Conjeturas sobre a Oralidade na Comarca do Rio das Mortes

Se tudo é causa e efeito, ação e reação, atuação e consequência a causa de Minas do Ouro e a sua Comarca do Rio das Mortes foi a ação dos destemidos bandeirantes.

Quem afirmar que eles eram loucos, psiquiatricamente erram. Pois a psiquiatria moderna chama de “loucos” os bipolares e esquizofrênicos. Os mais normais são os neuróticos (Pois, quem não tem um medo guardado? Que rasgue o seu dinheiro que estiver em sua carteira – para muitos é prova de loucura!). Outros são os psicopatas, seres humanos desprovidos de um campo emocional maior no cérebro. Somos levados a pensar que eles são somente aqueles que matam. Não! Os bandeirantes o eram. Eles se deixavam impulsionar pela busca de ouro e indígenas nas florestas tropicais do Brasil e não se intimidaram pelo temor do desconhecido, do que poderia haver nos sertões brasis e bravios da terra até então desconhecida pelo elemento étnico branco.

Esta observação é apenas para introduzir as conjecturas que gostaríamos de fazer após termos assistirmos ao documentário projetado no Cineclube de Barbacena no dia 22/12/2010 e as reflexões orais de quem teve o privilégio de ali estar.

Tal documentário intitulado ‘Confidências do Rio das Mortes’ traz a fala de depoentes que exemplificam elementos étnicos e sociais que formaram a sociedade da Comarca do Rio das Mortes e que hoje compõem a herança viva desta humanidade.

Faltou o elemento vivo indígena, porque acabou exterminado nesta sociedade. Exterminado sim, mas não apagado ou silenciado. Pois, deixou sua historicidade registrada quer na oralidade dos que depuseram, quer na reação que provocou nos demais elementos étnicos (seus contemporâneos) fazendo estes levantarem muralhas de pedra para se protegerem de ataques alheios, quer instrumentos de pedra deixados por estes indígenas.

Um dos depoentes é descendente de escravo. Sua fala desperta duas curiosidades que requerem analise. A primeira é quando ele sentencia ‘O índio não gostava de trabalhar’ e a segunda quando afirma que ele foi vendido, já no Século XX, como escravo quando tinha uns nove anos de idade.

Há de se entender que estes dizeres sobre a suposta preguiça e indolência indígena são segundo a visão da etnia branca e negra. O índio trabalhava sim e gostava. Entretanto o ‘trabalhar’ do indígena se inseria no modo de produção primitiva e significava caçar, pescar, coletar, plantar mandioca e construir suas ocas. Coisa que causava estranheza para o elemento branco e para o negro já inserido como escravo no modo de transição para o capitalismo, onde trabalhar significava acumular riqueza através da extração aurífera, produção açucareira e comércio.

A segunda consideração deste depoente em questão é de que teria sido vendido como escravo quando era criança e em pleno século XX. A escravidão no Brasil oficialmente terminou em 13/05/1888. Entretanto, oficiosamente ela continuou e continua até hoje no interior brasileiro. Seja isto pela exploração da mão-de-obra sem salários ou outras formas de pagamento, seja isto pela aceitação subjetiva desta própria exploração. Por exemplo: este senhor que foi vendido como escravo aos nove anos aceitava esta condição. Era menor de idade e seu próprio pai lhe impôs que fosse vendido para um suposto senhor branco.

Este senhor ao abordar a questão do trabalho menciona a atuação indígena no sistema de exploração e colonização da comarca do Rio das Mortes. Se o índio não estava acostumado a se sujeitar ao trabalho típico imposto na época da transição para o capitalismo, ele praticava o escambo. O indígena escambeava, ou seja, trocava valores e bens que para ele tinha significado. Assim trocou o valor “ajudar a extrair o ouro” indicando lugares por vantagens, aparentes ou não para ele, que o elemento branco pudesse lhe ofertar. Para isto ele trocou até sua exterminação enquanto grupo étnico na região pelos vários significados civilizatórios oferecidos pela Igreja, educação, estima e outras coisas ofertadas por bandeirantes e portugueses.

O índio era então passivo devido a este escambo? Nem sempre. Haja vista pelas muralhas construídas ao redor das fazendas mostradas no documentário com a finalidade de conter a subversão de índios, quando estes o faziam, e para os proprietários se protegeram de assaltos de quadrilhas que havia nos Caminhos do Ouro.

Ainda é curioso o imaginário desta testemunha negra da cultura popular desenvolvida nesta sociedade e que demonstra o sincretismo que ocorreu entre a fé católica e os cultos afros.

É mostrada a importância da congada entre o seu povo demonstrando como tais práticas eram usadas também para trabalhar a estima dos descendentes de escravos. Elegia ou elege-se comunidade e isto lhe dá orgulho. Ele se acha bem visto por dirigir a festividade da santa protetora.

O sincretismo também aparece quando o depoente tem uma explicação que passa pelo imaginário lendário, mítico e místico. Ele afirma que os tesOUROs enterrados pertencem ao ‘Coisa-ruim” (o capeta para os cristãos e entidade para a cultura afro-brasileira). Tal espírito não deixa o ser humano extrair estas riquezas ou procura dificultar tal empresa, explica. Ele depões ainda que tal entidade já lhe propôs um acordo que deveria ser assinado com seu sangue extraído de suas artérias em troca de achar ouro com facilidade ...e assim as lendas auríferas se fizeram e estão aí compondo esta cultura das Minas e serviram para explicar subjetivamente a frustração de nem sempre encontrar a riqueza mineral.

