O conto e a crônica em Chico Buarque

CONTO E CRÔNICA

O ensaio a seguir trata-se de um estudo sobre dois gêneros literários prosaicos: o conto e a crônica. Iremos observar suas estruturas, características, elementos que os diferenciam um do outro e, para tal realização, recorremos a leituras de teóricos que trabalham em cima da descrição e da distinção desses gêneros. A fim de complementar esse estudo escolhemos um exemplar de cada gênero para analisar e usá-los como meio de exemplificar o que há de comum e o que diferencia um gênero do outro.

Na primeira parte faremos a descrição de cada gênero, primeiramente a crônica e, posteriormente o conto, definindo-os através dos elementos que os constituem. Na segunda parte iremos à análise dos textos escolhidos, a crônica “fotonovela”, publicada no Jornal Santa Cruz do colégio de mesmo nome, e o conto “Ulisses”, informado no livro de Gilberto de Carvalho e disponível na internet, ambos do cantor, compositor e escritor carioca, Chico Buarque. Nesta análise mostraremos as distinções entre um gênero e outro, mas recorreremos aos textos escolhidos para fazer tais diferenças.

• CRÔNICA

A palavra crônica deriva do grego “chronikós” que significa algo relativo a tempo e era usada, geralmente, para a narração de fatos que seguissem uma ordem cronológica. A crônica tem como característica principal a descrição das relações cotidianas; ela parte de experiências do autor, sejam vividas ou apenas testemunhadas, e trata-se, na verdade, de uma narração do dia-a-dia das pessoas, mas não de maneira jornalística, como uma matéria de cunho meramente informativo. Por ter esse caráter de “narração do cotidiano”, a crônica é um texto mais característico de publicação em jornal. Ela é um meio termo entre o jornalístico e a literatura, com cita Massaud Moisés: “A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia.”. (MOISÉS, 2008. p.104)

A crônica parte do acontecimento mais simples do dia-dia e “reconta” e “recria” sua história, mas não simplesmente relatando o fato, ela recorre ao uso de metáforas e outras figuras de linguagem para contá-lo, o que a aproxima da prosa de ficção, e é neste ponto que ela deixa de ser relato jornalístico e passa a ser literatura.

Outra característica do gênero em questão é a forma mais solta que o autor usa para contar sua história. O cronista é mais livre e não recorre a construção adensada de personagens, espaço e tempo, ao contrário do que faz o contista, como veremos mais a frente. Na crônica, que quase sempre tem um caráter autobiográfico e confessional, o narrador é o próprio autor e não um personagem, o que acontece nas outras formas de prosa (conto, novela e romance), é o que afirma Sá: “(...) quem narra uma crônica é o seu autor mesmo, e tudo o que ele diz parece ter acontecido de fato, como se nós, leitores, estivéssemos diante de uma reportagem” (SÁ, 1997. P.9). As personagens das crônicas são levemente caracterizadas, geralmente são as próprias pessoas do cotidiano, que serviram de inspiração para o autor, e aparecem, na grade maioria, sem nomes e com alguma característica marcante que os defina (o gago, o manco, o vesgo, etc.).

Uma crônica não apresenta um conflito central, gerador de toda a trama, e quando há a presença de um conflito nela, este conflito é leve e não tem tanto peso na história quanto tem num conto. O que ela mostra é uma análise das circunstâncias de um fato, mas sem concluir essa análise, porque isto cabe ao conto. Outro elemento que é presente na crônica, mas de forma diferente no conto, é o diálogo. Este aproxima um gênero do outro, mas o que os difere é o modo como aparece, na crônica ele surge em forma de bate-papo, algo descontraído, com a linguagem coloquial, característica das personagens que assumem uma oralidade das ruas.

• CONTO

De acordo com Masaud Moisés, uma das origens do significado da palavra conto seria uma derivação de contar, do lat. computare, mas ao longo do Romantismo, o vocábulo era usado com o sentido de narrativa popular e apenas no fim do século XIX, com o Realismo que o conto cresceu, ganhou espaço e requinte formal.

O conto trata-se de uma narrativa linear e breve e tem como uma de suas características a unidade de ação, ou seja, uma sequência de atos e acontecimentos da qual participam os protagonistas (personagens), e esses acontecimentos apresentam como espaço, geralmente, um único lugar. Dificilmente as personagens circulam entre outros ambientes que não seja o central, onde a trama se desenrola, é o que afirma Moisés:

“Raramente os protagonistas se movimentam para outros lugares. E quando isso ocorre, de duas uma: ou a narrativa tenta abandonar sua condição de conto, ou o deslocamento advém de uma necessidade imposta pelo conflito que lhe serve de base, constituindo a preparação da cena, busca de pormenores enriquecedores da ação, etc.” (MOISÉS, 2006. p.43)

Outro elemento importante do conto é o tempo. Os fatos ocorrem num curto espaço de tempo, em horas e não interessa o passado e o futuro, apenas o momento presente, o momento do desenrolar dos episódios. No conto, a cronologia é o relógio.

