ABORTO: ANÁLISE DE UM ARGUMENTO PRÓ-VIDA

O aborto é, sem dúvida, um dos temas mais polêmicos da Ética. Tão polêmico que quase comprometeu a eleição da atual presidente Dilma Rouseff. A maioria dos religiosos está em comum acordo que o aborto é uma prática imoral, além de ser pecado para a maioria delas. Outros, mais moderados, aceitam que o aborto pode ser justificado em alguns casos, como de abuso sexual. No entanto, não faz sentido considerar o aborto imoral, mas justificável em caso de estupro. A razão, dizem, é que nesse caso a mulher não teve escolha de engravidar, mas se o aborto é imoral, também deveria ser neste caso. O fato de eu não ter escolhido que alguém esteja em uma determinada situação não exclui minha responsabilidade e obrigação moral para com essa pessoa. É como dizer que eu só sou obrigado a ajudar alguém se eu tiver escolhido que ela estivesse precisando de ajuda.

Muitos argumentos são sustentados por aqueles que são contra o aborto, mas não nos interessa aqui analisar os argumentos com algum fundo teológico. Não faz sentido alegar que o aborto é imoral porque é proibido por Deus se sequer sabemos se Deus existe, nem o que ele quer de nós. Além do mais, isso só faz sentido para pessoas que compartilham de uma mesma crença. Se um argumento contra o aborto quiser ser realmente forte tem que ser capaz de ser aceito por todos, como uma proposição matemática. Sabemos que isso é muito difícil se tratando de Ética, mas isso é apenas um modelo. O argumento que será analisado aqui é, acredito, o mais comum e abrangente dos argumentos contra o aborto, que é o argumento que defende que temos um direito à vida que nos é intrínseco, e que fetos também o possuem, uma vez que são humanos. Podemos escrevê-lo da seguinte forma:

Todo ser humano tem direito à vida.

Fetos são seres humanos

Logo, fetos têm direito à vida.

Esse argumento é forte porque é intuitivo. Parece óbvio que todo ser humano tem direito à vida. Os que sustentam que o aborto não é imoral (que vamos chamar de “pró-escolha”, em vez de “a favor do aborto”*) com certeza aceitam essa premissa. E se os pró-escolha são contra o infanticídio, por que não seriam contra o aborto também? A questão levantada pelos pró-escolha é se fetos são realmente seres humanos e o que concede direitos a vida a um ser humano. Parece óbvio que fetos são seres humanos, mas quando nos perguntamos o que é ser um ser humano e por que seres humanos têm algum direito natural à vida que os demais seres vivos não teriam a priori a coisa começa a ficar complicada. Se fetos são seres humanos, então o que é ser um ser humano?

A resposta mais famosa é que o ser humano é um animal racional e consciente. Mas notem que se for esta a resposta, então os fetos não são humanos, pois não são racionais, portanto, não teriam um direito à vida que lhe seja intrínseco. Pelo menos não na proporção de uma pessoa adulta. Poder-se-ia replicar que, embora os fetos não sejam racionais, portanto, seres humanos, eles são potencialmente racionais, e virão a ser humanos com seu desenvolvimento. Isso, porém, não resolve o problema, pois não se pode conceder direitos a alguém nos baseando apenas em uma potencialidade. Por exemplo, pessoas com mais de dezoito anos têm direito ao voto, mas não pessoas com menos. Se a réplica dos pró-vida fosse válida, poderíamos dizer que menores de dezoito anos têm direito ao voto pois eles poderão ter dezoito anos com seu desenvolvimento. Isso mostra que não se pode conceder direitos iguais nos baseando numa potencialidade. Se fetos podem vir a se tornar seres racionais, só terão os mesmos direitos que nós quando isso acontecer, mas não antes. O argumento contra o aborto se torna, assim, inválido.

