Juntando os pedaços

-> Dedico este artigo a todos os ex-presos políticos deste país.

Anos de chumbo, anos pautados pela dureza. Uma pauta encapuzada, protegida pelos setores conservadores que crêem na mão pesada como saída.

Nosso país, porém, saiu da ditadura a qual se viam os capuzes para mergulhar em anos de uma hipocrisia perigosa. Uma hipocrisia compactuada pela parcela podre da mídia, saudosa dos anos de repressão em que se acreditavam mais felizes. Saber-se sob controle exerce estranho fascínio, mesmo em mentes das mais instruídas, vai entender. Isso sem falar naqueles fascinados por exercê-lo.

Um fascínio que se mantém na velha política dos coronéis. Capangas ciceroneiam o principal juiz de nossa mais alta Corte. Seguranças engravatados do presidente do Senado recebem equipes de reportagem com truculência. Talvez na esperança de que, assim, pareça que eles precisam lutar com a imprensa. Como se já não tivessem um exército de repórteres vendidos a eles. Só que os corredores de nosso Congresso estão corroídos por inúmeras mazelas, as quais estão longe de se resumirem a um único ladrilho defeituoso, como tentam sugerir os “filiados” ao Partido da Imprensa Golpista.

Por mais que o presidente do Senado seja legítimo representante do pior que a política pode oferecer, não consigo deixar de me revoltar quando vejo ele ser chamado de “o último coronel da política brasileira”. Basta visitar o nordeste e ter um dedinho de prosa com o povo simples da região que eles dão conta direitinho de quantos coronéis nossa política ainda abriga. Jader Barbalho e Renan Calheiros devem estar enciumados. Já os imagino se perguntando: “Então será que não somos mais coronéis do nordeste?” Deve haver até ex-presidente com ciúmes dessa história – aquele que teve que aturar os caras-pintada nas ruas gritando para derrubá-lo – e o derrubaram – que hoje é um dos maiores latifundiários deste país, dono de canaviais, arrozais e cultivo de soja, em vastas áreas a perder de vista, infestadas de jagunços armados. Pela grande-imprensa eu nunca vi passarem esses latifúndios, só se passaram correndo por notas de pé de página. É explicável: para os donos da mídia o MST é terrorismo, mas os capangas e jagunços rurais que matam trabalhadores a sangue frio podem ficar impunes.

Capangas, seguranças armados, jagunços… Estão longe de um charme de um 007, mas os desafie de verdade e tenho certeza que, assim como o agente secreto da rainha inglesa, eles também “têm licença para matar”. Assim como quem os paga se julga com “licença” para ludibriar constantemente o povo.

É, portanto, um constante jogo de aparências que já não permite que a sociedade enxergue com precisão onde estão seus algozes. Mas lá estão eles. Os de hoje, que usam outros métodos, e os de ontem, escondidos do grande público, caminhando impunes pelas ruas desse Brasil, depois de pagarem com a morte o idealismo de tantos brasileiros.

Alguém viu por aí o Tenente Coronel José Ney Fernandes Antunes? De 68 a 71 ostentava o cargo de “conselheiro” dentro da Polícia do Exército. Hoje é provável que esteja tranqüilamente dando conselhos aos seus netos.

Viram por aí o Tenente (torturador) Armando Avólio Filho? Ah, sim, consta que está reformado como general.

E o Tenente (torturador) Luiz Mário Correia Lima? Ah, minha gente, vejam vocês, esse foi até condecorado! Foi promovido a major e hoje deve desfilar impunemente naqueles melancólicos encontros de oficiais da caserna com honrarias no peito conferidas a ele por seu empenho na captura de “terroristas”. Só o que as medalhas não trazem escrito é o que significam terroristas para ele.

É possível que esteja também solto por aí aquele que era conhecido como o “Tenente Mata Rindo”. Dá para imaginar isso? O sujeito era tão sem piedade que tinha declarado prazer em matar, não escondia o riso. Isso para mim já é doença. E o pior é a sensação de que uma pessoa dessas possivelmente continua rindo por aí, sabe-se lá fazendo o que, sabe-se lá rindo de que. Mas solta – livre, leve e solta!

