IPAM: DO SENTIMENTO DE CARIDADE AOS DESAFIOS DE GARANTIR OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

IPAM: DO SENTIMENTO DE CARIDADE AOS DESAFIOS DE GARANTIR OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE*

Jerisvaldo Pereira Santos

Reginaldo Santos Pereira

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB

1. Introdução

Buscar respostas para o estado de abandono e negação de direitos a que estão submetidos os milhões de brasileiros e brasileiras é uma tarefa colocada a todos aqueles que ainda nutrem um sentimento de indignação frente ao sofrimento das pessoas. Neste sentido, o processo de redemocratização do país, concretizado na década de 80, revelou-se como um momento rico para os movimentos sociais, comprometidos com a construção da cidadania e das lutas pelas garantias de direitos das minorias que compõem este país, tendo como marco principal a constituição cidadã de 1988.

Pode-se afirmar que a história da criança e do adolescente no Brasil foi redimensionada a partir da mobilização dos movimentos sociais e com o surgimento das organizações não-governamentais (ONGs). Mesmo sendo gestada na década de 70, estas organizações ganharam força nas décadas de 80 e 90, onde adquiriram visibilidade frente à população, buscando dar respostas às complexas questões sociais enfrentadas pelo país.

Monteiro (2004) reafirma tal questão quando considera que o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (criado em 1985), o Movimento em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais em Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) e a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente são grandes conquistas daqueles movimentos.

Assim, em nossa sociedade abrem-se novas possibilidades para a constituição de um novo olhar sobre as crianças, o tratamento dado a estes sujeitos e aos adolescentes e para a criação de políticas públicas voltadas para infância e juventude. Verifica-se, entretanto, que as ONGs têm desenvolvido ações próprias e de responsabilidade do Estado e que as parcerias têm se revelado como uma forma de transferência de recursos públicos para entidades privadas.

Fruto desse processo de redefinição do papel do Estado a partir da década de 80 surge em Itapetinga-Bahia, em 1983, a Instituição de Promoção e Amparo ao Menor – IPAM. Assim, esse estudo teve como objetivo analisar o papel e a importância da IPAM para o município de Itapetinga e verificar como suas atividades tem contribuído para a construção de políticas e ações alternativas que atendam aos direitos de crianças e adolescentes.

Nesse contexto, refletir sobre a situação em que se encontra a criança e o adolescente carente no Brasil é uma tarefa desafiadora, visto que a marginalização e a exclusão são realidades que sempre estiveram presentes na história deste país. Crianças e adolescentes compartilharam com negros, índios, mulheres, imigrantes e colonos, suas dores, exploração, violência e sofrimentos; juntos com esses tornaram-se vítimas da injusta distribuição de renda e de oportunidades. A sua história não se diferencia das experiências vividas pelos adultos, mas ao contrário é feita à sua sombra.

Crianças e adolescentes encontramos em toda parte, amadas, rejeitadas, brincando, trabalhando, estudando, perambulando, bem vestidas, com farrapos, tomando sorvete, e também, marginalizadas. Este fato revela que não temos uma infância homogênea e que as condições em que nascem e vivem as crianças e adolescentes não são iguais para todas.

A afirmação de Del Priore (2000, p.8), ajuda-nos a aprofundar a reflexão que estamos propondo:

Existe uma enorme distância entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais, pelas não governamentais ou pelas autoridades e aquela na qual a criança encontra-se quotidianamente imersa. O mundo no qual a criança deveria ser ou ter é diferente daquele onde vive ou no mais das vezes sobrevive. O primeiro é feito de expressões como a “criança precisa”, “ela deve”, “seria oportuno”, “vamos nos engajar”, e até o irônico “vamos torcer para”. No segundo as crianças são enfaticamente orientados para o trabalho, o ensino, o adestramento físico e moral, sobrando-lhe pouco tempo para a imagem que normalmente se lhe é associada: aquela do riso e da brincadeira.