Para muitas pessoas parece óbvio que fetos são seres humanos, mesmo que não tenham capacidades racionais. Isso porque fetos são humanos biologicamente. Assim, a resposta para a pergunta “O que é o ser humano?” seria apenas que ser humano é qualquer indivíduo da nossa espécie, sendo os fetos, desta forma, seres humanos como os adultos. Esta resposta evita o problema da resposta anterior, mas ela não explica por que seres humanos teriam algum direito especial à vida que os demais seres vivos não têm. Por que um indivíduo teria direito à vida simplesmente por ser da espécie humana? Dizer que alguma coisa tem direitos simplesmente por pertencerem a uma espécie é algo bastante preconceituoso e se parece bastante com o racismo e a xenofobia. A justificativa que os racistas dão para terem certos direitos é simplesmente porque as pessoas da sua raça têm esses direitos por natureza. Mas é obvio que a natureza não concede direitos a nenhuma raça, portanto, não pode conceder a uma espécie. Dizer que fetos têm direito à vida porque são da espécie humana, e que a espécie humana tem esse direito não resolve o problema do aborto.

Como vimos, esse não é um bom argumento. Se defendermos que seres humanos são indivíduos dotados de racionalidade, então fetos não são seres humanos, e não haveria nada de errado no aborto. Se defendermos que seres humanos são indivíduos da espécie homo sapiens, então fetos são seres humanos, mas não haveria nenhuma justificativa para o direito à vida até mesmo para seres humanos adultos. Parece evidente que não acreditamos que seres humanos têm direito à vida por serem da espécie homo sapiens¸ mas por serem dotados de razão e consciência. Isso, ao que parece, nos concede algum direito à vida, mas não sabemos como (e nem convém analisar isso aqui). Porém, se fetos não têm direito à vida por não serem racionais, portanto, seres humanos, por que bebês e pessoas em coma têm direitos? Eles também não são racionais nem conscientes, mas os pró-escolha parece estarem de acordo que eles têm sim direito à vida e que tirar a vida de algum deles é imoral e criminoso. Não parece contraditório afirmar que fetos não têm direito à vida por não serem conscientes, mas pessoas em coma têm? Nem tanto...

Não é verdade que bebês não têm consciência na mesma medida que tem um feto. Estes, em certos estágios da gravidez, não são sequer capazes de sentir dor, ao passo que todos os bebês o são. Embora os bebês não sejam conscientes de muitas coisas, eles o são dos seus estados subjetivos, portanto, sabe quando sente dor. Estão apenas em um nível de consciência inferior a um adulto, mas são conscientes, sim. E quanto a pessoas em coma ou que estejam dormindo? Também é falso que elas são inconscientes na mesma medida de um feto. Eles são sim conscientes, mas apenas não estão utilizando sua consciência no momento, portanto, têm direito à vida se a consciência e a razão forem os verdadeiros critérios para tal direito. Não se trata aqui de cometer a mesma falácia do argumento pró-vida, de tentar conceder direitos se baseando em uma potencialidade. Os fetos não são racionais nem conscientes, podem vir a sê-lo, mas pessoas em coma são racionais e conscientes, só não estão sendo no momento. É o contrário do que ocorre com o fetos, por assim dizer.

Como vimos, esse argumento pró-vida não se sustenta, e se quiserem defender que o aborto é imoral, terão que formular outro argumento. Isso, porém, não encerra o debate. Os pró-escolha na verdade têm poucos argumentos a favor de seu ponto de vista. A maioria deles se ocupam apenas em refutar os argumentos pró-vida, mas não formulam argumentos reais e afirmativos. Cabe a eles explicar o que realmente concede direitos a um adulto, uma criança e não a um fetos e como isso ocorre. Por que a razão e a consciência nos daria algum direito à vida que os demais seres vivos não têm a princípio?

*Uso o termo "Pró-escolha" porque não somos realmente a favor do aborto, mas sim que as pessoas tenham liberdade para escolher. É claro que o melhor seria levar a gravidez até o fim, mas não achamos que aborto seja imoral ou criminoso.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 08/08/2011
Reeditado em 08/08/2011
Código do texto: T3146862
Classificação de conteúdo: seguro