"PAI, SE POSSÍVEL, PASSE DE MIM ESTE CÁLICE!"

“PAI, SE POSSÍVEL, PASSE DE MIM ESTE CÁLICE!”

Imensa perplexidade a pregadores e escritores do mundo cristão têm causado estas palavras de Jesus e a cena noturna do Getsemane que lhe serve e fundo. Como é possível que o mesmo homem, tão corajoso em sua vida, se revele tão fraco em face da morte? A historia profana da humanidade está cheia de exemplos de pessoas que enfrentavam a morte sorrindo, desafiando os mais atrozes tormentos. Os próprios mátires do Coliseu e outros discípulos do Cristo dos primeiros séculos não parecem muito superiores ao Divino Mestre? Sabem que seus corpos vão ser dilacerados pelas feras, devorados pelas chamas, e, não obstante, marcham firmes para a arena mortífera e para as fogueiras, como se fossem a um banquete; frágeis donzelas, até crianças, arrostam a morte com a alegria no semblante e a firmeza das legiões romanas em seus passos – e Jesus treme e geme: “Pai, se possível, passe de mim este cálice sem que eu o beba!”... Verdade é que com a cláusula final “contudo, não se faça a minha, e sim a tua vontade, meu Pai”, Jesus salva o aspecto ético da sua atitude, não se rebelando contra o sofrimento – mas não solve o enigma do seu estranho medo em face da morte. Chega ao ponto de suar sangue, de tão angustiado, e pede a seus discípulos que vigiem com ele, uma hora que seja , não deixando a sós em luta com os horrores da morte.

É fora de dúvida, que vai algum tenebroso mistério nessa inexplicável hesitação de Jesus, às sombras de Getsêmane.

Não será que ele devia ser 100% homem, antes de poder ser plenamente redentor dos homens? Não devia ele sentir toda a amargura da morte antes de poder ser definitivamente senhor da mesma? E, se Jesus não tivesse sentido em cheio os horrores da morte, teria ele sido inteiramente humano?

É da íntima essência da natureza humana temer a destruição do corpo, e, sobretudo, temer a destruição de algo que é mais que o corpo físico.

Que é esse algo que Jesus ia perder?

Era todo esse mundo deliciosos “imponderáveis” que, como um halo de poesia, circundam a nossa existência. Era a fé e o amor de seus discípulos e almas devotadas que tinham plena confiança nele. Era aquele elemento querido que podemos chamar ingenuamente, “bom nome”, “reputação”, “prestígio”, que embala a vida humana e lhe dá o supremo requinte de suavidade. Perder essa atmosfera de benquerença é tão indizivelmente amargo, que uma pessoa de sentimentos delicados prefere perder a vida física a perder essa aura benéfica de fé e amizade e continuar a viver.

Quanto mais espiritual é o homem tanto mais sensível é ele nos seus sentimentos superiores. O homem boçal sente uma punhalada nas costas, mas pouco se dá duma vulneração emocional. O homem altamente evolvido sente mais dolorosamente uma ingratidão do que uma paulada.

Sabia Jesus que seus discípulos e íntimos amigos seriam “escandalizados” com os acontecimentos, e perguntariam a si mesmos: E agora? Que é do poder taumaturgo do Mestre?... Porque não se liberta da prisão e da morte? ... Não o pode?.... Não o quer? ... Se não o pode, que é do seu poder divino? ... Se não o quer, que é da sua bondade humana?....

Se essas dúvidas não tivessem acometido os discípulos, seria inexplicável a fuga deles, a negação da parte de um e a traição da parte de outro.

Imensa deve ter sido a decepção que eles sofreram em face dos acontecimentos. O traumatismo emocional causado pela tragédia da sexta-feira deve ter sido tão violento que fez desertar, desnorteados, esses homens de boa vontade, mas ainda não definitivamente iniciados nos mistérios do reino de Deus.

E Jesus, no Getsêmane, deixou cair sobre si esse inferno de sofrimentos.

Se os evangelistas tivessem tido a intenção de glorificar o seu Mestre, certamente não teriam relatado a cena da agonia no hôrto das oliveiras e todas as “fraquezas” do Nazareno. Mas os autores do Evangelho são duma objetividade e neutralidade sem par nos fastos da literatura mundial; nunca, em caso algum, tomam atitude pró ou contra os fatos que referem; são aspectadores imparciais e indiferentes; narram simplesmente o que aconteceu, quer agrade quer desagrade ao leitor, quer edifique quer escandalize aos amigos de Jesus. Revela essa absoluta indiferença que os evangelistas não são, na realidade, os autores dos Evangelhos; são apenas canais e condutos através dos quais fluem, serenamente, as águas dos acontecimentos, cujas nascentes se acham alhures, nas profundezas do universo invisível: “E foi Jesus crucificado” – nenhuma exclamação de horror em face de tamanha injustiça e crueldade. “E então Jesus ressuscitou” – nem um vestígio de surpresa e admiração diante desse acontecimento único na história da humanidade. Parece que o evangelista é tão indiferente em face da morte como da ressureição do Nazareno. Nada tem que ver com isto nem com aquilo. Não se declara nem pró nem contra os fatos – narra-os simplesmente, como um autômato neutro e imparcial.

A descrição da agonia de Jesus no Getsêmane representa o mais alto critério de autenticidade do Evangelho e o supremo teste da sua veracidade. Um discípulo que quisesse fazer a apoteose de seu mestre não descreveria as fraquezas do mesmo; representá-lo-ia como herói insensível, a desafiar com glacial indiferença os horrores da destruição. A mais humana das cenas da paixão e morte de Jesus está no signo divino da puríssima realidade. Só um Cristo divino podia aparecer num Jesus tão humano. Os extremos se tocam. O nadir se funde com o zênite, os abismos invocam as alturas.

Se os Evangelhos fossem inventados, disse alguém, o seu inventor seria maior que o próprio herói . é possível ser coerente na verdade – mas é impossível ser coerente, por largo tempo, na mentira. A inverdade se destrói a si mesma, mas a verdade é imortal.

Quando um homem profano desafia sobranceiramente a morte, não é ele plenamente humano, age sob a ação de qualquer espécie de entorpecente mental ou emocional, que nele produz tal ou qual anestesia. E por entre as penumbras dessa semiconsciência pode o homem ser herói. Em Jesus não encontramos essa válvula de escape; não reduz a nitidez da sua consciência; ele é totalmente humano na morte como totalmente humano foi na vida. Não fosse essa completa humanidade do “filho do homem” – como poderíamos crer na completa divindade do “filho de Deus”? O Cristo-Deus só podia ser revelado pelo Jesus-homem. Por isto, em vésperas do triunfo máximo da ressurreição devia ele passar pela derrota máxima da agonia e da morte.

Difícil me seria aceitar a divindade do Cristo se eu não conhecesse a humanidade do Jesus. Quanto mais autenticamente humano é um homem tanto maiores garantias tem ele para ser genuinamente divino.

Se tivéssemos apenas o Jesus sofredor não seríamos remidos, porque a derrota não redime ninguém, se tivéssemos apenas o Cristo triunfante não seríamos remidos, porque não haveria vínculo entre nós e ele – mas agora que temos o homem perfeitamente humano que se deixou derrotar voluntariamente, temos o homem perfeitamente divino, que ergueu a gigantesca torre de vitórias sobre os profundos alicerces da derrota.

O TRIUNFO DA VIDA SÔBRE A MORTE - Quarto volume da “SABEDORIA DO EVANGELHO” – HUBERTO ROHDEN

Pedro Prudêncio de Morais
Enviado por Pedro Prudêncio de Morais em 05/12/2011
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