O Processo: Tipologia à Personagem : memórias do subsolo - Dostoiévsk

“Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou.”

(Dostoiévski)

Resumo:

Este artigo científico tem por objetivo a análise de “Memórias do Subsolo” de Dostoiévski. Onde classificaremos e analisaremos a tipologia histórica, apontando suas características como um romance realista; sua tipologia segundo as teorias de Wolfgang Kayser; e a tipologia das personagens segundo Greimas.

Palavras-chaves:

Romance, Realismo, Conflito, Questionamentos, Ideologia, Razão, Sociedade Moderna, Objetividade, anti-herói, individualidade.

Apresentação:

Memórias do Subsolo é uma das obras de Fiodor Dostoiévski de cunho realista, traz como núcleo central um homem deprimido e amargurado, cujo nome não é revelado, que Decide escrever suas memórias e pensamentos para que assim possa ter algum feito na vida.

Inicialmente o protagonista da obra define-se como um homem doente e malvado, porém no decorrer de suas confissões tais afirmações são contrariadas. Revela-se como um homem simples, pois se dizia trabalhar só para comer, não ambicionando grandes fortunas.

Ao receber uma herança inesperada largou o emprego e passou a morar em um quarto no subsolo de um prédio, tendo como única companhia sua empregada, que segundo ele era rude e cheirava mal.

Sofre grande conflito interno, por isso a obra é uma narrativa de tempo psicológico, suas idéias são por vezes contraditórias. Ao mesmo tempo em que critica os homens de ação, aqueles que se moldam de acordo com as normas sociais, confessa sentir certa inveja de suas vidas. No decorrer da obra faz várias indagações tanto quanto a imbecilidade dos homens de ação, quanto à inércia que o impede de ter sido tudo o que já tentou ser. Além de diferenciar o interesse da vontade, como sendo este último o fator distintivo entre o ser humano e o objeto. Pois se a racionalidade chegar a um ponto onde os desejos são postos de lado ou excluídos em prol dos interesses, não seremos mais homens em essência, e sim objetos de um grande sistema.

“Memórias do Subsolo” é um romance cujo objetivo é despertar no homem a necessidade do questionamento dessas verdades absolutas, dessas normas pré- estabelecidas da sociedade, que nos transformam em seres automatizados e doutrinados.

1) Classificação de tipologia histórica:

O romance “Memórias do subsolo” de Dostoievski publicado em 1864 na revista literária Época, faz parte da escola literária realista, não só por ser publicado na segunda metade do século XIX, mas também por apresentar características como: sua forma objetiva, e suas temáticas niilistas que apresentam questionamentos da sociedade moderna.

Como se sabe o realismo é fruto de transformações sociais, culturais, políticas e científicas que ocorreram na Europa no fim do século XIX. É nesse período que se vive as conseqüências mais imediatas da revolução industrial do século XVIII, como a luta entre as novas classes: burguesia X proletariado devido as péssimas condições de trabalho e de salários. O desenvolvimento de grandes movimentos como o socialismo, o comunismo e o anarquismo. Além disso, ocorre nesta época uma grande evolução no campo das ciências e uma maior valorização do saber científico, surgindo novos campos de conhecimento como a sociologia e a psicologia.

Devido às influências desses acontecimentos, o campo das artes passa a ter como base de seus temas os conflitos da sociedade moderna e a nova relação entre o individuo e essa sociedade. Dentro desse contexto a literatura realista aparece como meio de denuncia e critica social, além de questionar as ideologias do novo sistema que se estabelece.

O romance “Memórias do Subsolo” traz as memórias e confissões de um homem que está inserido nessa sociedade e demonstra um absoluto desprezo pelo mundo a sua volta. Ele se auto define como um homem doente, malvado e desagradável. Por outro lado revela alguns momentos ser inseguro e indefeso. Este homem que não apresenta seu nome possui quarenta anos e mora em um quarto feio e desmantelado de um subsolo em Petersburgo.

Essas descrições nos mostram um personagem “típico” do realismo, totalmente contrário aos personagens perfeitos e idealizados no romantismo. Além disso, ele apresenta vários conflitos internos, como excluir-se da sociedade e viver na solidão, ao mesmo tempo que amargura-se com a mesma: “Com efeito, verifica sempre em mim a presença de um grande número de elementos diversos que se opunham violentamente”.

O protagonista realista de Dostoievski é construído sob influencia dos novos campos de conhecimento: psicologia e a sociologia, trabalhando com interior humano. Criando, dessa forma, personagens complexos, indeterminados e contraditórios.

Além das características da personagem outra característica realista que observamos no romance são as críticas feitas à sociedade moderna moldada pela ideologia capitalista, pois é em torno do consumo que os homens dessa sociedade constroem suas vidas, seus conceitos e seus valores. O realismo não mais irá criar romances aos moldes dos ideais burgueses, mas sim romances que vão criticar as brutais conseqüências de tais valores. O “homem do subsolo”, nega-se a ser um trabalhador exemplar, não se preocupa em acumular dinheiro, nem a viver luxuosamente, ele trabalha só para se alimentar e ao receber uma herança abandona o trabalho.

