O perdão e a hipocrisia

Perdão e hipocrisia são dois atributos opostos que se relacionam com o amor e o ódio, respectivamente. A pessoa que seja capaz de tolerar o outro, não vendo seus erros e defeitos, não é uma hipócrita, mas sim alguém capaz de amar exageradamente e, por conta disso, perdoar incondicionalmente. O que perdoa não é hipócrita. Ao contrário, aquele que declara perdoar, mas está sempre lembrando os erros que o outro praticou, esse é hipócrita por excelência. Deus nos amou dessa maneira e nós também podemos amar assim. Apesar de nossa rebeldia desde os tempos da criação, Ele nos deu o Seu Filho unigênito para ser o nosso redentor, independentemente do que fôssemos, dizendo para aqueles que aceitaram o seu favor, que dos seus erros passados ele não se lembraria mais (Rm 3:10-18; 5:8; Ef 2:8-9; Is 43:25).

O que não perdoa, mata. O homem dominado pelo mal não deseja perdoar. Pelo contrário. Seu desejo é roubar, matar e destruir. Desde que foi expulso do céu, Satanás anda em derredor dos homens com o objetivo de roubar-lhes o coração e, por conseqüência matá-los e destruí-los eternamente no lago que arde com fogo e enxofre. O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. São esses atributos que o Maligno vê no homem, de forma que, ao atacá-lo, ele está atacando a Deus, o seu Criador. Eva foi apenas a sua primeira vítima humana, sendo sucedida por Adão e milhares de outros que também se deixaram enganar e encheram o seu coração de ódio e rancor, endurecendo-o de tal maneira, que perderam a capacidade de perdoar até mesmo aqueles com quem viviam a intimidade do lar (Jo 10:10; Ap 12:12; 2 Co 11:3; Rm 5:12; Ap 19:20; 20:10, 14, 15; Ap 14:9, 11).

Há diversos exemplos na Bíblia sobre o perdão e a hipocrisia. Destacamos três: a mulher adúltera; os duros de coração que queriam dar carta de divórcio e repudiar; e o ladrão da cruz a quem Jesus levou ao Paraíso (Jo 8:1-11; Mc 10:2-9; Lc 23:39-43).

Os homens com o coração cheio de ódio, de vingança e de violência queriam matar a mulher que nunca lhes fizera mal algum. Quem é o homem que se salvará por seus próprios méritos? Nenhum se salvará. Na verdade, somos seres insignificantes que pensamos ser alguma coisa nesse mundo. Achamos que somos melhores que os outros, de quem destacamos todos os erros e defeitos, como se fôssemos puros e imaculados. Vemos o argueiro (pequena aresta, corpúsculo ou coisa insignificante) no olho do outro, mas não enxergamos a trave (peça de madeira, metal ou betão, grossa e comprida, sobre que assentam as peças mais delgadas que sustentam pavimentos ou telhados) que está no nosso. Isso é hipocrisia, diz Jesus. Isso não é amor. Aquele que mata ou destrói não ama. Quem ama busca a reparação, a correção e o esquecimento completo do que se passou. O perdão, tal como o pagamento repara a dívida. O que ama é aquele capaz de perdoar, de esquecer e tocar a vida para frente como se o desvio de percurso não houvesse acontecido. Isso é amor, apesar de muitos dizerem que é hipocrisia. Neste caso, Deus seria o maior de todos os hipócritas, porque fez vista grossa aos nossos pecados, aceitando a morte de Jesus como um sacrifício válido para resgatar da perdição eterna todos os que alegassem esse fato em seu favor.

A lição de Jesus foi clara: que julgue aquele que esteja em condição de julgar, se é que alguém tenha atingido esse grau de perfeição. É de destacar que o apóstolo Paulo, cuja vida espetacular todos nós conhecemos, disse ao fim de sua vida que não julgava haver alcançado a perfeição, embora prosseguisse com essa intenção, ao tempo em que conclamava a todos para que tivessem esse mesmo sentimento. Em última instância, se tivermos exercer a função de juiz, sejamos moderados, sensatos e prudentes, fazendo nosso trabalho com amor, visando a recuperação do infrator e não a mera vingança. (Sl 8:3-4; Mt 7:1-5; Fp 3:12-15).

Aquele que não é capaz de amar e que endureceu o seu coração, a este foi dado permissão para que repudiasse o que errou. Mas ele não se beneficiaria espiritualmente dessa permissão. O reino dos céus é somente para os discípulos de Jesus. E esses são aqueles que conseguirem amar aos demais, perdoando-lhes da mesma maneira com que Deus os perdoou. Na verdade, o repudiado é muito mais beneficiado que o repudiante, pois se vê livre de uma pessoa que não o ama e provavelmente nunca o tenha amado, que o rejeita e que se acha melhor do que ele. Deus aprecia aquele que tem um coração grande e generoso. Veja quão dura é a crítica feita àquele que quer decidir sobre o que Ele deve e como deve fazer. Deus lhe diz: porventura não tenho o direito de fazer o que eu quero com o que é meu? Jesus estaria errado por querer dar o paraíso ao malfeitor que foi crucificado ao seu lado? É evidente que Deus não vai se tornar um ser mau, simplesmente porque nós temos dureza, maldade, ódio e rancor no coração. Deus é amor, como também nós, os seus discípulos devemos ser, perdoando e buscando a convivência pacífica e harmônica com todos (Jo 13:34-35; Mt 20:1-16, especialmente o versículo 15).

Por último, é de observar que o homem pode ser mau, mas no seu íntimo ele foi criado como social. Ao declarar não ser bom que ele vivesse só, Deus o definiu como um ser social por natureza. Mesmo que em sua individualidade ele seja reconhecidamente mau; em que pese seja do tipo hipócrita que dá com uma mão e tira com a outra, pedindo a devolução do favor que fez no exercício da política do “toma lá, dá cá”, ainda assim ele é um ser social que se preocupa com os demais. Intimamente ele sabe que se não tiver um bom relacionamento com o semelhante, poderá ficar só nos momentos em que mais precisar de ajuda. Dessa forma, ainda que tenha aparência de hipocrisia, tais atitudes naturais apontam para a melhor das virtudes que Deus colocou no homem: a capacidade de amar o próximo, de perdoá-lo quando afligido por ele e de fazer-lhe o bem quando todos lhe tiverem virado as costas. E isso não é hipocrisia. A disposição para fazer o bem é uma lei divina impregnada em todo ser humano. Ainda que seja mau, cada homem é vocacionado por natureza para a prática do bem, o que significa ser capaz de perdoar, de amar e de conviver com os demais. Cf. Gn 2:18 (decisão de criação da mulher); 8:21 (avaliação divina do homem depois do dilúvio); Mt 7:11; 12:34 (os homens são maus).

Desse modo, ao invés de pautar nossa conduta pela prática do julgamento dos erros de nossos semelhantes, embainhemos a nossa espada e busquemos desenvolver a capacidade de perdoar. Que o julgamento seja a exceção das exceções e ainda assim feito com muita ponderação. É de ver se a possibilidade do perdão ou da reparação não existe mais. Existindo, esse deve ser o caminho. Não olvidemos de que Deus nos deixará de fora de seu paraíso se não formos capazes de perdoar o próximo. O céu é para aqueles que, amados por Deus, também aprenderam a amar. Perdoar o próximo não é ser hipócrita. A hipocrisia consiste em não perdoar e achar que tudo esteja bem. Que Deus esclareça melhor aos que pensam de forma diferente (Mt 6:12; Lc 6:38; Mt 18:23-35; Fp 3:14).