PESSOAS DESCARTÁVEIS

Ao escrever o título deste texto, lembrei a história do Sr. King Camp Gillette. Conta-se que seu patrão lhe dizia que para ganhar muito dinheiro era preciso fabricar um produto que as pessoas usassem e jogassem fora. Certo dia, barbeando-se, ele percebeu que precisava mandar afiar a navalha. Frente ao inesperado transtorno, ocorreu-lhe que se houvessem lâminas descartáveis somente teria que pôr uma nova e jogar a velha fora, dispensando o transtorno de levar a navalha ao amolador. De lá para cá, as coisas têm se tornado cada vez mais descartáveis.

Hoje, vendo um dos meus textos, que relaciona paixão e amor, publicado no Recanto das Letras, num comentário em que elogia o artigo, um leitor faz ressalva em desacordo a parte onde digo que “nos dias atuais, onde as pessoas são descartáveis (...)”, – nesse ponto ele esclarece que justamente hoje as pessoas estão mais sinceras, dando a entender que esse realismo sarcástico em que se notifica o cônjuge de forma sumária que se está tendo um caso ou pede-se divórcio por causa da paixão avassaladora da vez é sinceridade.

Há um grave equívoco na interpretação atual do que é realmente sinceridade, sendo que esse afronte sarcástico não é, sendo sim uma grande demonstração de menosprezo pelo sentimento da pessoa com quem já se tem um relacionamento estável, de falta de sinceridade quanto às declarações de amor e compromisso anteriores, de falta de comprometimento para com a existência da outra pessoa, além de falta de objetividade na escolha do querer.

Sinceridade não é jogar qualquer verdade em rosto da outra pessoa, mas comprometer-se com o sentimento dela, o tempo dela, os objetivos dela ao envolvê-la com nossos devaneios. Não entrar em sua vida sem objetividade, desviando-a de seus objetivos, dispondo de seus sentimentos, tempo e planos, para depois demonstrar quão insignificantes eles nos eram ao deflagrarmos uma declaração terminal, uma notificação arbitrária terminal. Isto é sim cinismo e crueldade, o que as pessoas atuais não podem entender, tampouco aceitar, pois para a mente dos dias de agora tudo é descartável no memento em que ameaça obstruir a satisfação pessoal, o prazer avassalador e passageiro, ou a ânsia por sentir-se e possuir.

A sinceridade atual está tão distorcida que as pessoas não recuam de seus intentos mesmo ao perceber o erro, não retratam-se, mesmo após convencer-se de ter cometido injustiça, não reparam o danos, mesmo conscientes de que fizeram alguém sofrer e ainda vão na justiça fazer valer sua opinião contra aqueles que não concordam com ela.

A insinceridade está tão em alta que perante juizes e promotores as pessoas fazem reclamatórias do que jamais cobraram daqueles a quem acionam, sustentam calúnias para fazer revanche, dizem o que jamais disseram e declaram temer a quem diziam que confiavam. Casais resolvem na quebra de braço judicial problemas íntimos, indivíduos fazem valer sua vontade sobre os outros com acusações de superstição e discriminação, não o seu direito, desconsiderando que a dor alheia é a mesma que não gostariam de sentir, e o sofrimento do outro é o mesmo que não suportariam, que as lágrimas dos outros sãos as mesmas que não gostariam de derramar.

Certa oportunidade, quando a esposa Jaque, contrariada, saiu batendo a porta e os pés, dizendo que ia embora, ao retornar reclamando seus direitos, o marido Jack perguntou-lhe o que gostaria de levar, pensando em lhe oferecer um bem de maior valor do que todo o resto que pedisse. Todavia, ela se foi sem dizer sem responder a pergunta. Quando voltou uma semana depois, ele fez-lhe a mesma pergunta, sem obter ainda respostas. Na terceira vez que voltou já foi para avisá-lo da intenção de acioná-lo judicialmente. Ele lhe disse que não havia necessidade de envolver estranhos em um assunto tão simples. Todavia, ela fez questão de humilhá-lo, levando-o ao tribunal como se fosse um troglodita incompreensível.

Ao ser instigado pela juíza do caso para que dissesse o que daria para a ex-esposa, Jack tentou argumentar que não havia necessidade daquela coação, pois insistentemente pedira a mulher que lhe dissesse o que queria. Todavia, foi interrompido, recebendo ordem de simplesmente fazer a divisão ou sofrer a arbitrariedade da lei sendo forçado a dividir.

Antes, porém, ele preparara sua defesa, apresentando provas de quanta dificuldade tivera naqueles meses por causa das extravagâncias da esposa, pelo que demonstrou que ela não tinha direito a nada, obrigando-se apenas a dar-lhe qualquer objeto por simples consideração.

Portanto, quanto as pessoas perdem por causa da insinceridade, incapacidade de dizer as verdadeiras verdades uns aos outros pacificamente. Não só perdem bens materiais, mas destroem relacionamentos conjugais, fraternos e amigáveis, perdendo o melhor da humanidade, que é a capacidade de entrar em acordo, tirar proveito da amizade, sentimento e presença dos outros lhes retribuindo com outras vantagens. As pessoas atuais querem tirar proveito umas das outras, mas sem comprometer-se com elas, sem ficar devendo-lhes consideração por seus sentimentos, por seu dispêndio de tempo, por usarem o melhor delas, seus corações, sonhos e projetos.

Nesse sentido digo que as pessoas passaram a ser descartáveis, alguém por quem não se tem qualquer consideração, podendo-se no final acioná-la na justiça com um pretexto ou outro, tirando alguma vantagem, nem que seja uma pequena indenização por preconceito, racismo, estupro, violência doméstica, pensão alimentícia, etc., que não foi bem assim.