Dessa maneira, fica até fácil entender o medo que alguns ex-presos políticos mantém ao sair às ruas. Só eles sabem de fato o que passaram e o trauma que ficou. O Brasil precisa lhes dar alguma tranqüilidade, precisa dar uma indenização que vai muito além do vil metal. Eu não tenho dúvidas de que a punição a esses monstros que assombraram nosso país seria para os tantos que sofreram nas mãos deles a maior condecoração que poderiam receber. E eles, sim, merecem.

Cresci ouvindo a triste história do meu tio, Carlos Aberto, ex-preso político que sofreu o pão que o diabo amassou, mas, felizmente, sobreviveu. E, não fosse isso, tenho amigos ex-presos políticos. Com um desses amigos, que prefere ser identificado como Freitas, eu conversei recentemente sobre aquela época. Foi essa conversa que me inspirou a escrever este artigo, tendo sido, inclusive, o Freitas que me passou os nomes dos militares que participaram das torturas naquela época e que ainda estão vivos – e impunes. Além dos já citados, ele me contou também sobre o 2º Sargento (torturador) Eli, do qual ele diz que não se esquece porque era a cara do jogador de futebol Ademir da Guia. O 2º Sargento Eli teria lhe dito num bar na Rua Maia de Lacerda no Rio Cumprido, já depois de ele ter sido solto: “Suma do Rio ou vamos lhe matar da próxima vez!” E, assim, lá se foi o Freitas para São Paulo. Também esse Eli deve estar gozando da vida livre.

Assim como o Cabo Gil, que era também enfermeiro. Segundo Freitas, quando ele estava preso, este era o que aplicava injeções para que ele revivesse as sessões de tortura. Sempre a mando do médico responsável, o Tenente Drº. Ricardo Agnase Fayad, e, ainda, de outros militares médicos que andavam com uma prancheta dando os óbitos.

Freitas fez questão de que eu citasse alguns dos companheiros que foram torturados com ele, então vamos lá: Djalma (Touro), Elias (padeiro e mineiro) e Loira, morta no choque no dia 10/11/70.

Na entrada das sessões de tortura, havia o corredor polonês, feito por vários militares. Essa também era uma prática da polícia civil, Dops e Polinter quando prendiam grupos de “terroristas”, conforme eram tratados todos os capturados, e o corredor polonês eram as “boas-vindas”.

Eu não vivi aquela época. Nasci bem no finalzinho do exato ano em que Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Luís Inácio Lula da Silva e, até mesmo, um FHC bem diferente do que ocupou o Planalto, subiam juntos a palanques para gritar que as eleições tinham que ser diretas e tinham que ser já! Ou seja, cheguei a esse mundo doido e a esse Brasil de tantas contradições, ganhando de presente de boas-vindas a democracia. Pena que hoje eu veja essa democracia, conseguida a tão duras penas, ameaçada por todos os lados pela pior das ameaças que existem – aquela que vem sob o disfarce de benefício.

Falsos paladinos da liberdade e da moralidade têm se proliferado mais que cupim. Nosso sistema judiciário está entregue a pessoas que se julgam os donos do mundo. Como posso me alegrar, encher o peito e dizer – “Nasci e até hoje vivo num país democrático” – quando vejo jornalistas serem censurados por fazer jornalismo? Recentemente houve um vergonhoso caso de censura no jornal “O século diário”, do ES, mas outros podem ser citados. O juiz que anda com capangas e anuncia ao país que “jornalista não precisa de diploma porque isso é uma afronta à liberdade de expressão” é doutor honoris causa em baixar ordens para censurar a imprensa. E, ainda assim, ele consegue fazer com que boa parte da sociedade acredite que ele tem alguma vocação para timoneiro da democracia.

Ainda bem que Ulysses morreu no mar, então não dá nem para dizer que ele está se revirando no túmulo…

Ana Helena Tavares
Enviado por Ana Helena Tavares em 11/07/2009
Reeditado em 11/07/2009
Código do texto: T1694727