A produção do conhecimento (sobre o filme Narradores de Javé e os mitos)

Entender a questão da produção do conhecimento e sua ligação com a filosofia requer, obviamente, saber o que é filosofia (ou ter um conceito de):

FILOSOFIA, s. f. ciência geral do conhecimento das coisas por suas causas ou primeiros princípios; sistema de princípios que tem por objeto agrupar uma certa ordem de fatos para explicar; cada uma dos sistemas particulares de filosofia; doutrina filosófica: a filosofia de descartes; estudo, investigação dos princípios essenciais de uma arte, de uma ciência particular: a filosofia da musica, da medicina; firmeza, elevação de espírito; razão; sabedoria. (do lat. e gr. Philosophia).

Como "ciência geral do conhecimento das coisas por suas causas ou primeiros princípios", a filosofia busca explicar os processos da natureza, como as coisas acontecem. É uma ciência, e ciências não surgem com a criação do mundo. Esta surgiu por volta de 600 a.C., na Grécia (GAARDER, 1998, p. 34).

Embora a filosofia seja a ciência do conhecimento, mesmo antes do seu surgimento as pessoas já tinham necessidade de explicar as coisas. Como elas faziam isso antes da filosofia? Como explicavam os processos da natureza sem conhecer os seus princípios, suas causas?

Para explicar as coisas, as pessoas criavam mitos. "Um mito é a história de deuses e tem por objetivo explicar por que a vida é assim como é". Os vikings imaginavam o mundo como uma ilha (Midgard) rodeada de trolls, que não habitavam essa ilha, mas o lado de fora dela (Utgard), e tentavam destruir o mundo o tempo todo.

Imaginavam também o reino dos deuses (Asgard) que defendiam a ilha dessas forças do mal. Então, quando trovejava, por exemplo, podia ser porque Tor havia agitado seu martelo. Como quando troveja, geralmente chove, Tor era tido como deus da fertilidade, pois a chuva fazia os campos florescerem. Da mesma forma, quando não chovia, podia ser porque Tor tivesse sido roubado pelos trolls e estivesse sem o seu martelo. Os mitos assim tentavam explicar as coisas que as pessoas não entendiam. A explicação das coisas através de mitos funcionava porque as pessoas não só acreditavam nas histórias criadas, tomando como verdadeiras suas explicações, como participavam delas com rituais e sacrifícios aos deuses (GAARDER, 1998, p. 35 e 38).

O filme Narradores de Javé (CAFFÉ, 2003) mostra mais ou menos a mesma situação: a necessidade de explicar algo cujos princípios eram desconhecidos. Neste filme, onde moradores de um povoado são surpreendidos por uma "desgraça", também encontramos mitos tentando explicar os acontecimentos. Porém esses mitos não envolvem deuses com características humanas, mas homens e mulheres de verdade.

Para livrar o povoado do Vale do Javé da inundação pela instalação de uma represa, era preciso que o lugar tivesse algo de muito importante. Os moradores tiveram, então, a idéia de legitimar a história do povoado, de tornar científicas as histórias contadas a respeito de sua criação, através de sua própria narração. Para tal, era preciso que alguém registrasse essas narrações, tarefa que coube a Antônio Biá, um mentiroso que havia sido expulso do povoado, mas que por ser a única pessoa que sabia ler e escrever, fora chamado de volta.

Ao sair a procura de depoimentos que legitimassem a criação heróica do Vale do Javé, eis que Antônio Biá não encontra uma, mas várias histórias a respeito. Ou seja, na busca pela verdade (ironicamente empreendida pelo maior mentiroso do lugar), descobriu-se que não havia verdade alguma, por haver verdades demais.

Aqui se pode fazer comparação, novamente, entre a mitologia grega e o caso de Javé, porém contrapondo-os: na mitologia grega, os mitos eram legitimados pela crença das pessoas, que aceitavam as explicações mitológicas como verdadeiras. Em Narradores de Javé, ouvia-se varias explicações para chegar ao início da criação do povoado, porém todas diferentes entre si, discordantes.

Também se pode comparar o personagem Antônio Biá aos primeiros filósofos, que, com o registro, por escrito, da mitologia, começaram a criticá-la por perceberem que os deuses eram extremamente parecidos com os homens, e que talvez, por isso, não passassem de frutos da sua imaginação (GAARDER, 1998, p. 39). De fato, os personagens que os moradores de Javé descreviam a Biá como fundadores do povoado, eram nada menos que o imaginário deles mesmos. Em ambos os casos a falta de consenso levou à quebra da legitimação dos mitos (gregos e javéicos).

O acerto pelo erro?

Sobre o conhecimento, encontram-se várias teorias:

Os sofistas diziam que "não podemos conhecer o Ser, mas só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade" e que a verdade era, na verdade, apenas uma questão de opinião, assim, a linguagem era mais importante que a percepção e o pensamento, porque através dela era possível "persuadir os outros de suas próprias idéias" (CHAUÍ, 1997, p. 111).

Contrapondo os sofistas, Sócrates dizia que a palavra nos dava somente meras opiniões sobre as coisas, e até mesmo os sentidos nos davam meras aparências, e que a verdade só poderia ser realmente conhecida se nos afastássemos dessas ilusões e a buscássemos somente através do pensamento.

Platão dizia que o conhecimento era divido em conhecimento sensível (crença e opinião) e conhecimento intelectual (raciocínio e intuição intelectual), mas que o primeiro era causa de erro, e deveria ser afastado.

Aristóteles separava o conhecimento em sensação, percepção, imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição intelectual. Fazia também uma separação entre os seis primeiros graus e o da intuição, porém não tomava os outros graus como falsos ou ilusórios, mas como tipos de conhecimentos diferentes (CHAUÍ, 1997, p. 112).

Descartes, ao examinar as causas de erro, localizou o que chamou de prevenção e precipitação, as quais ligam-se, respectivamente, os mitos ("facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e idéias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras") e os Narradores de Javé ("opiniões que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte que nosso intelecto") (CHAUÍ, 1997, p. 116).

Como dito no inicio do texto, ciências não surgem com a criação do mundo. Embora o conhecimento fosse visto de várias formas, tanto os filósofos antigos como os modernos concordam que se deve "começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassá-las em direção à verdade" (CHAUÌ, 1997, p.115).

A produção do conhecimento se dá na tentativa de confirmar ou contestar algo. E isso acontece a partir do momento em que se toma ciência daquilo que Platão chamaria de erro, e que eu chamaria de engano (um "erro" mitológico que conseguia convencer pessoas das maneiras mais inacreditáveis possíveis era, no mínimo, uma bela criação baseada apenas em observações).

Se ninguém tivesse duvidado do martelo de Tor, talvez não tivesse sido descoberto o ciclo da água, que evapora e volta em forma de chuva. Dessa forma, pode-se dizer que, para existir uma verdade, é imprescindível que haja antes um erro. Duvidar do erro e buscar a verdade é a grande mola propulsora para produção do conhecimento.

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 6ª ed. Ática, 1997, p. 109 - 118.

FERNANDES, Francisco; GUIMARÃES, F. Marques; LUFT, Celso Pedro. DICIONÁRIO BRASILEIRO GLOBO. 43ª ed. São Paulo: Globo, 1996, p. 292.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Schwarcz, 1998, p. 34 - 40.

NARRADORES DE JAVÉ. Direção Eliane Caffé. Bananeira Filmes. Distribuição Riofilme, 2003. 1 filme (100 min.).

Natália Cristina de Almeida Souza
Enviado por Natália Cristina de Almeida Souza em 26/07/2009
Reeditado em 26/07/2009
Código do texto: T1720818
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