JOSUÉ MONTELLO: SÍNTESE DO ROMANCE

Um escritor não se imortaliza pela atividade irrestrita ou pela produção maciça e cosmopolita, mas por algumas peculiaridades manifestadas no decorrer do ofício e consolidadas aos poucos, no exercício pleno da criação artística. A consolidação de estilo maduro – de trânsito fácil que vai do romance à memorialística, passando pelo jornalismo, pela crítica e pelo ensaio – faz de Josué Montello um paradigma para quem deseja um romance de fôlego.

Embora desconhecido do grande público, Montello integra o seleto grupo que, nas palavras do crítico literário Wilson Martins, possui qualidade, mas que ainda não foi lido e analisado adequadamente.

Elegemos “Cais da Sagração” para esmiuçar um pouco do universo desse imortal da Academia Brasileira de Letras, considerado por muitos o ensaísta definitivo da obra de Machado de Assis, que faz do Maranhão o cenário de algumas de suas obras.

“Cais de Sagração” se passa entre São Luis e – predominantemente – uma cidade litorânea de onde os personagens saem apenas por transportes marítimos. O miolo da narrativa se expande pela linearidade sulcada com grandes lapsos psicológicos de memória, esquecimento e redimensionamento do passado. Além disso, a linguagem serena, amadurecida e firme se quebra salutarmente por intervalos cômicos profundos.

Proprietário de um barco que se movimenta graças à ajuda do vento e aparentemente arredio às novidades mecânicas que poderiam proporcionar mais segurança, mais conforto e mais rapidez às viagens empreendidas, Mestre Severino encarna – numa mistura de sobriedade, de apegos a princípios e de autoritarismo pinçado pelo silêncio – o homem irredutível e machista. As conversas mais complicadas com a família ou com alguns amigos se exteriorizam por monólogos protagonizados pelo comandante do “Bonança” que, por muitos anos, se manteve atado ao trapiche.

O descaso em relação ao barco coincide com o período de prisão. Morando com Lourença, mulher sem grandes atrativos, simplória, acabrunhada e matuta, Mestre Severino adquire a liberdade da meretriz Vanju, que vive em São Luis. De volta da capital, informa a Lourença que se casará na semana seguinte. Lourença naturalmente se enche de felicidade, desconserta-se pela pressa do comandante, pensa em voz alta nos detalhes do vestido de noiva providenciado com uma amiga e, antes de se perder em devaneios, é alertada sobre a outra.

O aviso do enlace matrimonial parece conformar a companheira que, retirando seus pertences do quarto comum, muda para o cômodo contíguo. A aceitação do casamento, por parte de Lourença, e o deslumbramento de Mestre Severino pela meretriz Vanju simbolizam o quadro da condição feminina.

A verossimilhança e a universalidade da cena são rematadas por um discurso do narrador onisciente. Numa situação de beleza e repugnância, Mestre Severino atinge o clímax do machismo ao pensar que nenhum homem poderia se interessar por outra mulher depois de dormir com Vanju.

A vida monótona e sem glamour desencadearia a inquietação numa mulher, outrora festejada e adorada, que perdia os dias folheando revistas velhas e jogando conversa fora com Lourença, convertida em empregada doméstica.

O poder de sedução de Vanju desperta a cobiça dos transeuntes e os ciúmes doentios de Mestre Severino. Desconfiado de suas inclinações e das eventuais trocas de olhares com o promotor que chegara ao povoado, o comandante leva a esposa para uma praia afastada, afoga-a, assume o crime, se entrega à polícia, é processado e condenado e, mesmo na cadeia, passa os dias recomendando a Lourença que providencie uma lápide suntuosa para o túmulo da mulher e que cuide da filha dele.

Um momento de comicidade se dá quando, rememorando os tempos de cadeia, Mestre Severino é comunicado do falecimento do promotor. Quase enlouquecido, convence o carcereiro a abandonar temporariamente suas funções e a buscar o padre. O fracasso do carcereiro angustia Mestre Severino que se debate, mas vencido pelo cansaço, compartilha suas aflições com o clérigo no dia seguinte: a infidelidade de Vanju com o promotor se concretizaria no além.

A filha de Mestre Severino cresce, casa-se com um homem de mar e, antes de o filho se desenvolver, falece. Lourença criará o neto de Mestre Severino que, já fora da cadeia, debilitado pela idade e por problemas cardíacos, resiste aos medicamentos e à escolha religiosa do menino.

A vitória de Mestre Severino – machista autoritário – se concretiza na volta de São Luis: ao acordar depois de intensas dores no peito, testemunha o neto guiando o barco.

O problema da trama fica por conta da linguagem que, se por um lado comprova a capacidade no manuseio do léxico, por outro, enfrenta desatinos na fala de personagens, dando-lhes cultura impertinente.

Apenas pela maturidade da linguagem, pela denúncia social, pela caracterização completa da universalidade e da verossimilhança, “Cais da Sagração” deve ser lido o quanto antes. Uma obra-prima da Literatura contemporânea!

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de novembro de 2009.

Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é crítico literário e tradutor.