PORQUE IDIOMATICIDADE*

Não se trata de retórica, apologia ao idiomatismo, que subjaz a qualquer língua. O cabedal linguístico da idiomaticidade é algo tão considerável que a ninguém competiria minimizar ou lhe fazer vista grossa. Existe uma gama submersa de termos e “expressões idiomáticas”, porém viva, real, aqui e ali, comumente desapercebida de boa parcela dos usuários de qualquer língua do universo.

Segundo é da ciência de todos nós, a coisa dita “idiomática” se vale da figuração, portanto tem sentido polissêmico. Vale dizer, uma locução poder ter múltipla significação e não se traduz de modo literal, palavra por palavra. Daí decorrer a grande dificuldade para, num dado contexto frasal, efetuar-se a decodificação semântica de um termo, ou, mais comum, de uma expressão.

Morfologicamente, na palavra, estuda-se com afinco o processo pelo qual ela foi estruturada; se nela houve derivação ou composição, redução, hibridismo, etc. Não que isto não seja significativo, mas estes enfoques serão a prioridade nos estudos pós-graduados da linguagem?

Fonética e/ou fonologicamente, por outro lado, estuda-se com toda atenção a prevalência ou não-prevalência dos fonemas surdos ou sonoros, assim como o papel específico das consoantes bilabiais, das linguodentais, oclusivas ou fricativas, no corpo dos vocábulos. Tal como é assim que se procedem nas chamadas “maçantes gramatiquices”. Não que isto não seja importante, contudo será mesmo este tópico gramatical deveras indispensável?

Na sintaxe, com justa razão e carinho, estuda-se com exaustão o lugarzinho bom e correto de um pronome, inserido na frase, com relação à posição do verbo, além de se consumirem incontáveis páginas e horas preciosas na pesquisa da concordância e da regência, tanto as ditas verbais quanto as regência e concordância nominais. Longe de se afirmar que isto não seja de grande pragmatismo, mas será somente este ponto, na pós-graduação, o aspecto primordial na construção lingüística?

Enfim, estuda-se meticulosamente, no texto literário, a existência ou não da metáfora, da metonímia, do pleonasmo e da silepse. Estamos a quilômetros de insinuar que isto não seja bastante necessário, e estético, todavia será que tais “tropos” e imagens são assim tão essenciais, além de elegantes arabescos de caráter estilísticos, nos estudos da pós-graduação?

Então, por que estudar-se essa “praia” de idiomatismo? O idiomatismo, também, sim. Convém, em uma monografia, por ex., que se o leve em conta. E por que, ao que se tem conhecimento, não se têm dedicado as teses e/ou monografias acadêmicas ao mister e à problemática do assunto, se, como é sabido de todos, ele existe, e existe fartamente, jazendo no substrato linguístico das camadas sociais mais populares, também com incursões pelo campo literário, em todas as línguas vivas do universo?

No português do Brasil, por ex., as expressões idiomáticas são uma constante, fornecidas pela tradição e pelo imaginário das diversas gentes regionais. Podem ser comparadas ao folclore da linguagem. Desta forma, o imaginário popular, contido nas lendas e fábulas, e no anedotário, tudo isso está para a linguagem assim como as invencionices estão para o idiomatismo.

Vale, aqui, uma advertência: não se pode ignorar ou desprezar o farto material que há, solto e submerso por aí, fossilizado ou não, o qual coexiste/coabita nas operações funcionais do português, sob a forma de “substrato idiomático”. Prova disto, bem patente, está no fato de os escritores “regionalistas do Nordeste”, sem exceção, terem recolhido, em seus textos, autênticas joias idiomáticas (ver Amado, Lins do Rego, José Américo, Graciliano e Rachel de Queiroz). Por ex.: “enfiar a cara no mundo”, significando fugir e “ir com alguém às obras de misericórdia”, na acepção de castigar fisicamente a esse alguém, são belas expressões idiomáticas verbais, já que formadas a partir de verbos, e tipificam a diferenciação entre estas e simples verbos ou locuções verbais, ou seja, sem conteúdo propriamente idiomático.

Em suma, na linguagem oral e/ou escrita do idioma nacional, o português brasileiro, de cunho predominantemente popular, meio a um riquíssimo acervo de expressões idiomáticas comuns, amplamente em uso, coexiste também uma idiomaticidade específica. Esta se constitui de expressões idiomáticas verbais, e, mais particularizadas, ainda, envolvendo seres irracionais (bichos, insetos, etc.). Em monografia a ser proposta, eis que serão abordados somente verbos expressionais, a saber, como se diz no inglês, “phrasal verbs” ou “two-word verbs”, contendo todos eles seres animais, o que, por tabela, vai representar uma singela homenagem à ecologia. Veja-se o exemplário: “andar com pé de pombo”, isto é, andar descalço; “dar um gato”, i. e., enganar; “fazer-se de avestruz”, i. e., fechar os olhos ao perigo; “dar zebra”, i. e., obter um resultado inesperado; “ser carne de tetéu”, i. e., ser cruel; “espetar o cassaco”, “afogar o ganso”, i. e., copular; “ter lacraia no bolso”, i. e., ser avarento, pão-duro, etc. Aqui, apenas alguns dos verbos idiomáticos enfocados, descritos e analisados, sob a égide de vocabulário, gramaticalmente comentado, segundo a “gramática gerativa”, de Noam Chomsky, isto sob o prisma múltiplo da morfologia e da semântica, enquanto léxico específico.

Em assim sendo, léxico específico, claro que não é feita alusão a casos outros de interferência dos seres animais na linguagem. Notem exemplos que não serão estudados: “macacos me mordam”, locução interjetiva; “macaquear”, “emburrar”, “pavonear-se”, etc., verbos por derivação, de conteúdo conotativo; “pescoço de girafa”, i. e., “comprido”; “lágrimas de crocodilo”, i. e., “falsas”; “cor de burro quando foge”, i. e., “indefinida”; “olhar de peixe morto”, i. e., “mortiço”; “estômago de avestruz”, i. e., “resistente” (locuções adjetivas). Pequeníssima amostragem, evidente, diante da imensidão de casos que envolvem a presença dos seres animais (bichos) no campo linguístico. [Agosto, 1995]

..............................................................................................

Sob o título “Vocabulário das expressões idiomáticas verbais dos irracionais”, uma monografia foi trabalhada. A partir dela, monografia, cerca de apenas 70 páginas, de onde surgiu o «DICIONÁRIO DE EXPRESSÕES POPULARES DA LÍNGUA PORTUGUESA / Riqueza idiomática das frases verbais; Uma hiperoficina de gírias e outros modismos luso-brasileiros», um substancioso catatau de, no A4, 1.130 páginas. O livro acha-se, já, com a segunda revisão feita, numa importante editora paulista, que anuncia sua publicação para 2010. Provavelmente, constituiu exercício “sui generis”, como instrumento de linguagem, no Brasil, e oxalá, também, em Portugal.

Fort., 25/07/2009.

_____

(*) Por falta de outra denominação, vou chamar a este texto de a r t i g o. Rabisquei-o há exatos 14 anos, como rascunho prévio ao projeto de uma monografia acadêmica. Sem burilá-lo, sem revê-lo, durante anos, o texto deve conter alguns erros. Não quis pô-lo na lata do lixo, por isso o estou resgatando, mesmo com imperfeições. Agradeço imensamente aos que me fizerem observações críticas, no sentido de aperfeiçoá-lo, ou, ao menos, troná-lo menos incorreto.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 25/07/2009
Reeditado em 25/07/2009
Código do texto: T1719325
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.