A imagem de criança, segundo o ideal e a ótica da sociedade de consumo em que vivemos, está associada às lutas a aos discursos das organizações internacionais, autoridades e entidades não-governamentais que atendem a criança e ao adolescente carente. Porém, a imagem real encontra-se nos índices de desenvolvimento humano, mortalidade infantil, na exploração do trabalho de menores, nos casos de abuso sexual de crianças, nos livros de ocorrências policiais, onde os infantes figuram, por exemplo, como “aviões” do tráfico de drogas, nas favelas e periferias, onde a violência e a morte são uma constante em seu cotidiano.

O senso comum apresenta o entendimento do ser criança como uma oposição do ser adulto. A falta de idade é o que diferencia o infante do adulto, considerando que o primeiro não tem o amadurecimento suficiente que favoreça a socialização. Entretanto, flagra-se uma contradição neste entendimento, posto que não exista uma infância homogênea. A realidade social, econômica e cultural é o elemento que vai interferir no modo como a sociedade concebe o ser criança. A infância é uma construção social, como afirma Sarmento e Pinto:

(...) Crianças existiram sempre, desde o primeiro ser humano e a infância como construção social – a propósito da qual se construiu um conjunto de representações sociais e de crenças e para a qual se estruturaram dispositivos de socialização e controle que a instituíram como categoria social própria – existe desde os séculos XVII e XVIII. (CARVALHO, 2003, p.41)

Portanto, antes da discussão dos resultados parciais desse estudo, apresentaremos uma breve retrospectiva histórica do atendimento à infância e adolescência no Brasil para se compreender os motivos que nos fazem levantar a hipótese de que o atendimento a estes sujeitos nem sempre foi prioridade para o Estado brasileiro, visto que este sempre foi dependente de outros centros de poder e que os projetos de desenvolvimento aqui implantados estiveram vinculados a interesses “estranhos” ao país.

2. Um pouco da história do atendimento à infância e adolescência no Brasil

O tratamento dispensado a criança e ao adolescente ao longo da história, seja pelo estado, seja pela sociedade, ou ainda pela família, sempre esteve relacionado com as formas de organização da sociedade e aos projetos de desenvolvimento econômico e políticos elaborados por “forças” dominantes.

A idéia de infância, não existiu sempre, e nem da mesma maneira. Ao contrário ela aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que muda a inserção e o papel social da criança na comunidade. Se na sociedade feudal, a criança exercia um papel produtivo direto (adulto), assim que ultrapassava o período de alta mortalidade, na sociedade burguesa, ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura. (KRAMER,1992, p.19).

Nessa perspectiva, podemos perceber que a infância, no decorrer da história, não recebeu um acompanhamento que respondesse a carências e necessidades próprias. A aventura da colonização do Brasil pode até ter sido uma experiência positiva para homens e mulheres que buscaram em nossas terras uma vida melhor, todavia para as crianças que viajaram nas naus portuguesas foi uma aventura traumatizante e marcada pelo sofrimento e pela dor.

A concepção européia do século XVI, de que a criança não tinha valor ou que valia pouco mais que um animal, se justificava no fato de que a expectativa de vida das crianças era de, em média, 14 anos, sendo que cerca da metade morria antes de completar 7 anos de idade. O estado, a sociedade e a família, por esse motivo, favoreciam a exploração do trabalho infantil. O primeiro, quando permitia, por exemplo, que crianças e adolescentes embarcassem nas naus para servirem de grumetes e pagens, mesmo sabendo dos perigos do mar. As famílias, por seu turno, quando viam neste tipo de atividade um meio de melhorar a renda da casa ou de se livrar da responsabilidade de alimentar uma criança (DEL PRIORE, 2000).

Nas embarcações portuguesas os infantes estavam sujeitos aos perigos do mar, ataques de piratas que os transformavam em escravos e os exploravam sexualmente. Registre-se que marujos e oficiais tinham a prática de prostituir os pequenos.