Este Romance também discute o racionalismo vigente no século XIX. Questiona a veracidade das ciências, principalmente as exatas e critica o fato das pessoas nunca as questionarem. O homem do subsolo, por exemplo, afirma que os Homens de ação são facilmente detidos quando existe algum obstáculo considerado impossível de ser movido “... as pessoas simples e espontâneas, os homens de ação apagam-se e cedem com toda a sinceridade...”, “... o muro é a seus olhos um apaziguamento...” e “Mas que muralha é essa? São as leis naturais, evidentemente os resultados das ciências exatas, as matemáticas.”

A construção de um romance objetivo, que problematiza a sociedade capitalista, usa na ficção acontecimentos da realidade, o que possibilita o diálogo com o leitor , pois é este que está inserido na realidade tematizada. É dessa maneira que Dostoievski constrói seu romance realista.

2) Classificação tipológica de Wolfgang Kayser:

As obras de Dostoiévski são muito ricas e complexas, o que dificulta uma única classificação tipológica, sendo assim impossível encontrar em uma de suas obras, um romance concreto que realize de modo puro cada uma das modalidades tipológicas estabelecidas por Wolfgang Kayser. Não obstante, em Memórias do subsolo o romance que predomina é o de personagem.

Segundo Kayser, o romance de personagem se caracteriza pela existência de uma única personagem central, que o autor desenha e estuda demoradamente e a qual obedece todo o desenvolvimento do romance.

O título de Memórias do subsolo é bem significativo acerca da natureza deste tipo de romance, pois nos remete a memória (ou imaginações) de uma pessoa, de uma personagem central, que por meio de um tom confessional conta a sua auto-flagelação que viveu durante 20 anos no subsolo de um prédio. O homem do subsolo teoriza sobre sua consciência, sofre com a sofisticação e exigência dela, ele acha a consciência ridícula e diz que todos a sua volta são imbecis, o que faz ele se isolar e se sentir incapaz de manter uma relação social. A sua consciência resulta na inércia que lhe impede até mesmo de ser preguiçoso. É a consciência da covardia. Ele sabe o que está errado: ele, os outros, o mundo, o sistema; mas é incapaz de lutar por mudança, pois sabe que é inútil, conhece a sua insignificância e a sua incapacidade de mudar.

Mas isto não o impossibilita de falar, ataca o positivismo, repudia a idéia da submissão humana às leis da natureza e a lógica da razão, a ponto de romper com elas, mesmo que isto resulte em sua degradação humana.

Dostoiéviski em Memórias do subsolo concebeu uma atenção particular à formação e à evolução dos sentimentos e dos ideais do homem moderno e cheio de contradições, que vive em busca da felicidade, mas não consegue rir de si mesmo. O homem do subsolo não só consegue rir dele mesmo, como consegue sentir prazer ao sentir dor de dente. O que faz também com que este romance seja classificado como de personagem, pois trata da consciência de uma única personagem, consciência essa que retrata os medos, os rancores, os anseios, as desilusões, as inseguranças do homem moderno. Sem esquecer que o autor descreve parcialmente a consciência do personagem, fazendo com que o

leitor se interesse pelo desfecho do romance. O que não acontece em Memórias do subsolo.

3)Classificação das personagens:

Segundo Barthes, não existe narrativa sem personagem, pois essa é construída, em suma, pela personagem, através de suas ações e ideologias ocorrem os fatos, que darão o sentido da obra, em “Memórias do Subsolo” as ações são basicamente ideológicas, o dialogo de idéias é o fator preponderante para a construção de seu significado.

Greimas,substitui o termo de personagem, por actante que seria a unidade de ação da narrativa, são sempre direta ou indiretamente subordinado ao verbo, identificados por pronomes ou substantivos, classificam-se, segundo Greimas: Primeiro actante, sujeito realizador da ação; segundo actante, complemento direto que suporta a ação; terceiro actante, complemento indireto em beneficio ou detrimento ao qual se realiza a ação. Na obra em análise o autor das memórias seria o primeiro actante, pois é ele que a todo o momento realiza a ação.

No realismo, as personagens diferentemente do romantismo, são conflitivas e não adotam valores únicos, tendo ideologias muitas vezes divergentes das normas sociais estabelecidas. Seus conflitos internos caracterizam essa atemporalidade do ser humano não sendo, portanto uma obra de seu tempo, mas de todos os contextos. Em “memórias do subsolo”, as ideologias da personagem fomentam diversas indagações no ser humano que não se dirigem especificamente para aquele tempo, mas falam do homem em sua universalidade.

Existe também outra nomenclatura à personagem, o actor, que segundo Greimas é, “em suma, constituído pelas conjunções de funções actanciais”. Dessa forma, seguindo a classificação do mesmo, temos as seguintes relações actor-actante: Isomorfismo (I actor – I actante); Desmultiplicação (I actante – n actores); e de sincretismo (n actantes – I actor). È nessa ultima classificação que se encaixa nossa personagem, o constante conflito psicológico, denotam um numero indeterminado de ações ideológicas, n actantes, em um mesmo ser, I actor – “Verificava sempre em mim a presença de um grande numero de elementos diversos que se opunham violentamente” (Memórias do Subsolo, Pag. 68). Neste ponto podemos fazer outra alusão a concepção Greimasiana, qualificando a personagem como dual, onde se estabelece um conflito ideológico entre ele, homem que pensa, e a sociedade, os homens de ação.

