Em campo minado em pleno carnaval

Se existe um grupo de pessoas que vivem em puro sofrimento na “época da carne e do profano” é o grupo dos jurados de escolas se samba. O leitor folião, amante e torcedor, o qual por vezes ameaça o “jurado de morte” não sabe o que se passa nas entrelinhas da festa. Por aqui vou relatar grosso modo esse ciclo de convite, preparo, espera, trabalho fora de casa e conclusão.

O período de véspera de um carnaval é bastante estressante e cansativo para o jurado. Em geral, ele julgou a festa do ano que passou e se há um acontecimento que presidente de escola e carnavalesco não esquece é a nota que o “fulano de tal” deu à sua escola. Na maioria das vezes, ele a deu com razão, pois digo de carteirinha, há coisas que somente o jurado vê, pois ele está ali para isso. E como já disse em outra oportunidade: "quem faz não tem o direito de julgar". E quem julga tem por função e ética apontar o erro e punir. De qualquer forma, a véspera de um carnaval para o jurado começa lá em meados do mês de outubro, período no qual telefones e emails entopem sua casa. Quando não, ele já sabe que está sendo preterido por fazer ou deixar de fazer o seu trabalho. Dito de outra forma, não tem como avaliar o como foi entendido o julgamento: o que ele viu ou deixou de ver, e isto sem dizer que dependerá muito do local no qual ele se encontrava naquele ano no sambódromo. Digo da cabine porque uma condição é ficar na cabine no início do sambódromo, outra é estar no meio ou no final. Esse calvário termina quando chega o convite, os telefonemas, os contratos e o jurado sabe que vai trabalhar.

O segundo movimento do ciclo é o de preparo. Nesse período, pelo menos nos carnavais mais organizados e sérios, um sujeito, responsável pelo corpo de jurados, é contemplado com o difícil trabalho de enviar enredos, samba-enredo, notícias, detalhes do quesito, passagens, informações de contrato, questões não resolvidas de carnavais passados, problemas que podem ocorrer no carnaval em tela e assim por diante. Neste preparo, alguns sofrem mais por levar o carnaval mais a sério, outros menos, seja por experiência, seja por incompetência mesmo. Há casos de jurados que dormiram em cabines e casos de companheiros que sequer leram o enredo ou escutaram o samba da escola. Não vou dizer que chega a ser um trabalho prazeroso. O jurado trabalha com uma navalha no pescoço. Imaginem retirar pontos de uma agremiação que desfilou com 2000 ou 5000 integrantes? E quando se tiram pontos daqueles que se acham os donos da verdade? Conta-se entre os mais experientes que ameaças de morte e até processos rolam no meio. Contudo, tal como é a vida, temos que arriscar e exercitar a coragem. O mais importante é a beleza do carnaval. Importante frisar que este preparo se dá em casa. Logo, é trabalho não computado, com mais valia e tudo, mas de uma alegria sem tamanho, porque permite ver o quanto é belo a arte, o teatro, a criatividade e a alma dos seres humanos.

O período da espera é por demais interessante. Já em lugar em separado, longe da imprensa, após enfrentar horas de ônibus ou de avião, o jurado "espera". Esta condição pode ser dolorosa. Alguns lugares tendem a “preparar” alguns jurados: cursos são dados, vídeos passados, explicações oferecidas, variações culturais, quesitos retirados ou inseridos são discutidos. Dúvidas também são sanadas e, longe de qualquer comunicação, de familiares e amigos o jurado é enclausurado tendo somente o outro, de quesito estranho para se informar, conversar ou passar o tempo. Detalhe importante é o cuidado para não vazar informações, evitar empatias por agremiações, não falar em locais públicos e com seguranças ou pessoas desconhecidas por perto. A fase da espera é repleta de adrenalina. Para uns a temporalidade não tem fim. Para outros, o tempo voa, a espera é curta e o sofrimento é certo. De qualquer forma, faz parte do ritual: por vezes se tem uma grande conversa com o presidente da liga. Em outras ocasiões, todos - ou a maioria - os presidentes das escolas querem conversar ou mesmo perguntar coisas ao jurado na clara tentativa de pegá-lo pelo pé, envergonhá-lo ou desclassificá-lo. É sabido de casos de profissionais muito bons que, frágeis emocionalmente, esqueceram do capital cultural construído por anos e se calaram em frente a uma voz forte e firme. Infelizmente, acaba-se perdendo um bom jurado. Mas parece que faz parte do jogo, uma espécie de guerra de emoções que chega a cansar o espírito, principalmente, quando presidentes - seguidos dos seus - resolvem “sortear” quem vai julgar. Não existe sentimento pior que ser preterido depois de um duro e longo trabalho. Podem falar que foi o “sorteio”. Mas o sorteio não tem nome tampouco justificativa e acaba por dar um adeus a um sábio e a uma preparação de meses contínuos feito de alegria e dedicação. Uma saída saudável, levada a efeito pelas escolas de samba do Rio de Janeiro foi aceitar todas as notas e desconsiderar a mais baixa, haja vista que todas as agremiações desejam o perfeito e o máximo: a nota 10. Nenhuma quer ouvir nove e meio ou nove vírgula vinte e cinco. Quando tais notas são faladas e repetidas em alto e bom som, podem ter a certeza que é o momento em que a mãe do jurado é mais xingada do que a de juiz de futebol. Contudo, passada a fase dessa espera, após horas de trabalho, em alguns lugares vamos direto para o sambódromo. Um detalhe é digno de nota: amigos se empanturram no jantar, dizem que já passaram fome durante a noite e "saco vazio não para em pé". Outros levam o próprio lanche, comem chocolates, barras de cereais e frutas.