A bordo das naus, o tratamento dado às crianças pode ser considerado desumano: alimentados com biscoitos envelhecidos, roídos pelas baratas; carne salgada quase sempre em estado de decomposição; água contaminada por microorganismos que causavam sérios problemas de saúde e de diarréias; eram alojados no convés, a céu aberto, expostos ao sol e a chuva. Viajando nestas condições, a morte estava sempre a rondar os infantes que sofriam de inanição, escorbuto, pneumonia, insolação e pelas doenças incubadas na Europa e disseminadas em alto mar, como o sarampo e a caxumba.

Considerando as ocorrências de naufrágios e a concepção de desvalorização da criança e do adolescente, os pequenos carentes eram abandonados à própria sorte, quando as embarcações afundavam.

Optava-se quase sempre por fazer subir no batel apenas os membros da nobreza, oficiais da embarcação e tudo e todos que pudessem ser úteis a sobrevivência em terra, deixando as crianças entregues à própria sorte.Um barril de água ou biscoito, segundo a ótica quinhentista tinha prioridade de embarque no batel sobre os pequenos não pertencentes a nobreza. (DEL PRIORE, 2000, p. 14).

Constata-se desse modo que a vida das crianças e dos adolescentes nas naus portuguesas foi marcada pelo sofrimento e pela exploração, fato que não muda em solo brasileiro.

Um outro fato marcante de nossa história foi o regime escravista que imperou no Brasil até o final do século XIX. Segundo Góes e Fiorentino (2000), não existiu propriamente um mercado de crianças cativas, porque a relação que elas tinham com o sistema escravocrata estava associada à mortalidade infantil e a fertilidade das escravas. Os senhores não investiam na compra de crianças negras, pois os altos índices de mortalidade transformavam este tipo de transação comercial em um negócio de alto risco, como mostram os estudos sobre os inventários dos proprietários rurais do Rio de Janeiro, feitos por Góes e Florentino apresentados por Del Priore (2000): “Os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos escravos falecidos, dentre estes, dois terços morriam antes de completarem um ano de idade, 80% até os cinco anos” (p.180).

As crianças escravas eram iniciadas e adestradas no trabalho, acompanhando seus pais e os adultos nas plantações de cana-de-açúcar, nos cafezais e com a convivência com os castigos sofridos por seus genitores. Aos quatro anos de idade cuidavam dos afazeres da casa grande. A humilhação, prática dos senhores, também era método para preparar os pequenos para o trabalho. Com a abolição da escravatura no Brasil, os negros ficaram “livres” e o “mundo passou a ser o seu lar”.

Outra etapa histórica marcante, relacionada ao abandono de nossas crianças e adolescentes, configura-se a partir da segunda metade do século XVIII, com o surgimento da Roda dos Expostos . O sistema de rodas de expostos foi inventado na Europa medieval. Era um meio para garantir o anonimato do expositor e assim estimulá-lo a levar o bebê que não desejava para a roda, em lugar de abandoná-lo pelos caminhos, bosques, lixo, portas de igreja ou de casas de famílias.

A Roda dos Expostos chegou ao Brasil no início do século XVIII como uma cobrança dos cidadãos sensibilizados com o problema do crescente número de crianças que estavam sendo abandonadas pelas ruas e praças. “Na cidade do Rio de Janeiro, foi instalada a segunda roda dos expostos do Brasil, em 1738, com o argumento da exposição pelas ruas e casas de famílias, e as mesmas dificuldades das câmaras para ampará-las”. (MARCÍLIO, 2000, p.61)

As Câmaras Municipais tinham, nesse período, a responsabilidade de cuidar das crianças abandonadas, no entanto foram as Santas Casas que assumiram esta tarefa, levadas por pressões políticas exercidas pelas Câmaras, como se observa no caso da abertura da Roda dos Expostos de Salvador:

Inicialmente foram feitas pressões para que a Santa Casa da Bahia aceitasse estabelecer uma roda de expostos. Estas pressões iniciaram-se com o governador Dom João de Lancostre e continuaram anos depois com o vice-rei Vasco Fernandes Cézar de Menezes. As autoridades estavam preocupadas com o crescente fenômeno do abandono de bebês pela cidade de Salvador. (idem, p.59).