O seguinte gênero ainda apresenta outros elementos que o distingue da crônica, como as personagens e o conflito central. Quanto às personagens, não são muitas as presentes no texto, geralmente 2 “ele e ela”, mas estas poucas são construídas de acordo com uma descrição psicológica profunda e o narrador, diferentemente do que acontece na crônica, é também personagem. Em relação ao conflito central, o conto apresenta como núcleo uma situação dramática carregada, onde tudo que acontece é em volta deste drama. O contista forma seu texto com uma célula dramática e uma só ação. Outro componente que define bem o conto da crônica é o diálogo, que é bem mais presente neste gênero que na crônica. Neste, os diálogos podem aparecer de todas as formas (diretos, indiretos, interior) e os conflitos residem neles, pois é através destes que ação se desenrola e as personagens apresentam as causas e as possíveis resoluções para o conflito: “(...) os conflitos, os dramas, residem mais na fala, nas palavras proferidas (ou memom pensadas) do que nos atos ou gestos (que são reflexos ou sucedâneos da fala)”. (MOISÉS, 2006. p.54)

• FOTONOVELA

Fotonovela conta a história de duas amigas de dezoito anos, Tereza e Taís, que faziam o famoso curso de “espera marido”, até que Alarico, rapaz de 25 anos e padrão do príncipe encantado, entra na trama para formar, assim, o triângulo amoroso.

A princípio Alarico namora Taís, mas o namoro de ambos causa ciúmes em Tereza que, na verdade, ama Taís. E esse ciúme faz com que Alarico mude de namorada e de amiga, o que cria uma espécie de “quadrilha” drummoniana onde Alarico ama Tereza, que ama Taís, que ama Alarico. Mas Taís, com “dor-de-cotovelo” por ter sido trocada, tenta acabar o romance, o que faz com que Alarico traga à história seu primo Belmiro, na tentativa de fazer com que ele afaste Taís de Tereza. A idéia de Alarico não surte efeito e sai da trama tão rápido como entrou assim como seu primo Belmiro. Quanto a Tereza e Taís, permanecem amigas, assim como no início da crônica.

Fotonovela, apesar de ser classificada pelo autor em certos momentos do texto como conto e como fotonovela, é de fato uma crônica. O primeiro elemento ao qual recorremos para classificá-la como crônica é o relato do cotidiano, já que toda a história narra o dia-a-dia das duas jovens, e essa narração não tem caráter jornalístico, mas sim meramente informativo. Outra característica que nos permite classificar fotonovela como crônica é a forma livre que o autor usa para contar a história. Os personagens não têm uma forte descrição psicológica, nem o espaço nem o tempo são delimitados. Ao contrário da grande maioria das crônicas, esta apresenta um número relativamente grande de personagens (quatro) e estes têm nome (Tereza, Taís, Alarico e Belmiro), mas nenhum apresenta uma densa descrição, só sabemos o nome, a idade e o grau de parentesco deles, ou seja, nada mais que nos permita uma análise psicológica dos quatro. Já o tempo e o espaço, são bem característicos de uma crônica. O tempo é o presente, sem importar o dia, ano, década, ou qualquer outra marcação temporal, e o espaço não é delimitado; não sabemos onde a ação acontece e o autor não usa elementos textuais que o definam.

O conflito, ou melhor, a ausência dele é mais um elemento que caracteriza fotonovela como crônica. Mesmo havendo um triângulo amoroso e uma “quadrilha drummoniana” na trama, podemos ver que ao longo de toda a história há uma análise das conseqüências deste fato e não a análise do conflito em si, o que cabe ao conto. E quanto ao narrador, este é o próprio autor da trama, como podemos ver nos seguintes trechos:

“Confesso que, por infelicidade, meu continho vai tomando um ar de fotonovela. Quem não gostou pode ir ficando por aí, que ainda tem mais” (2º parágrafo).

“Por fim, ainda ousa introduzir ao conto um quarto personagem e isso, protesto, sem a autorização do próprio autor” (6º parágrafo).

“E eis-me aqui desanimado, desorientado, desclassificado até como fotonovelista, com um personagem a mais em meu conto, e um ponto a menos em minha auto-cotação” (7º parágrafo).