O período do trabalho fora de casa é um conjunto de fatos inevitáveis. É óbvio que diz respeito ao que aconteceu anteriormente. No local de encontro fica-se sabendo de amigos que foram cortados por isso ou aquilo. Amigos que desistiram e outros que não querem mais saber de carnaval devido à pura pressão que o ambiente oferece. Também existe o jogo de saber quem foi o “doido” da nota baixa que rebaixou a escola “fulana de tal” e, por vezes, o coitado do jurado ainda tem que dar explicações para os que nem estavam por lá. O membro do júri é praticamente punido pelos próprios colegas e, inconscientemente, se sente a pior pessoa do mundo, colocando em dúvida o seu próprio julgamento. É uma tortura. De todo modo, o trabalho fora de casa tem algumas fases: a primeira é o lugar no qual o jurado ficará no sambódromo. Chega a ser hilária a provocação durante o transporte e patente o medo do companheiro que vai “sofrer” nas últimas cabines. Explico o porquê: durante a passagem da escola, cerca de 60 a 80 minutos, é fato que no início tudo parece bom e bem. No caminho, a escola por vários fatores, vai diminuindo ou mesmo aumentando a cadência, literalmente perdendo a fantasia, o brilho e a vivacidade. No final, escolas chegam desfiguradas. E digo isso porque – e muitos não sabem – na mão do jurado existe um prospecto explicando cada fantasia, cada ala e alegoria. No final do desfile é difícil uma escola não perder certos pontos aqui e acolá, e perde porque foi penalizada de acordo com o quesito, materializado na ala faltante, no pedaço da alegoria caído, no grupo que resolveu não cantar, no “sicrano” que decidiu descer do carro ou retirar as sapatilhas e parte da fantasia que estava a incomodar. Se o jurado não detectar esses erros será julgado até pelos colegas. Por outro lado, se pegar sabe que vai sofrer retaliações e problemas no final. Ainda bem que, já no conforto e na proteção de sua casa, é que vai ficar sabendo do que aconteceu. Sua mãe, nessas alturas, já foi violentada, sua alma dada ao diabo e o seu trabalho jogado no lixo. Mas poucos sabem que foi ele quem pegou o erro, a incompetência do folião, do carnavalesco e do presidente e, por conseguinte, ainda puniu em favor do público que pagou e foi ao sambódromo assistir a escola do prospecto e não a que caiu no meio do caminho. É forçoso argumentar sobre os jurados que ficam nas primeiras cabines. Eles têm a vantagem de receber a escola descansada, alegre, sem maiores preocupações e muitos erros. Estes passam a noite mais tranquilos, ficam bem acordados e leves quando a escola passa “certinha”.