A falta de compromisso das Câmaras Municipais, com a manutenção das Rodas era motivo de constantes atritos com as Santas Casas, que reclamavam do não cumprimento pelas Câmaras de destinarem parte de seus subsídios para o atendimento dos abandonados.

A aprovação da Lei dos Municípios em 1828, estabelecendo que onde houvesse uma Santa Casa, as câmaras poderiam dispor de seus serviços para o atendimento dos rejeitados e o repasse da obrigação da manutenção das rodas para as assembléias provinciais, livrou as câmaras da responsabilidade com os abandonados e oficializou as rodas nas Santas Casas, colocando tais instituições à serviço do estado, revelando o caráter assistencialista e filantrópico da iniciativa, abrindo espaço para uma associação do público com o privado.

Ao preservar o anonimato das mães dos abandonados nas rodas, as famílias garantiam a “honra” das “moças brancas”. Outro aspecto a ressaltar era a liberdade que a criança negra recebia ao ser colocada na roda, o que incentivava as escravas a abandonarem seus filhos.

A Roda dos Expostos foi uma instituição que pouco asilou crianças abandonadas, visto que não tinha as condições para oferecer tal atendimento. “Buscava a rodeira colocar logo o bebê recém-chegado em casa de uma ama de leite, onde ficaria, em princípio, até a idade dos três anos. Mas procurava estimular a ama a manter para sempre a criança sob sua guarda”. (MARCÍLIO, 2001, p.74)

Apesar de contar com a sensibilidade das famílias que acolhiam os abandonados, elas recebiam pagamentos para criarem as crianças até completarem sete anos, e em outros casos, doze anos, quando poderiam explorar seu trabalho de forma remunerada, ou apenas em troca de roupa e comida, o que era mais comum. Entretanto, o sistema favoreceu a existência de fraudes e abusos, muitas vezes com a conivência de pessoas que trabalhavam nas rodas. Não faltaram mães que colocaram seus filhos nas rodas e se apresentaram em seguida para criá-los, recebendo agora pelo serviço; senhores que induziam suas escravas a abandonarem seus filhos nas rodas e fossem buscá-los, como amas de leite, a fim de arrecadar recursos para alforriá-los, quando o Direito Romano garantia a liberdade dos abandonados; Não faltavam também as amas de leite que não declaravam a morte da criança e continuavam a receber por um serviço não prestado.

Percebe-se, portanto, que, mesmo sobrevivendo até o século XX, as Rodas dos Expostos não responderam à problemática do abandono infantil. Estudos feitos por Ramos (2000), apontam que no início do século XX a situação da infância no Brasil continuava a ser um desafio para as autoridades e a sociedade como um todo.

As estatísticas elaboradas em 1900 já revelavam que esses filhos da rua, então chamados de “pivetes”, eram responsáveis por furtos, gatunagem e ferimentos, tendo na malícia e na esperteza as principais armas de sobrevivência. Hoje, quando interrogados pelo serviço social do estado, dizem com suas palavras o que já sabemos desde o inicio do século: a rua é um meio de vida. (p.13)

Os acontecimentos políticos, as lutas dos movimentos sociais da década de 30, modificaram os rumos da economia do Brasil e refletiram na questão da infância e adolescência. A criação do Serviço de Atendimento dos Menores (SAM) em 1940 foi uma tentativa de resposta ao problema, entretanto, por atuar vinculado ao Ministério da Justiça, revelou a limitação da iniciativa, demonstrando tão somente a preocupação do governo com o combate à criminalidade infanto-juvenil, levando a experiência ao fracasso. Como relata Rodrigues (2001, p.46):

A existência do SAM foi extremamente conturbada, sobretudo quando passou a ser concebida como inadequada ao tratamento dos menores. Os inspetores representavam, de acordo com o discurso oficial, um dos grandes entraves do SAM. Em sua grande maioria eram concebidos como “pérfidos”, corruptos e sem nenhuma condição moral.

