Uma análise por Um Copo de Cólera de Raduan Nassar

Um copo de cólera tem uma divisão singular. A primeira parte, denominada A chegada, é o encontro do narrador com sua companheira na casa do 27. Ele, indiferente como um tomate; ela, impaciente e desejosa. Ambos vão para o quarto. A segunda parte, A cama, começa com a entrada de ambos no quarto. Ela o observa ainda impaciente. Ele tira os sapatos e meias. Sabe que os seus pés são atrações para a companheira. Vê que ela vai para o banheiro. Ele tira a roupa rapidamente. Deita-se. Pensa em lances maníacos dos dois em atos amorosos. Ela volta de mansinho. Ele sabe que ela vai começar tudo pelos pés. A impressão que se tem é de um narrador sufocado, aprisionado no seu mundo, necessitando urgente da retomada do controle sobre o outro. É como se o doador, consciente da sua condição, passasse a não aceitar o fato de ser escravo do ato de ser o assistente. Isso fica evidenciado na terceira parte. Em O levantar, cinco e meia da manhã ele diz que vai pular da cama. Ela entrelaça-o, ele foge da trepadeira. Vai até a janela e recebe a brisa da manhã. Ela novamente se enrosca nele e os dois vão para o banheiro. Ele sabe que ela tem necessidade daquilo, principalmente, necessidade dele. Mas não seria ele o mais necessitado? Talvez. Mas o fato é que o narrador se sente perdido como um objeto que possui e não se vê como objeto possuído. Na quarta parte, O banho, ela o lava detalhadamente. Suas mãos tomam posse do seu corpo. Enxuga-o, veste-lhe as roupas. É objeto possuído, pura doação. Já na quinta parte, O café da manhã, ela se senta numa cadeira de vime e ele abre as cortinas. Pede a dona Mariana o café. A mulata caseira o faz em silêncio. Ela, a amada, começa a perceber uma transformação no seu comportamento. Pura repulsão. Pergunta-lhe o que tem. Ele não responde. Sente o cheiro do café e pensa no primeiro cigarro do dia. Aqui o cenário está pronto e a cólera começa o seu manifesto.

Na penúltima parte, O esporro, durante o fumar do cigarro, surge a alavanca que alimentará a repulsiva: um rombo na cerca-viva feito pelas formigas. Desceu escandalosamente a escada em direção ao local. O ato chamou a atenção. Bingo, o cão, já o aguardava no pátio antes da reação. Desesperado, procura o caminho que o levará ao formigueiro. Irritado, detona veneno nas saúvas. Em seguida, vê as duas mulheres conversando no pátio. Enquanto isso, no quartinho de ferramentas, aproveita para tomar “outros venenos”. As mulheres não conversavam mais e ele deseja esbofetear a jornalista. Ela o chama de “mocinho”, de forma irônica, mas ele não lhe dá atenção. Transtornado, pergunta a dona Mariana onde estava seu Antônio, exigindo o cumprimento do horário de trabalho. Tudo isso aos gritos. Dona Mariana se afastou e a amada o chamou de “fascista”. Ele devolveu com “jornalistinha de merda” e a cólera imperou. Não demorou muito para que o bate-boca se tornasse notório, digno das mais baixas categorias. Trocas de acusações, ironias, imposições, cobranças e gritos, acentuados pelo latido de Bingo. Não demoraria a descambar em pancadaria. Ela, já no carro, é esbofeteada por ele. É o ápice da cólera. A força se impõe, a razão se esmaece. Mas é temporária. Ela vai embora e ele desaba num choro convulso, amparado por dona Mariana e seu Antônio. Revela-se, pois, o dependente. Cai a máscara do suposto dominador, efetivamente carente, perdido no mundo moderno do relacionamento rotineiro, que nunca nos permite ir além do possível.

Mas a cólera é terapia, quebra de página, combustível para o recomeço. O inaceitável é viver só. Sempre há possibilidade de um novo recomeçar. A última parte do livro é uma alegoria desse reinício. Em A chegada, o ciclo é retomado. É ela que retorna, porque é também dependente. Agora é a narradora que vai à casa do 27. O portão está aberto, o cachorro é o mesmo e há partes do amado espalhadas pelo chão como partes de um quebra-cabeça. Ela vê um bilhete: “Estou no quarto.” . Como se juntasse tudo, vai ao quarto e ele dorme um sono fingido de menino. É a cela dela. Melhor, de ambos. Estão presos num jogo insano e bestial, mas sem saída. Para vencer a solidão, a dependência mútua se faz até que, como se supostamente do nada, imponha-se uma certa dose de cólera ou um copo cheio.