A GOSTOSA BELÉM DOUTRORA NA VISÃO EUCLIDIANA

                           Sérgio Martins Pandolfo

“Belém, a Metrópole das Águas no estuário do rio-mar plantada”. SerPan

     Comemorar-se-á no dia 15 de agosto deste ano o primeiro Centenário da morte de Euclides da Cunha, na opinião do redator destas notas o mais elegante, esmerado e, à exação literária, o mais correto palavrador de nossas letras. Euclides teve profunda atuação na Amazônia e estreita ligação com a capital parauara, como já se verá.
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu em Cantagalo (RJ), no dia 20 de janeiro de 1866. Foi escritor, professor, sociólogo, repórter jornalístico e engenheiro, tendo se tornado famoso internacionalmente por sua obra-prima, “Os Sertões”, que retrata a Guerra dos Canudos.
     Nossa brejeira Santa Maria de Belém do Grão-Pará nesse janeiro veio de completar 393 anos de uma trajetória urbanística marcante, iniciada no já longínquo ano de 1616, no local batizado de Feliz Lusitânia, onde foi assentada, a 12 de janeiro, uma fortaleza denominada Forte do Presépio, núcleo primordial de sua fundação pelo intrépido capitão-mor das tropas portuguesas, Francisco Caldeira de Castelo Branco. A partir daí se foi desenvolvendo de forma irradiada, centrífuga, pelos terrenos mais elevados e secos, conformando o bairro da Cidade. E tal foi o bom trato e tantos os bons ofícios que a ela dispensou Caldeira, que em três anos (tempo que aqui jazera) surpreende aos que a visitam. Mais tarde, transpondo o “alagado do Piri” e avançando mata adentro, deu início à expansão de seu núcleo urbano primitivo com a formação do bairro da Campina, o segundo a ser constituído.
     Seu crescimento processou-se de forma lenta, mas contínua e bem planejada por todo o século XVII e primeira metade do XVIII, quando, com a chegada de Antônio Giuseppe Landi (1753), notável arquiteto bolonhês que para cá veio compondo a Comissão Demarcadora dos limites amazônicos dos reinos de Portugal e Espanha e a extraordinária visão de estadista do Marquês de Pombal, ministro plenipotenciário de D. José I, a então Cidade do Pará passou a apresentar um dos mais soberbos picos de crescimento e urbanização, ganhando, da superior cerebração do Mestre italiano, inigualáveis conjuntos arquiteturais, assim na esfera eclesiástica (Sé, Igrejas de Santana, Mercês, Carmo, São João, capelas Pombo, Ordem Terceira de São Francisco e N. Sra. da Conceição, esta no Engenho do Murucutu, hoje em ruínas) como na militar (Quartel dos Soldados, não mais existentes) e na civil (Palácio dos Governadores, Real Hospital Militar, hoje Casa das Onze Janelas; Casa Rosada; o imóvel ainda hoje existente no ponto esquinado pela Rua João Alfredo com a Trav. Frutuoso Guimarães e residências para várias personalidades de então; a Casa da Ópera, que se erguia no exato local onde hoje está o imponente Palácio “Antonio Lemos”, erigido sobre seus alicerces).
     Nos finais da 18ª centúria e primórdios da 19ª, um extraordinário serviço de macrodrenagem e terraplenagem levado a cabo sob a lúcida administração do Governador do Grão-Pará, o Conde dos Arcos, pôs fim à imensa zona pantanosa e insane do “alagado do Piri”, aumentando a área útil e dando excelentes condições de salubridade ao bairro da Cidade, agora, então, ampla e livremente ligado ao da Campina. Belém crescia, desenvolvia-se, alindava-se, sendo, já naquele então, a mais importante e próspera de todo o Estado do Grão-Pará e Maranhão (correspondente, hoje, aproximadamente, à Amazônia geográfica brasileira).