A situação em que se encontrava o SAM propiciou a oportunidade de propor uma nova forma para se enfrentar a problemática do “menor”, fato que veio a se concretizar décadas depois com o advento do regime militar, o qual passou a ser o preceptor da questão. O Estado sob a tutela dos militares cria em dezembro de 1964 a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e nos estados a FEBEM, para disseminar a idéia de que estavam preocupados com os problemas sociais e demonstrar que o bem-estar da criança e do adolescente era um elemento fundamental para a fixação dos objetivos nacionais permanentes.

O Estado por meio da FUNABEM veiculava uma imagem à opinião pública segundo a qual estaria atento ao “homem de amanhã”. Este tipo de propaganda, longe de ser uma manifestação isolada fazia parte de uma ampla estratégia de comunicação do regime militar destinada a garantir sua manutenção no poder, que buscava, entre seus objetivos, o reconhecimento da opinião pública quanto à eficiência do Estado na área social. (RODRIGUES, 2001, p.60).

Percebe-se, portanto, que o estado brasileiro ao longo da história tendeu a institucionalizar o atendimento à criança carente, todavia, não potencializou tais iniciativas, levando-as a reverter-se em negação de direitos, subtração de convívio familiar e não em formação de cidadãos com condições para o exercício pleno da sua cidadania.

A mobilização de amplos setores e movimentos sociais nos anos 70 e 80 comprometidos com as causas da cidadania possibilitaram a abertura política e redemocratização do país, representada na elaboração da Constituição Federal de 1988. Os setores ligados às causas da infância e adolescência, de modo destacado as ONGs, contaram com o apoio das amplas forças sociais, e garantiram a aprovação da Lei 8069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) , que além de extirpar o estigma calcado em crianças e adolescentes com a eliminação do termo “menor”, trouxe ao mesmo tempo, garantias aos direitos inalienáveis de todas as crianças, “(...) assegurando-lhes, por lei, ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade” (ECA, Art. 3º).

Apesar de significativas mudanças nas políticas públicas de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, persiste, entretanto, um prática governamental de negação dos direitos sociais garantidos nos preceitos legais, posto que não há uma obrigatoriedade irrefutável, categórica para o cumprimento do que estabelece a lei. Muitos dos direitos continuam no papel, contudo a sociedade exige uma postura reflexiva que transforme uma expectativa de direitos em direitos efetivamente garantidos.

3. IPAM: sonhos, lutas e desafios para a garantia dos direitos da criança e adolescente no município de Itapetinga, na Bahia.

A problemática de atendimento e garantia dos direitos a crianças e adolescente no município de Itapetinga, estado da Bahia, foi agravado no início da década de 80, o que provocou a mobilização de diversas instituições e, em especial, da sociedade civil organizada, para discussão e busca de soluções e/ou amenização dos problemas. No contexto dessas discussões surge, no início da década de 80, a Instituição de Promoção e Amparo ao Menor – IPAM, sobre a qual falaremos a seguir:

Os procedimentos para construção dos dados efetivaram-se através de: a) trabalho na IPAM com a realização de entrevistas semi-estruturadas aos dirigentes, representantes do poder público, professores, familiares, crianças e adolescentes atendidos; b) Análise de fontes documentais relacionadas a fundação e ao funcionamento da instituição, tais como: estatuto, atas, fichários, relatórios e livros de ocorrência.