Uma segunda fase do trabalho fora de casa é extremamente emocional. É de dar pena os membros do júri que não souberam economizar emoções. Suor e pânico envolvem o corpo já na primeira batida do surdo. E lá vêm a primeira escola. Com ela segue a primeira taquicardia, angústia, o soco no estômago, a perda de cabelos, a constipação, sudorese em bicas, coceira, pernas a balançar, canetas a aprontar e olhos vivos, muito vivos. Um mundo de gente e criatividade dá um nós nos neurônios e a pulsação aumenta. O problema é que ela não termina com a passagem daquele “mundo de gente” (duas a cinco mil pessoas), pois chega a hora de escrever, materializar no papel o que não escapou aos olhos e colocar em ordem o rascunho anotado durante a passagem da escola. Os jurados da comissão de frente, do casal mestre-sala e porta-bandeira e bateria são privilegiados. Eles têm somente a ansiedade do pouco tempo que passa o quesito. Os outros dependem de todo o desfile e cada detalhe é crucial para separar o excelente do ótimo. Amigos disseram que após o trabalho foram ao banheiro. Tenho relatos de pessoas que perderam peso, outros que procuraram psiquiatras, alguns preferiram vomitar ou se entupir de cigarros e mais cigarros. O ambiente da cabine é tenso: as costas doem, os olhos ardem, no pescoço está a algema do escravo que desfilou e que representa nossa escravidão. Não estou exagerando: os membros do júri sem economia emocional sofrem muito. A noite não é amiga nesse cenário: aos montes e aos poucos as escolas vão passando. Inicialmente pode-se contar com a presença em massa de um público alegre e gentil. Mas a madrugada é sempre perigosa. Jurados se esforçam para não cochilar. Enchem-se de café e coca-cola. Alguns apostam no chocolate, outros nas frutas e, quando não tem o que comer, vão embora as unhas e pedaços de caneta e lápis. É forçoso dizer, sob pena de represálias. O início é cheiroso e mágico, mas o final da noite, quando o sol rouba a cena e o brilho diminui, a cabine está fedendo a gente sofrida. Um suor e um cheiro sem nome invadem as narinas e a calça branca já suja e os cabelos despenteados são verdadeiros contrastes do que é uma vida digna. Repito, não estou exagerando. É até compreensível, mas não permitido o sono. Jurados viram caminhoneiros, robôs, porque a mente não pode parar. A economia de sentimentos durante todo o dia está no fim e no final damos graças a Deus pelo trabalho bem feito.

Propositadamente deixei um parágrafo para explicar as notas. É na passagem da escola que são computados os pontos. Em geral, é permitido retirar 0,25 dos erros encontrados. É preciso que o erro seja muito grave para a escola perder meio ou um ponto. Como visto, o jurado não é uma pessoa qualquer. Segue ele as regras tácitas e escritas em contrato. E é bom dizer que tanto o presidente da escola como os carnavalescos sabem disso. Por inferência lógica, é claro que eles têm a ciência dos erros de sua agremiação. Por isso, chega a ser perverso o jogo de caça às bruxas que se vê nas apurações. Mas este teatro relacional faz parte do carnaval. Todos o encontram pronto e, diga-se de passagem, encontrava-se presente nos ranchos e blocos carnavalescos do final da década de 20. Há uma variável interessante neste caso, o jurado só fica sabendo da apuração pela televisão ou pelos vários recursos do campo midiático. Logo, as condenações passam longe do seu corpo, mas é inegável que atingem sua reputação e a alma.

É extremamente curiosa a preocupação dos jurados em não errar. Curiosa porque a condição humana sempre nos reserva a dúvida: “Será que posso retirar esse ponto mesmo?”. “É lícito deixar passar aquele sujeito descalço e sem chapéu?”. “Ou aquele grupo que resolveu não cantar o samba atrapalhando a harmonia e a evolução?”. A subjetividade é uma inimiga nessa hora. O medo é arrasador. A maioria dos jurados se apega ao prospecto e aos termos delineados no manual dos quesitos. O pessoal já sabe de cor, mas por experiência, são incontáveis às vezes que novamente os jurados retomam os requisitos que está a julgar. E não percebi outro comportamento. Os membros do júri não desejam errar. Eles querem ser justos e penso que, na dúvida e no pânico nosso de cada dia, eles oferecem a nota 10 pela simples incapacidade ou falta de segurança de bancarem o erro que viram. Todavia, esse jurado é raro e não por isso é um sujeito desclassificado. Um provérbio judeu pode ajudar neste caso, “na dúvida, não faça”. Logo, não é por acaso que temos jurados espalhados pelo sambódromo inteiro. E é boa a existência de certo corporativismo, haja vista que somente quem está na cabine sabe da responsabilidade que repousa nos ombros solitários na noite. Repito, são mais de 2000 integrantes em cada escola. Há julgamentos de escolas de samba especiais e de acesso. Existem locais, no intuito de economizar, que utilizam o mesmo jurado por três ou quatro noites em seguida e já se sabe que o sono do dia não é o mesmo do sono da noite. Não vou explicar a parte biológica da questão, mas posso dizer que dorme-se ouvindo as baterias e os sambas e que estes são companhias durante todo o dia de sono. É uma experiência incrível e maravilhosa, apesar de sofrida e bastante cansativa. Em virtude do que já disse, o medo de errar só é abandonado depois que o jurado escreve a sua justificativa. É isso mesmo: os jurados devem em um papel adequado colocar a nota e justificar o porquê da retirada dos pontos. As justificativas são levadas pelos “executivos do carnaval”. Os “executivos do carnaval” da cidade de São Paulo chegaram a disponibilizá-las na internet. Assim, qualquer pessoa pode lembrar e/ou verificar o acontecido ou - em efeito perverso - odiar mais um pouco o jurado, desejando o pior para sua mãe e o pior ainda para o seu pai. Ironias à parte, o fato é que a cada carnaval o processo se moderniza e a festa fica mais séria, complexa, rica e profissional.