“Jamais consegui nada, nem mesmo me tornar malvado, (...) termino a existência em um cantinho onde tento me consolar, dizendo que o homem inteligente não consegue nunca se tornar alguma coisa, e que só o imbecil triunfa. (...) O homem que possui caráter, o homem de ação é um ser essencialmente medíocre”. (MS. pag.68-69)

A obra em questão é narrada em primeira pessoa tendo um narrador personagem, estabelecendo dialogo direto com o leitor. O diálogo estabelecido entre narrador – leitor é de fundamental importância na estruturação sintática e semântica do texto. Por vezes o narrador indaga ao leitor determinadas questões, as quais as respostas são de responsabilidade do leitor – “Hoje, embora considerando a efusão de sangue ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais freqüentemente ainda do que antes. Isso vale mais? Decidi vós mesmos.” ( MS. grifo nosso. Pag. 84).

Apesar de protagonista, o narrador da obra de Dostoiévski não se qualifica como herói, já que este é caracterizado como um espelho dos valores sociais, personificando padrões morais e ideológicos exaltados por determinada classe. No entanto quando este herói questiona tais normas sociais, vai de encontro ao estabelecido tem-se um anti-herói. A própria personagem em uma passagem alerta ao leitor quanto a sua posição de não ser herói - “Jamais consegui ser nada, nem mesmo me tornar malvado; não consegui ser belo, nem mal, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto” (MS. grifo nosso. Pag. 68).

No realismo não se adéqua mais a classificação de um “eu” único e inquestionável, o que se tem é uma multiplicidade “eus” conflitantes, que não se qualificam sob uma perspectiva ético-psicológica coerente. Essa característica factícia da literatura, nada mais é que um reflexo da realidade, onde se instalou uma crise ética, ideológica e política, a partir do domínio capitalista de uma sociedade anônima e individualizada, onde o homem sofre e não age. Onde os interesses particulares são priorizados em detrimento da sociedade.

O nome do narrador não é revelado, e sua apresentação psicológica é feita no inicio e no decorrer da obra – “Eu sou um homem doente... sou um homem malvado. Sou um homem desagradável.” (MS. pág.67). Seus atos posteriores são tão importantes quanto a apresentação inicial, pois enquanto esta dará ao leitor a universalidade da personagem, suas ações revelarão seus verdadeiros interesses.

Nas obras de Dostoiévski, dificilmente as características de particularização da personagem são apresentadas, como o nome, essa é uma estratégia do autor para dar o caráter universal à personagem. A esse respeito Backtin afirma:

“O herói interessa a Dostoiévski, não enquanto fenômeno na realidade, possuindo traços caracterológicos e sociológicos nitidamente definidos, nem enquanto imagem determinada, composta de elementos objetivos com significação única (...) o herói interessa a Dostoiévski como ponto de vista particular sobre o mundo e sobre ele próprio, como a posição do homem que busca a sua razão de ser e o valor da realidade circundante e da sua própria pessoa.” (Teoria da Literatura, Pag. 706-707).

Nesse romance a única personagem que é explicitamente mostrada além do narrador, é sua empregada, que não tem influência no conflito dramático, tampouco participa do mesmo, sendo então uma personagem secundária na narrativa; sua identificação é superficial aderindo-lhe características peculiares a sua posição social, classificada como personagem tipo – “Minha criada é uma velha camponesa que a burrice tornou malvada; além disso, cheira mal.” (MS. Pág. 69).

O narrador é a personagem principal nesta obra, pois é ele o núcleo do conflito dramático, suas ações são as criadoras do conflito. No plano psicológico são extremamente complexos, os conflitos de idéias são responsáveis por grade parte da narrativa, característica do realismo e de Dostoiévski, criar personagens densos, enigmático, rebeldes. Diferindo do habitual estereótipo de personagem encontrado nas demais escolas literárias. Essas personagens classificadas como redondas ou modeladas, podem surpreender o leitor com suas atitudes perante os fatos. “Verificava sempre em mim a presença de um grande numero de elementos diversos que se opunham violentamente” (Memórias do Subsolo, Pag. 68).

Referências Bibliográficas:

• CONDURÚ, Marize Teles; MOREIRA, Maria da C. R. Produção científica na universidade: Normas para apresentação. 2º Ed. Belém–Pa: Eduepa, 2007.

• DOSTOIÉVSKI, Fiodor; trad. LEAL, Isa Silveira. Noites Brancas e Outras Histórias. São Paulo-SP: Martin Claret, 2007.

• FARACO, Carlos ; MOURA, Francisco. Língua e Literatura. 10º Ed. São Paulo-SP: Ática,1991.

• SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8º Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000.

Olívia Carla
Enviado por Olívia Carla em 07/10/2010
Código do texto: T2543750
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