Os resultados apontam que a cidade de Itapetinga, no início da década de 80, estava incomodada com o crescente número de crianças pobres que perambulavam pelas ruas a esmolar, fora da escola, sem o acompanhamento das famílias, marginalizadas, carentes de atenção e cuidados, fatos que revelavam o quadro de abandono da infância/adolescência no município.

A partir da consulta por nós realizada em livros de ata, depoimentos de professores, voluntários, fundadores e colaboradores da IPAM, pôde-se registrar que o surgimento da IPAM está vinculado a uma motivação religiosa e um sentimento de caridade, o que constituiu-se a partir dos questionamentos realizados nos grupos de casais denominado “Cursos de Igreja” acerca da situação das crianças e adolescentes abandonados e inspirados pelo debate implementado pela Campanha da Fraternidade do ano de 1983, intitulada Fraternidade Sim, Violência Não; tal movimentação deu-se por iniciativa da Igreja Católica local e em função de um ideal de construir uma infância/adolescência mais humana e cidadã, defendido por alguns. Essa constatação é relatada pelo sócio fundador Izai Amorim:

Foi lançada a idéia de se fazer um trabalho em benefício de pessoas carentes ou abandonadas pela sorte em nossa cidade. Depois de algumas considerações, ficou decidido que a prioridade seria a criança abandonada e que seria necessário o envolvimento de toda a nossa comunidade afim de que um projeto desta envergadura alcançasse êxito.

Conforme registros em livros de ata, a reunião de fundação da instituição que acolheria os abandonados da cidade aconteceu no dia 07 de janeiro de 1984, na sede do Sindicato Rural de Itapetinga. Vale ressaltar que a assembléia de fundação, aprovação do estatuto e eleição da primeira presidência da IPAM foi precedida de reuniões que contaram com a presença de representantes de sindicatos, associações de bairro, igrejas evangélicas, Ministério Público, poderes executivo, legislativo e judiciário, instituições bancárias, associações comerciais e de classe, que tinham como objetivo pensar e elaborar estratégias para que a futura IPAM funcionasse e alcançasse os objetivos propostos.

Apesar do envolvimento plural da comunidade para constituição da entidade, a partir da revisão da trajetória histórica da instituição, constata-se que, as pessoas que pensaram essa iniciativa tiveram uma motivação que foi religiosa e humanitária com um forte apelo social, justificada no conteúdo da Campanha da Fraternidade de 1983 e paralelamente ao contexto histórico de redemocratização política que passava o país, bem como a expectativa de aprovação da Constituição Federal de 1988, e, posteriormente as discussões implementadas no âmbito governamental e da sociedade civil no debate para aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.

A IPAM foi instalada no Centro de Treinamento de Líderes Dom Climério, prédio de propriedade da igreja católica, situado no Bairro Nova Itapetinga. A cessão desse espaço deu-se o espaço em regime de comodato, sendo que as atividades iniciaram-se no mês de março de 1984. Inicialmente a instituição atendeu a 30 crianças e adolescentes e, ao longo destes vinte e dois anos de existência já se somam mais de dois mil atendidos. Crianças que, segundo a Comissão Social da instituição, apesar de terem uma família, perambulavam pelas ruas a procura de alimento ou fugindo de casa, visto que o ambiente familiar era comprometido com casos de doenças, alcolismo, drogas, abuso sexual etc.

A partir das entrevistas aos dirigentes e análise dos relatórios anuais da IPAM, é possível afirmar que a instituição pretende formar a criança/adolescente para o convívio familiar, visto que se valoriza o apoio ao núcleo familiar, o resgate da auto-estima com realização de atividades pedagógicas formativas, lúdicas, culturais, esportivas, oficinas de artesanato, horta comunitária. Além destas ações, são viabilizados projetos de apoio a iniciação ao mercado de trabalho, através de parcerias com instituições públicas e privadas, tais como, os projetos Zona Azul e Menor Aprendiz . A avaliação dessas atividades permite-nos afirmar que o trabalho da instituição possui caráter preventivo e tem diminuído o risco dessas crianças e adolescentes delinqüirem. O depoimento de um adolescente assistido pela IPAM demonstra, em parte, quais são os resultados alcançados por esse trabalho:

Foi muito bom e interessante trabalhar na Zona Azul, pois conheci pessoas diferentes, fiz muitos amigos e estava sempre envolvido com o comércio e com toda a sociedade itapetinguense (...) Eu sou muito tímido e também não falo muito, mas no meu coração terá sempre um lugar para toda a família IPAM, pois vocês me ensinaram que o importante não é que eu seja importante, mas sim, que eu dê importância a quem me acha importante. (Marcos Antonio)

O estudo permitiu identificar uma preocupação constante para o atendimento das famílias das crianças atendidas pela IPAM, pois a instituição dispõe de uma Comissão de Atendimento Social que planeja e executa regularmente a promoção de feiras de “cacarecos” (roupas, sapatos e utensílios usados), venda de cobertores e filtros d´água a preço de custo e com prazo considerável para o pagamento, realização de palestras com temáticas de higiene corporal, educação escolar e saúde, exibição de documentários e filmes informativos acerca das DSTs e AIDS; organização de mutirões para limpeza, melhoria ou construção de espaços físicos do prédio; convocação das famílias para atividades educativas na instituição. Percebe-se, portanto, que a IPAM, apesar de suas dificuldades financeiras, realiza um trabalho em consonância com a doutrina e os princípios de proteção integral firmados a partir da Convenção dos Direitos da Criança e do ECA, os quais concebem a criança/adolescente como sujeito de direitos e como pessoa em desenvolvimento, que necessita da família e do estado no seu processo de formação.

O processo de investigação que empreendemos nos permite constatar que a proposta e atendimento desenvolvidos pela instituição foram sendo construídos ao longo de sua existência, pois são claros os depoimentos dos dirigentes e voluntários quanto às dificuldades financeiras para manutenção das atividades; nos registros de atas das reuniões da diretoria e funcionários encontram-se inúmeras preocupações quanto a arrecadação de recursos para serem canalizados buscando a melhoria do espaço físico (prédio, salas de aula, construção de muro e quadra poli esportiva). Essa preocupação também é evidente na manutenção das atividades de rotina e no desenvolvimento dos projetos sócio-educativos. Para viabilização de muitas ações são realizadas arrecadações financeiras via contribuição dos sócios e/ou através de promoções de eventos.

Uma análise parcial dos dados do presente estudo apresenta que a instituição passa por freqüentes dificuldades financeiras, uma vez que a participação do poder público (Governo do Estado e Município) se dá de forma esporádica, percebendo-se uma presença descomprometida com a política de atendimento a criança e adolescentes, pois apóiam a iniciativa da instituição, porém, não se envidam esforços para promoção de uma política mais ampla e para concretização daquelas já existentes. Daí, por exemplo, as necessidades dos atendidos referentes à saúde (clínica médica, oftalmologia, odontologia, exames laboratoriais etc) se desenvolverem com ajuda de especialistas voluntários da comunidade. Nesse contexto, refém da vontade política dos gestores locais, a instituição na sua trajetória histórica vai adquirindo experiência no trabalho e estabelecendo contatos com entidades afins, por exemplo, com a Pastoral do Menor (organização ligada a Igreja Católica) e aperfeiçoa as formas de elaboração de projetos para captação de recursos, que são concretizados através do estabelecimento de parcerias com instituições como o Banco do Brasil (Programa AABB Comunidade) , Azaléia Calçados que fornecia a alimentação das crianças e adolescentes atendidos no projeto, dentre outros.