Na última fase do trabalho fora de casa vale frisar a entrega das notas. Um bom montante de representantes vai ao encontro do corpo de jurados e com auditores levam o martírio noturno. A nota foi dada e em dias os foliões e os “executivos”, publicamente, ficarão sabendo do resultado. O seu nome será falado antes da nota. Alguns comentários indevidos de jornalistas que nunca te viram poderiam valer processos por danos morais, mas os membros do júri sabem como é o jogo e tem a ciência que todo ritual será seguido até o fim. Depois da nota falada em alto e bom som, nunca vem os elogios, somente os julgamentos. Daí ser jurado é ser corajoso, é hora de bancar o que escreveu. Aos que gostam de nutrir o peso da dúvida é bom observar os vídeos e acertar na próxima. A população que pagou e foi assistir ao espetáculo não percebeu o equívoco, mas o erro não escapa do olhar atento do jurado. Muitos ficam tristes. Percebem que o companheiro da cabine aliviou por medo de represálias. Em tais casos vale a compaixão e a esperança de dias melhores. Todavia, nunca se deve condenar. Como disse, na cabine as coisas esquentam. Estamos sozinhos e, muitas vezes, nosso julgamento é produto de uma história, a qual pode dar vida ou reproduzir consequências em outras histórias de rixas e conflitos que existem naquele ambiente há tempos. O jurado não pode ser a última lágrima do copo d água. Pelo contrário, o seu julgamento deve ser o início da crítica que ninguém teve coragem de fazer. Deve ser o recomeço em torno da busca da perfeição e do detalhe que passou. Não vejo outra forma.

Já no último período do trabalho do jurado, o qual chamei de conclusão, percebe-se a ressaca, a falta de sono, olhos esbugalhados tal como os anjos de Aleijadinho e o cansaço patente. Amigos vão para a cidade de origem. Uma nostalgia corta o espírito. Em certos locais o corpo de jurado já recebeu pelo seu. Em outros é possível esperar por meses. O final do carnaval é uma tristeza, tal como deve ser o início da quaresma. A finalização do árduo trabalho deixa sempre um gosto de “quero mais”. Ele não dignifica nada, mas cria uma rede de sociabilidade sem igual. Vínculos de amizade são selados e sonhos compartilhados. Aos poucos todos vão para casa deixando para traz a escrita e a assinatura que pode render problemas ou elogios durante todo o ano. O resultado é a já sabida faca de dois gumes: julgar é se envolver e criticar: se a escola errou e o jurado pegou, a conclusão é o arranhar de mãos e corpos. Contudo, acredito firmemente que, na maioria das vezes, aproxima-se da justiça. E se não ganhou a melhor é porque ela deveria ter sido excelente e não ótima. Se ganhou a mais ou menos é porque ela foi ótima , mas não excelente. De tudo isso, há uma explicação e ela não é metafísica. Antes dos gritos histéricos é bom rever os vídeos, conversar sobre o andamento da escola e deixar claro que todo erro é compartilhado e cumpre ao jurado nada mais do que o trabalho, afinal ele foi pago justamente para exercer o direito da crítica, a qual como já disse, não é - por definição e natureza - construtiva. Crítica é reconhecimento e ponto final. Se for para melhorar porque não recebê-la de bom grado? Se não for para o desenvolvimento e melhora do empreendimento, é prudente não colocar o trabalho em julgamento. Como me disse certa criança: "não quer saber! Então não pergunte” e, acredito que, por ressonância, não se arrisque e tampouco viva.

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Lúcio Alves de Barros - Professor de antropologia da educação na UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais). Mestre em sociologia e doutor em Ciências Humanas pela UFMG. Organizador, dentre outros, do livro, “Mulher, política e sociedade”. Brumadinho / Belo Horizonte: Ed. ASA, 2009.