     Esse processo de crescimento e desenvolvimento consolidou-se e agrandou-se notavelmente no período de 1895 a 1915, correspondente ao da administração do “velho” Lemos, sem ponta de dúvida o mais realizador e fecundo intendente (prefeito) de todos quantos já exerceram, em Belém, tão importantes funções. Antônio Lemos foi um revolucionário, um visionário, criando serviços inexistentes; modernizando outros; intervindo na educação com a criação de Grupos Escolares e Internatos que são, até nossos dias, exemplos de qualidade arquitetônica (Barão do Rio Branco, o prédio da atual Faculdade de Medicina, na Praça Camilo Salgado, antes Largo de Santa Luzia, o Educandário que hoje leva seu nome, no desmembrado município de Santa Isabel); abrindo ruas e avenidas de largueza e boniteza que a todos encantava; criando e arruando bairros inteiros (o do Marco da Légua); construindo abrigos para a velhice desamparada (o Asilo de Mendicidade “D.Macedo Costa”); urbanizando e alindando praças (República, Batista Campos); instalando serviços de transporte público avançados (bondes elétricos); providenciando o fim adequado do lixo urbano, com a construção do Forno Crematório; promovendo a adequada e precisa arborização da cidade com mangueiras (que Landi, mais de um século antes, trouxera para o Grão-Pará), que lhe dá característica e apelativo próprio: “Cidade das Mangueiras”; urbanizando a inexpressiva doca que é hoje o principal cartão-postal da cidade, o Ver-o-Peso, eleito uma das Sete Maravilhas do Brasil, com a instalação, inclusive, do Mercado de Ferro; instalando postos de saúde por toda a urbe e criando o primeiro Serviço de Verificação de Óbitos e Necrotério (no Ver-o-Peso); instalando serviços de Vigilância Sanitária e Epidemiológica que foram, no País, modelares; qualificando e elevando ao primeiro plano seu jornal, a Província do Pará, à época o terceiro mais importante da imprensa nacional, para o qual ele ergueu moderníssimo e equipado prédio, que o povo chamava “Palácio da Imprensa”. Tal padrão lemista de modernidade urbanística recebeu mesmo o reconhecimento de Pereira Passos, reformador prefeito carioca, em 1904: “Começo a fazer na minha cidade o que Vossa Excelência já fez na sua”.
     Por tudo que apresentava, então, Belém destacava-se como uma das mais importantes e belas capitais do País, a tal ponto que muitos viajantes ilustres que por cá passaram deixaram assinaladas, sob formas diversas, suas impressões sobre a cidade, tais os encomiásticos e auspiciosos conceitos expendidos por Osório Duque Estrada, intelectual multifário e inspirado poeta, autor dos primorosos versos de nosso Hino Nacional, membro da Academia Brasileira de Letras, no livro “O Norte (Impressões de Viagem), de 1909, com anotações e apontamentos recolhidos de longa jornada empreendida ao setentrião brasileiro: “Por todos os títulos, Belém é hoje a terceira cidade da República: pela sua beleza natural, pelas grandes avenidas que a cortam em todas as direções, pela amplitude de suas praças, pelos seus ataviados jardins, pelo conforto da vida que ali se passa, nenhuma outra pode competir com ela, com exceção apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo”. E remata: “Belém é, igualmente, uma cidade limpa, arejada, com defesa higiênica, bem policiada, com hábitos de elegância e conforto, habitada por uma população inteligente e laboriosa, que sabe resistir, desassombradamente, às inclemências do clima e aos contratempos da fortuna”.
     Pertinentemente cabe, ainda, aludir às sentimentais considerações que faz Mário de Andrade, ao seu amigo, poeta Manoel Bandeira, em carta escrita na 3ª década do século recém-findo: “Manu, não sei que mais coisas bonitas enxergarei por esse mundo de águas. Porém me conquistar mesmo, a ponto de ficar doendo no desejo, só Belém me conquistou assim. Meu único ideal, de agora em diante, é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquele terrace em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí. Você que conhece o mundo, conhece coisa melhor do que isso? Me parece impossível. Olha que tenho visto coisas bem estupendas. (....). Porém, Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra! Quero Belém como se quer um amor”.
     Contudo - e sem ponta de dúvida - é o insuspeito depoimento do jornalista e escritor Euclides da Cunha que nos dá a exata medida do cenário que ele vislumbrou em sua passagem por este burgo tropical no albor da centúria passada. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras, autor do célebre “Os Sertões” seu opus magnum, em carta que escreveu a seu pai, em 1904, de passagem por Belém, rumo ao Acre, em missão do Itamaraty, tomado de arroubos pelas belezas desta urbe, assinala: “No Pará tive uma lancha especial oferecida pelo senador Lemos e alguns rapazes de talento. Passei ali algumas horas inolvidáveis – e nunca esquecerei a surpresa que me causou aquela cidade. Nunca São Paulo e Rio terão as suas avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes. Não se imagina no resto do Brasil o que é a cidade de Belém, com os seus edifícios desmesurados, as suas praças incomparáveis e com a sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa. Foi a maior surpresa de toda a viagem. Na volta hei de demorar-me ali alguns dias”.
