Agora, no meio da tarde, eu estou ensinando esta criança a ler. Não me cabe julgar a carga que ela trás consigo, ao adentrar os muros da escola. Por outro lado, é impossível ignorar esta realidade.

Misturado aos textos, palavrinhas, músicas e aquela papelada toda, ele me parece uma criança comum, assim como o meu filho de sete anos. Faz um esforço tremendo para ler as palavras que, para ele, ainda são tão confusas: sa-pa-to.

Toca o sinal, e depois do beijo de despedida o menino ainda permanece. Ele não quer ir embora, e pede para ajudar a organizar a sala para a aula de amanhã. Guarda as folhas, arruma as cadeiras, limpa o quadro. Senta-se e fica me observando preparar mais uma lição. Por que ele não quer ir pra casa?

Aos poucos, vou me inteirando do mundo em que esta criança vive. Ele não tem casa. Mora num abrigo para crianças abandonadas, no bairro ao lado, com mais dezesseis crianças e adolescentes. Quando anoitece, dribla o vigia e foge, em direção ao centro da cidade. Algumas professoras já o viram no sinal, fazendo malabares pra ganhar um troco.

Na aula passada ele veio, orgulhoso, com uma garrafa de refrigerante, oferecer-me um copo.
“Toma, professora. Eu comprei com o meu dinheiro.”

Mais um abraço, mais um beijo. O que parece, ao primeiro olhar, é que esta é uma criança amadurecida pelos revezes da vida. Mas o contato diário mostra-me que a carência afetiva faz dela muito mais criança para a idade que tem.

Que diferença posso fazer na vida de quem, aos onze anos, já enfrentou muito mais desafios do que eu aos trinta?
Como despertar a inteligência de um menino que há tanto já caiu na feroz luta pela sobrevivência?

Ca-dei-ra. Cadeira. Seus olhos divagam, ele não me enxerga. Não está aqui. Em que estará pensando... no abrigo? No sinal? Na mãe?

Apesar das dificuldades, ele quer ficar. O ambiente amistoso e vivo da escola lhe faz bem. Ele é uma criança, e se sente atraído por tudo que o desafia. Estar aqui é mais do que simplesmente aprender a ler, é ainda fazer parte, estar incluído no mundo, de alguma forma. É sentir aguçadas suas faculdades humanas, além do medo e da fome. E certamente, além da solidão.

Se lhe negam todos os direitos humanos, na escola ele ainda encontra algum. Para onde ele vai, depois que o portão se fecha, não há ninguém que se responsabilize, nem pai, nem governo, nem instituição alguma. Ao sair, não é mais criança, é adulto. Por isso ele fica. Porque ele quer ser criança.

Entre uma lição e um abraço, não sei dizer qual dos dois é o mais importante na formação desta pessoa. Mas eu vou ficar aqui, e dar os dois. Por via das dúvidas.