Entre os depoentes há também representantes dos elementos étnicos brancos: descendentes das elites e dos que representavam os trabalhadores livres.

Entre estes trabalhadores livres a fala é feita por um oleiro, que deixou suas impressões igualmente preciosas para a História Oral. Ele mostra como a arte da cerâmica foi importante para o sustento de sucessivas gerações. Tudo começou quando seu ancestral branco se uniu maritalmente com uma índia temperamental. Além dos favores sexuais que permitiu a família se perpetuar, esta mulher indígena lhe mostrou todas as etapas da cerâmica – indo da escolha da argila até a fabricação do forno para o cozimento das peças. Está aí a contribuição cultural do indígena para a formação social e econômica da sociedade da Comarca do Rio das Mortes. O depoente deixa claro a sua preocupação em deixar para seu filho a técnica ceramista e a continuidade de sua família e bem estar.

Outras testemunhas étnicas brancas também se fazem presente no documentário em questão.

Um é aquele que mostra no desenrolar do filme a parede de pau-a-pique em sua fazenda construída por escravos que deixaram naquele barro seco entremeado de madeira as digitais daquelas mãos laboriosas.

Há a fala de uma senhora que mostra utensílios deixados pela presença indígena na sua propriedade.

Fazendo coro a esta fala há uma outra de uma senhora que pertence a nona geração do construtor de outra fazenda. Ela aborda pontos importantes. Como a primeira senhora a falar ela deixa registrada no documentário as mesmas muralhas construídas também por escravos contra ataques indígenas e assaltos de quadrilhas. Ela mostra detalhes do engenho arquitetônico como tamanhos das pedras, suas saliências, irregularidades, aberturas que servem de vigias.

Outro registro que deixa é a presença de rosários e terços de ouro nos oratórios. Segundo a mesma, tal instrumento de fé, o terço, pertencia a uma filha de escrava gerada pela coabitação do antigo proprietário e a mãe. Esta escrava progenitora teria dado à luz uma segunda mestiça. A diferença é que enquanto em uma predominava os traços étnicos do pai e senhor branco a outra saiu semelhante à mãe negra e robusta. Ambas as filhas foram colhidas na família e tratadas como membros da mesma.

Esta senhora branca após mostrar túmulos dos antepassados localizados no interior da fazenda e também a primeira capela construída na região surpreende a todos com a declaração de que nos primeiros anos da República brasileira o destacado Rui Barbosa ordenou que se apagassem todos os traços deixados que pudessem lembrar a escravidão no Brasil. Tal atitude se explica.

Rui Barbosa viveu no Século XIX e início do XX quando no Brasil predominava duas correntes teórico-filosóficas: o Positivismo e a Eugenia. A primeira buscava os valores nobre-burgueses para assegurar a Ordem e o Progresso, enquanto a outra o branqueamento da população brasileira. Haja vista a vinda de imigrantes europeus para substituir a mão-de-obra negra nas fazendas e na cidade.

E se Rui Barbosa falava em justiça, liberdade e igualdade, é certo que, como outros de sua época, ele pensava nestes valores para, e pelo elemento étnico branco.

Terminamos nossas observações e suposições sem deixar de mencionar o meio de sobrevivência daquele depoente que passou sua juventude ainda se achando escravo. Tal ofício que lhe garante a sobrevida é feita ainda da extração de ouro na Comarca do Rio das Mortes. Este trabalho é feito de modo bem rudimentar. Primeiro ele mói cascalhos para produzir uma areia branca que é depositada em uma bateia. Depois, às margens de um curso de água, com a bateia ele elimina os sedimentos mais grossos, porém não mais pesados. O de maior peso é o precioso dourado e cintilante metal que em filamento vai se mostrando no fundo da bateia. Os olhos do depoente brilham ao ver a presença da preciosidade que se tornou a razão de seu trabalho.

Deste modo o documentário foi mostrado e nos inspirou estas considerações e observações que finalizo com meu espírito em estado de alegria por ver jovens preocupados com os processos históricos e culturais da sociedade em que estão inseridos.

Agradeço à colhida calorosa e simpática ao Cineclube de Barbacena e aos que me convidaram para este banquete de imagens, testemunhos e falas tão impressionante.

Abraços.

Nota:

1) a. SILVA, Ana B. B.- Mentes Perigosas – RJ. Objetiva. 2008

b._________________Bullying: mentes perigosas nas escolas – RJ. Objetiva

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A ausência dos nomes dos depoentes fica para instigar os mais curiosos e interessados. Que assistam o documentário, e descubram o nome destas testemunhas e se deliciem com o privilégio dado pelo autor e produtor do filme.

Momento de interação com o leitor

Faça como no exemplo assistindo o documentário e lendo o texto:

a) Nome do documentário: Confidências do Rio das Mortes(exemplo)

b) Produção: I.Autor:___________________________________________ II.Ano da Produção: _________________________________

c) Data da projeção no Cineclube de Barbacena:___________________

d) Testemunhas ou depoentes do documentário:

I. ________________________________________________

II. ________________________________________________ III. ________________________________________________

IV. _______________________________________________

V. Gabriela Andrada Serpa(exemplo) VI._______________________________________________ VII._______________________________________________

e) Utensílios encontrados que pertenciam aos indígenas habitantes da Comarca do Rio das Mortes:____________________________________

Obs.: Professor tem cada uma!!! (risos magisteriais)

TEXTO 13 - CADERNO: VOLTANDO PARA CASA

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 26/12/2010
Reeditado em 04/10/2012
Código do texto: T2692096
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