Nota-se ainda que uma das ações estratégicas da IPAM se dá com o trabalho de escolarização dos atendidos, pois foi conquistado registro na Secretaria de Educação do Estado para que a instituição funcionasse como escola regular, desenvolvendo ali um trabalho pedagógico assessorado por pedagogos e professores do município que atenderem as particularidades do seu público. A professora Lúcia Moraes relata essa conquista do seguinte modo:

No turno matutino fazia [na IPAM] atendimento da área pedagógica. Existiam as salas de aulas do preparatório até a terceira série. Fazia-se esse trabalho porque a gente precisava alfabetizar os meninos, porque a rede estadual e municipal não atendia o menino com idade avançada, como por exemplo, de 8, 10 anos, as escolas não recebiam para fazer o trabalho de alfabetização. (...) mas a intenção da gente era alfabetizar esses meninos que estavam em idade avançada porque a gente sabia se a instituição não fizesse este trabalho, com certeza eles iriam se tornar adultos analfabetos.

Outro aspecto a ser destacado nesse estudo está relacionado ao pioneirismo da IPAM no município, desde a segunda metade da década de 90, quanto à discussão, organização e implantação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), Conselho Tutelar e aprovação do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Vale destacar que a instituição é membro efetivo desses conselhos, atuando ainda no Conselho de Assistência Social do município, e que regularmente planeja e promove atividades de formação para os conselheiros, através de grupo de estudos sobre legislação referente a criança e adolescente, cursos, palestras e seminários sobre medidas sócio-educativas previstas no ECA, articulando, assim, todos os setores que discutem a política de atendimento a criança e adolescentes no município.

Por fim, outros dois dados importantes das ações da IPAM merecem destaque: a) Execução do Projeto “Vida Nova” desenvolvido no ano de 2004 através de convênio com a Secretaria Estadual do Trabalho e Ação Social, objetivando atender adolescentes em conflito com a lei e/ou em caráter preventivo, promovendo a defesa e garantia dos direitos, através do envolvimento da família e dos poderes públicos, tendo vigência de um ano, sendo que, lamentavelmente, no ano seguinte não foi renovado o referido convênio; e b) Realização de parceria com o Ministério Público e Juizado da Infância e Adolescência para cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente no que dispõe em seu Capítulo IV: Das Medidas Sócioeducativas na Seção V: Da Liberdade Assistida, quando da prática de ato infracional pelo adolescente:

Art. 118. A liberdade assistida está adotada sempre que se configurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.

Art. 119. Incumbe ao orientador (...): I – promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social; II – supervisionar a freqüência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula; III – diligenciar no sentido da profissionalização do adolescente e de sua inserção no mercado de trabalho.

Apesar da ausência do poder público no repasse de recursos financeiros para o cumprimento das ações expressas na lei, observa-se que no seu percurso histórico a IPAM vem atuando de forma a cumprir os preceitos legais e viabilizar a necessidade de uma vida menos miserável de crianças e adolescentes que ainda são vítimas do processo de exclusão econômica e social que persistem em nosso país, especificamente em nosso município.

Portanto, podemos afirmar que a IPAM ao longo de seus 22 anos de existência tem cumprido o papel de fomentadora de discussões e como executora de políticas de atendimento as necessidades de crianças e adolescentes pobres de Itapetinga, buscando assim realização do sonho de muitos que é garantir o desenvolvimento integral desses sujeitos. Os dados dessa pesquisa ainda revelam e expõem a urgência do poder público em assumir a responsabilidade na implementação de políticas públicas que conduzam o processo de efetivação dos direitos das nossas crianças e adolescentes proclamados pelo ECA e respaldados pela Constituição cidadã de 1988, pois, conforme nos alerta Heloísa Marinho “a trágica situação de nossa infância obriga-nos a lutar”.

4. Referências

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* Artigo Originalmente publicado no I Seminário Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças e adolescentes na América Latina, ocorrido na Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ, no período de 25 a 27 de outubro de 2006.

Reginaldo Santos Pereira
Enviado por Reginaldo Santos Pereira em 13/11/2006
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