recuperada re-familiarização com o mundo do Outro.

As cidades visitadas por Dwyer, nas fronteiras do Brasil com a Colômbia e Venezuela, como todas as cidades fronteiriças, são inamistosas e feias, como retrata a canadense:

The town of Tabatinga was ugly and hot, with few trees and no attractive architecture. The wharf was the worst part of it. Aside from one modern port-authority building and its floating metal dock, it was given over to a long, rambling filthy market with very little to sell. I walked through it thinking what an inferno of poverty it was. Produce was arrayed on the muddy street, odd-looking produce, such as the ugly black bodo fish and the large purple mapiti fruit. Miserable shacks clustered in a tangle below and along a ridge at the far end of the market. A long, narrow plank led from the muddy shore over the dirty water to the riverboat that made the crossing to Benjamin (p. 202).

Como afirma Pratt (1999), de acordo com os olhos europeus o que é diferente da Europa representa feiúra, incongruência, desordem e trivialidade. Assim, basta que algo diferente de seu mundo “ordenado” lhe surja aos olhos para que se transforme em um verdadeiro inferno. É assim que Dwyer registrou a cidade de Tabatinga, no estado do Amazonas; assim também George Monbiot, jornalista britânico que escreveu Amazon watershed, registrou Porto Velho, por exemplo. Para Pratt, as relações sociais estabelecidas entre o viajante e as populações visitadas – ribeirinhas, indígenas, extrativistas - surgem no texto apenas exercendo funções instrumentais de informantes, de guias ou de hospedeiros dos viajantes. Para a crítica canadense, as populações coloniais surgem no texto em um estado de disponibilidade, que é em si a essência das relações coloniais. Nesse sentido, é preciso que os não-europeus visitados sejam ouvidos também, como uma forma de descolonizar a visão predominantemente européia sobre o Outro.

Encerremos o percurso com Dwyer, recortando um trecho muito significante para nossa análise. Quando de sua passagem pelo rio Solimões, descreve a paisagem, as choupanas, as crianças etc. causando, assim, a impressão de que tudo e todos estavam à sua disposição e ao seu comando, o que confirma as palavras de Pratt (1999). A instrumentalização das várias personagens é característica do discurso de viajantes metropolitanos. Contudo, quando Dwyer quer voltar para Manaus e de lá para o Canadá, fica desesperada porque não consegue um barco para o retorno. Já bastante preocupada consegue uma passagem em um barco pesqueiro denominado Corajoso, nome que, conforme a canadense, resumia bem toda a sua coragem ao empreender a viagem pelas águas amazônicas: “The boat had an auspicious name, one that seemed to sum up my whole trip. It was called the Corajoso, the Corajoso ” (1990:222). De sua parte, só lhe resta a autocongratulação, porque “corajosa” em viajar sozinha pela Amazônia brasileira. De certa forma, esse enunciado acentua sua civilidade européia e em contrapartida, mostra-nos, mais uma vez que, o diálogo entre o viajado e a viajante ainda não mostra simetrias entre os enunciadores.

Em suma, Dwyer é uma dama apenas consigo mesma e com a sua causa - retratar os vários modos de vida de povos amazônicos. Esses retratos pintados com palavras estrangeiras, certamente, não refletem a realidade totalizante amazônica, mas somente parte de uma das muitas Amazônias. Como acontece com todas as representações construídas sobre os sujeitos viajados. Será que o indivíduo amazônico vê a Amazônia como um estrangeiro? Certamente não. O sujeito amazônico vê a Amazônia como um filho vê a mãe, com ternura, admiração e respeito. Algo diverso do viajante estrangeiro, que, grosso modo, vê a Amazônia como um lugar de povos primitivos. Um espaço a ser visitado, explorado e dominado por potências do “Primeiro Mundo.” Muitos estrangeiros viajam para e pela Amazônia para mostrar seu poder aquisitivo e poder contar aos seus amigos e parentes, como forma de congratulação, que na Amazônia tudo é diferente, como registrou Alex Shoumatoff em seu relato jornalístico sobre a Amazônia da década de 80 do século XX, The World is Burning (1990). Como interroga Edward Said (1990): “será que a noção de uma cultura (ou raça, ou religião, ou civilização) distinta é útil, ou será que sempre se envolve em autocongratulação ou em hostilidade e agressão”? Assim, percebemos ao ler o relato de Dwyer que muitos dos vocábulos da cultural imperial ainda continuam em pleno exercício. Porém, o combate a essa prática discursiva vem se mostrando vigoroso.

REFERÊNCIAS

BHABHA, H. K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Vozes. 1997.

BURKE, Peter. Revista Idiossincrsia. Portal Literal. Disponível em www.Portal Literal.htm.

Acessado em 10/08/2007.

DWYER, Augusta. Into the Amazon: Chico Mendes and the struggle for the rain forest. Toronto: Porter Books, 1990.

LARROSA, Jorge. Para qué nos sirven los extranjeros? In: EDUCAÇÃO E SOCIEDADE: revista quadrimestral de ciência da educação. Dossiê: “Diferenças”. Nº. 79. Ano XXIII. Agosto de 2002.

MONBIOT, George. Amazon watershed: the new environmental investigation. London: Michael Joseph, 1991.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Trad. Jézio Hernani Bonfim. Bauru: EDUSC, 1999.

SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

______________ Cultura e imperialismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SHOUMATOFF, Alex. The World is Burning. Boston: Little brown & Company, 1990.

Labrense
Enviado por Labrense em 15/01/2009
Reeditado em 13/07/2011
Código do texto: T1386744
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