     Euclides da Cunha desembarcou em Belém em 26 de dezembro de 1904 e em sua curta estada aqui visitaria o Museu Paraense e o jornal A Província do Pará, que dessa passagem fez registro na edição de 27 de dezembro de 1904. Trazia uma carta do amigo (paraense de Óbidos radicado no Rio) José Veríssimo para Emílio Goeldi, diretor do Museu. Ali o escritor passaria horas de deslumbrantes descobertas ao lado de Goeldi e do botânico Jacques Huber.
     “Saltei em Belém. E a breve trecho achei-me naquele Museu do Pará, onde se sumariam as maravilhas amazônicas. Lá encontrei dois homens: Emílio Goeldi, que é um neto espiritual de Humboldt, e o Dr. Jacques Huber, menos conhecido, botânico notabilíssimo, bem que nada nos recorde dessas figuras oleográficas de sábio saxônio, de faces engelhadas e ralas farripas melancólicas. (...). Atravessei a seu lado duas horas inolvidáveis e ao tornar para bordo levei uma monografia onde ele estuda a região que me parecera tão desnuda e monótona. Deletreei-me a noite toda e na antemanhã do outro dia uma daqueles glorious days de que nos fala Bates, subi para o convés, de onde, com os olhos ardidos de insônia, vi, pela primeira vez, o Amazonas... Cunha, E.: “Contrastes e Confrontos” (1907).
     Mais tarde, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ocorrida em 18 de dezembro de 1906, Euclides punha em belas traças alguns acontecimentos desse encontro com a capital parauara: “Há dois anos entrei pela primeira vez naquele estuário do Pará, ‘que já é rio e ainda é oceano’, tão inseridos estes fácies geográficos se mostram à entrada da Amazônia. Mas contra o que esperava não me surpreendi... (...). Afinal, o que prefigurava grande era um diminutivo: o diminutivo do mar, sem o pitoresco da onda e sem mistérios da profundura...”. Mais à frente, impressionado pelo que vira no Museu Paraense, referir-se-ia ainda às “maravilhas de um dos mais notáveis arquivos do mundo. Mais tarde, e talvez pela imprensa, direi a minha impressão integral”. São apontamentos irretorquíveis externados "currente calamo" do próprio punho do atilado e preclaro autor acadêmico.
     Não era menor o fascínio que Belém exercia nos campos das Artes, das Letras e da Música. Vivia-se o glamour da Belle Époque, hoje de nostálgica memória e tudo se fazia mercê do fastígio da borracha e da precedente abertura dos portos da Amazônia à navegação internacional. O rush gomífero era o fundamento e o sustentáculo do bem-estar material e das finanças prósperas do Estado.
     Com o declínio da produção e comercialização da hevea amazônica iniciou-se também, pari passu, a queda de importância, desenvolvimento e de prestígio de nossa metrópole, conquanto ainda apresentasse, por muitos anos, o viço, a beleza e a “gostosura” daqueles bons tempos, obtendo certas conquistas que a elegeriam Metrópole da Amazônia, continuando a exibir ares de cidade civilizada, com suas ruas conservadas, praças bem cuidadas, arborização cuidadosamente tratada, com podagens periódicas e remoção de parasitas. O trânsito fluía ordenadamente e sem pontos de grandes conflitos. Havia segurança nas ruas e nelas se podia transitar tranquilamente a qualquer hora do dia ou da noite. Pode-se afirmar que a violência cingia-se aos “ladrões de galinha” e “descuidistas” ou a um que outro distúrbio provocado por excesso alcoólico nas tascas da periferia.
     O povo era feliz e divertia-se a valer nos “arraiais” e “quadrilhas” da quadra junina, com os grupos de pastorinhas, os “pássaros” e “bumbás” e o carnaval de rua era autêntico e espontâneo, sobressaindo os blocos de “sujos”, os mascarados solitários, as escolas de samba com suas “sambistas” que empolgavam os assistentes das “batalhas de confete”.

------------------------------------------------
Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
serpan@amazon.com.br - www.sergiopandolfo.com
Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 07/08/2009
Reeditado em 20/03/2012
Código do texto: T1741617
Classificação de conteúdo: seguro