DARWIN E A ESCRAVIDÃO

Inácio Strieder

Quando se fala em Charles Darwin, lembramo-nos imediatamente da teoria da evolução, da sobrevivência do mais forte, da seleção natural. Darwin, no entanto, também era socialmente sensível. Após a sua viagem, de 1831-1836, publicou o relato que fez a bordo do Beagle, navio que o levou por cinco anos pelo Atlântico e pelo Pacífico. Este relato da "Viagem de um Naturalista ao redor do Mundo" foi publicado, pela primeira vez, em 1839 e teve, posteriormente, uma edição corrigida pelo próprio Darwin. Na viagem de ida, o Beagle encostou em Salvador da Bahia e no Rio de Janeiro. Na volta, aportou novamente em Salvador e, por causa de ventos contrários, entrou também no Porto do Recife. Em 19 de agosto de 1836 deixou definitivamente as costas brasileiras, rumo ao Cabo Verde. As considerações de Darwin sobre a escravidão no Brasil são relativas ao que observou no Rio de Janeiro, na viagem de ida, e, na viagem de retorno, quando permaneceu por alguns dias em Recife.

Quando Darwin deixou Londres, em dezembro de 1831, tinha apenas 22 anos de idade. Era um jovem curioso, sensível e crítico. No Rio de Janeiro, em abril de 1832, um inglês o convidou para visitar sua fazenda, afastada da cidade. Nesta viagem, Darwin observa a situação dos escravos, e presencia o suicídio de uma escrava negra, precipitando-se de um rochedo, quando estava para ser recapturada. Darwin também viu escravos recebendo chibatadas e serem marcados a ferro. Além disto, testemunhou também a desumanidade de um dono de escravos, que, por pura ganância, separou diversas famílias de escravos, arrancando esposas a maridos, filhos a pais, irmãos a irmãos, enviando-os ao mercado de escravos no Rio de Janeiro, para que fossem vendidos. Presenciou também a humilhação de um escravo, mais humilhado do que o mais miserável animal doméstico, que nem levantou a mão para se proteger de um golpe que lhe foi desferido no rosto. Em Recife, ao sair pelas ruas, Darwin declara que ouviu gritos de escravos sendo torturados nos fundos das casas. E confessa que, mesmo posteriormente quando já na Inglaterra, toda vez que ouvia gritos de alguma pessoa, se lembrava dos gritos dos escravos sendo torturados no Brasil.

Quando Darwin deixa o Porto do Recife, relata que dá graças a Deus por poder deixar as costas brasileiras, e espera nunca mais precisar voltar ao Brasil, enquanto ali perdurasse o sistema de escravidão.

No seu livro "Viagem de um naturalista ao redor do mundo", Darwin também escreve que, em conversas no Rio de Janeiro, ouviu "pessoas de bem" afirmarem que a escravidão era um mal tolerável. Estas pessoas diziam-lhe que perguntasse aos próprios escravos, em suas casas, como se sentiam. Darwin observa que, evidentemente, nenhum escravo era tão burro para criticar os seus donos. Pois, mais dia menos dia o patrão chegaria a saber, e o resultado seria a chibata. Darwin se mostra escandalizado com estes "escravocratas de bem", pessoas que todos os dias rezavam a Deus, pedindo-Lhe que se fizesse Sua vontade na terra como no céu. A consideração da escravidão, como mal tolerável, só podia provir de elites que nunca haviam entrado nas senzalas e observado a vida miserável e de humilhação nestes ambientes. E Darwin adverte, primordialmente como naturalista, que a tortura e a humilhação dos escravos também tinha o seu limite. Pois, até mesmo os animais mais domesticados, quando torturados e humilhados, se tornavam violentos. Sinais de reação já se podiam observar, quando muitos donos de escravos demonstravam um grande medo, temendo vinganças destes homens rebaixados a condições inferiores às dos animais.

Assim, Darwin deixou as costas brasileiras, declarando que, objetivamente, não gostava do Brasil, por causa do regime de escravidão. Claro, entretanto, a história caminhou mais 165 anos. Mas, o que diria Darwin hoje das condições sociais do Brasil? Das dezenas de milhares de pessoas ainda hoje trabalhando em regime de escravidão? Será que muitas das violências que, todos os dias, nos assustam e escandalizam não são reflexo das sombras do regime de escravidão, que humilhou, durante séculos, a maioria da população trabalhadora no Brasil? Talvez, a observação de Darwin, de que até os animais domésticos se tornam violentos, quando torturados, fosse um dos pontos de partida para analisar algumas das manifestações de violência no Brasil de hoje.