Há, ainda, nesta crônica, a presença de um pequeno diálogo que nos serve como mais um elemento para defini-la como crônica. A conversa entre Tereza e Taís, além de curta, é um retrato do coloquialismo presente no “bate-papo” delas (o uso de expressões como “chutei ele” da forma verbal reduzida “tá”), representando a oralidade das ruas no texto, o que nos permite perceber o quanto fotonovela é crônica e não conto, como diz o próprio autor no decorrer da história.

— "Porque eu não sei como é que você pode suportar o Alarico. Só fala de automóveis, não sabe o que é casamento... Eu não agüentei, chutei ele".

— "Mas ele diz que foi ele quem te chutou".

— "Tá vendo, além de tudo não tem caráter".

• ULISSES

Ulisses trata-se de um conto que tem uma intertextualidade com a Odisséia, famosa epopéia do poeta grego Homero e conta a história do personagem, cujo nome dá título à obra e que, ao contrário daquela da Odisséia, não é herói e sim um mero trabalhador sem histórias fantásticas para contar.

A história se desenvolve em torno do fato de Ulisses ter voltado do trabalho e sua mulher Penélope o espera tricotando, em analogia com a grega que espera seu marido bordando. O homem imagina que ao voltar para casa sua mulher o espera ansiosa, mas quando chega ele a vê imóvel como uma estátua, com exceção das mãos que permanece a tricotar. Então Ulisses começa a conversar com Penélope, que permanece inerte (uma vez que ela espera que ele volte contando os fatos heróicos pelos quais passou durante este período) o que vai causando a ira dele. Neste momento ele começa a contar seus sonhos, já que só neles ele pode ser herói, mas ainda assim, Penélope permanece mergulhada em suas “imagens” sobre seu Ulisses.

O conflito central que permeia a trama é o fato de que Penélope espera um Ulisses que não existe e toda esta história gira em torno de dois personagens (ele e ela). Estes são construídos num viés psicológico, a mulher reclusou-se em seu interior e lá continua para criar um marido que não existe. Quanto ao marido, infeliz e “derrotado”, depois das várias tentativas de trazer a mulher de volta, decide adormecer e, quem sabe, a encontrar num mundo de sonhos onde ela se encontra. Temos ainda a figura do narrador, que na crônica é o autor e neste conto assume apenas a figura de narrador, sem relação com o autor: “Ulisses chega de galochas, barba por fazer, embrulho fofo, paletó triste... Mas Ulisses chega de braços enormes e eufóricos”.

Podemos ainda caracterizar Ulisses como conto de acordo com o cenário. Toda a narrativa se desenrola num único espaço, a residência do casal, permanecendo as personagens em um único ambiente. Outro elemento importante para defini-lo é o tempo, a trama toda é desenvolvida num curto espaço de tempo, o momento em que Ulisses volta para casa, sem importar o que aconteceu antes ou o que acontecerá depois. Temos ainda a presença marcante de diálogos, apesar de só o homem falar e a mulher permanecer calada tricotando. Estes surgem em forma direta: “- Penélope, ô Penélope! Abre os olhos e as janelas! Abre o peito, minha princesa, que teu rei chegou!” / “- Eh, Penélope, quanta viagem, quanta luta... Mas veja só!”.

• ULISSES E FOTONOVELA

Com todos esses elementos podemos definir, claramente, Ulisses e Fotonovela. Tratam-se de textos com estruturas, formas e elementos que o distinguem e o diferenciam, permitindo-nos classificá-los como prosa, mas prosas de gêneros distintos, Ulisses é um típico conto e Fotonovela uma típica crônica.

Enquanto em Ulisses as personagens são carregadas de uma carga dramática e de uma descrição e ação psicológica, em Fotonovela elas são simples, sem apresentar nenhuma destas descrições. Mas o elemento mais marcante na distinção de ambos é o conflito presente na trama do conto e ausente na crônica. Ulisses tem uma carga dramática na ação (o fato da mulher se reclusar diante do marido “não-herói”), enquanto Fotonovela apresenta apenas um fato simples e corriqueiro de onde o autor se baseia para escrever. O narrador também é de suma importância para a distinção, na crônica temos o autor como narrador (o próprio Chico Buarque) e no conto o narrador é um personagem, sem relação alguma com o autor.

• REFERÊNCIAS

CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. 2ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.

http://www.chicobuarque.com.br/texto/artigos/mestre.asp?pg=artigo_bau.htm (acessado em 21/10/09 às 15:41).

http://colecionadordeletras.blogspot.com/2009/06/ulisses-chico-buarque.html (acessado em 25/10/09 às 19:37).

MOISÉS, Massaud. A criação literária – Posa I. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

MOISÉS, Massaud. A criação Literária – Prosa II. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

SÁ, Jorge de. A Crônica. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1997.

Roberta Cavalcanti
Enviado por Roberta Cavalcanti em 20/01/2010
Código do texto: T2041634
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