Quem somos nós?

Quem somos nós?

(Publicado no “Jornal de Hoje” em 30 / 09 / 2004)

Muitas vezes nos vem em mente uma pergunta inquietante: Quem somos nós? Tenho observado de forma prudente, no meio onde vivo o comportamento das pessoas. Entre muitos, existe uma grande variedade de pensamentos e comportamentos, no entanto, não há uma uniformidade na forma frágil e superficial de agir.

As pessoas estão tomadas por um medo imediato de perder. Ninguém consegue mais imaginar a possibilidade, por menor que seja, de ser privado daquilo que se possui ou de não ter no futuro aquilo com que sonhara.

Nas repartições públicas, o que vemos é um amontoado de correligionários políticos ou jurídicos se espremendo num espaço diminuto para ao menos ser visto e, consequentemente, ser lembrado por aqueles que ali os colocaram. Muito antes de ocorrer o ciclo natural das mudanças, aqueles servidores se engalfinham durante anos para manter aquelas benesses que eles não foram dignos de conquistar pela competência.

Os valores éticos e morais nem puderam ser esquecidos, porque essas pessoas nem mesmo os conheceram. Punks vestem paletós, religiosas encurtam as saias e usam jeans, roqueiros se tornam pops e inimigos se tornam afins. Não sabem o que é uma batalha limpa, sem subterfúgios ou protecionismos. Querem vencer a qualquer custo, passando por cima do adversário como a manada em estouro passa por cima da relva seca. Não sabem eles, que não está na grandiosidade do objeto a força de sua ação e sim nas mãos que o carregam. Em nossas mãos, um cajado, que é um simples bordão de pastor com a extremidade superior arqueada, serviria apenas para tanger as ovelhas; na mão de Moisés serviu para abrir o mar para que uma multidão pudesse atravessá-lo. Em nossas mãos um estilingue é uma simples atiradeira para derrubar frutas das árvores; nas mãos de Davi, foi transformado numa arma mortal para vencer Golias. Um peixe e um pão em nossas mãos nada mais são do que um lanche; nas mãos de Jesus serviram para alimentar milhares de pessoas. Assim nos ensina o cotidiano. Uma caneta em minha mão é um instrumento de escrita; nas mãos daqueles que detêm o poder, é a batida de um martelo, alterando vidas e desprogramando o futuro de muitas pessoas.

Precisamos redescobrir o nosso caráter para podermos sobreviver. Disse Heráclito de Éfeso que caráter é destino. É tudo aquilo que fazemos quando não estamos sendo observados por ninguém. É nossa intimidade, nosso segredo mais secreto. É aquele escuro que nos mete medo. É aquele invisível que nos impõe respeito.

O caráter dos homens virou pó no meio da ventania. Espalhou-se de forma tão difusa que seria melhor criar algo novo do que tentar refazer o velho.

O dinheiro e o poder têm corrompido o homem ao ponto de ele achar normal trair o seu semelhante e mentir para si mesmo. Ninguém se apresenta dizendo o seu próprio nome e sim o daquele parente mais influente. Não importa se ele está preso ou não. Ser parente de “Beiramar” tem mais força do que a beira-mar. Não se pega na mão de um mendigo deficiente para ajudá-lo a atravessar a rua com medo de sujar as mãos. Fazemos questão de sujar de iniqüidade e corrupção cada vez que apertamos a mão de um político aproveitador que compra votos na eleição. Forjar reportagens com homens encapuzados ameaçando de morte algumas pessoas, se tornou normal em busca de alguns pontos na audiência.

Não sabemos mais o que fazer...

Talvez fosse preciso iniciar tudo outra vez. Nascer de novo e reaprender a falar. Selecionar os amigos e estudar mais. Estudar não apenas um semestre para passar em um concurso e, sim estudar sempre para poder ensinar a alguém. Aprender como vivem os animais, que só matam para sobreviver e não apenas por prazer. Aprender com as árvores a fazer a fotossíntese de nossas vidas. O que recebemos de mal será transformado no bem. Aprender com os idosos a velha arte da paciência e o deleite da experiência. Aprender com o Sol que é humilde suficiente para esconder o seu brilho para que a noite apareça. Aprender com as crianças a inocência de viver em paz.

Talvez eu esteja começando a descobrir “Quem somos nós?”