Galaaz: Diálogos entre a Religiosidade Medieval e o Herói Messiânico

Resumo: Este trabalho pretende analisar a figura de Galaaz, o predestinado a encontrar o cálice sagrado e vencer todas as aventuras do reino de Logres. Estudaremos a figura deste importante herói em A Demanda do Santo Graal, verificando como ele dialoga com a

religiosidade medieval que o produziu.

Palavras-chave: Galaaz, religiosidade medieval, Literatura Portuguesa

Galaaz é uma das figuras centrais da versão portuguesa da novela de

cavalaria A Demanda do Santo Graal. Escolhido para encontrar o cálice

sagrado e trazer paz e harmonia ao reino de Logres, ele é símbolo do herói medieval, pois é casto, puro de alma e possui caráter superior.

Todavia, por ser filho bastardo de Lancelote e Helena, filha do rei

Peles, o herói terá que se redimir pela mácula que envolve sua concepção; sendo assim, mesmo sendo predestinado a vencer, Galaaz será provado e aprovado durante as aventuras na busca do Santo Vaso.

O conceito agostiniano de homem que possui o livre-arbítrio, mas é, ao

mesmo tempo, predestinado à felicidade ou a infelicidade é muito presente na Literatura Medieval. Segundo Santo Agostinho, Adão e Eva teriam recebido de Deus o livre-arbítrio para escolher seguir o conselho divino (não comer da árvore da sabedoria), ou contrariá-lo. Contudo, quando o primeiro casal de humanos decidiu pelo pecado, seus descendentes deveriam ser punidos e, somente os escolhidos, receberiam o perdão da graça divina. Acerca desse perdão, diz o teólogo: “nem todos os homens recebem a graça das mãos de

Deus, apenas alguns eleitos, que estão, portanto, predestinados à salvação.” (AGOSTINHO, 1996, p.21)

Este pensamento medieval que liga o Pecado Primordial à Graça e à

Predestinação está relacionado ao sucesso ou fracasso dos cavaleiros em A demanda do Santo Graal e demonstra que, naquele tempo, acreditava-se que “o destino dos homens [era] traçado pelo Alto.” (MONGELLI, 1995, p.34).

Assim, nosso estudo objetiva verificar como o destino de Galaaz e dos

demais cavaleiros que saíram em demanda já estava traçado pelo divino, ou seja, mesmo que estes cavaleiros fossem colocados para provar serem merecedores do Graal, eles já haviam sido escolhidos como agraciados ou não por uma concepção de perdão medieval antes da demanda começar.

Além disso, observando que A Demanda do Santo Graal aproxima a

figura de Galaaz à de Cristo, objetivamos mostrar que este herói também está em um processo de renovação interna, de conhecer-se, pois, as provas enfrentadas pelos cavaleiros na demanda trazem também uma “tomada de consciência, de cada um, de suas potencialidades e limitações” (MONGELLI, 1995, p.57).

Os cavaleiros em demanda: entre a graça divina e o pecado.

Galaaz foi escolhido, portanto agraciado por Deus, para encontrar o

Graal e alcançar a salvação e a própria ascese. Este fato evidencia-se no texto da Demanda do Santo Graal por uma riqueza de detalhes e por elementos que construirão este fim já preparado para aquele que é “instrumento da Providência Divina, em quem simultaneamente se realiza o cancro do pecado e a graça da absolvição.” (MONGELLI, 1995, p.63).

Aqui, temos a dualidade de Galaaz: o humano e o divino; o que peregrina para se limpar de sua concepção em pecado e, ao mesmo tempo, o que é agraciado com a missão cristocêntrica. Este paradoxo faz de Galaaz o “servo” de Jesus Cristo, ora distanciando-o, ora aproximando-o da divindade.

O caminho percorrido por cada cavaleiro revela o seu nível de virtude e

merecimento, todos são provados em sua “bondade de cavalaria”, distinguindo-se assim, os bons dos maus.

No caso de Galaaz, mesmo sem saber, ele entra na demanda para

obter a remissão. Lancelot nutria amores incestuosos pela rainha Genevra, que era esposa do rei Arthur, mas um encantamento o uniu sexualmente à filha do rei Peles. Este encontro gerou um filho, o qual foi abandonado pelo pai.

Assim, Galaaz nasceu como fruto do erro e, apesar desta culpa, ele é

escolhido, pois Deus assim o quis “para mostrar seu grande poder e sua

virtude” (MEGALE, 2008, p.20). Explicando esse fato, diz-nos Mongelli: “o pecado que vitima Galaaz semelha a culpa original de Adão e Eva: da mesma forma que ele deve purgar-se da falha cometida por seu pai, também a humanidade carrega o fardo da desobediência de Adão” (1995, p.63)

Podemos melhor compreender este raciocínio medieval observando as

ideias de Santo Agostinho explicadas por Russel.

"Santo Agostinho ensinou que Adão, antes da queda, tinha livre vontade e teria podido abster-se do pecado. Mas como ele e Eva comeram a maçã, a corrupção entrou neles e passou a toda a sua descendência, de modo que ninguém, pelos próprios poderes, pode abster-se do

pecado. [...] Mas, pela livre graça de Deus, certas pessoas [...] são escolhidas para ir para o céu; estes são os eleitos. Não vão para o céu porque são bons; todos nós somos inteiramente depravados, exceto quando a graça de Deus, que só é concedida aos eleitos, nos permite ser de outra maneira. Não se pode dar nenhuma razão que explique o fato de alguns serem salvos e o resto condenado; isso é devido a uma escolha de Deus sem motivo algum. A condenação é uma prova da justiça de Deus; a salvação, de Sua misericórdia. Ambas revelam

a Sua bondade". (1957, p.69).

Neste contexto, podemos entender que Galaaz, Perceval e Boorz foram agraciados pela bondade divina enquanto os demais cavaleiros de Arthur, referimos-nos aqui a todos os que não foram escolhidos para receberem o Graal, foram “condenados” pela própria natureza pecaminosa da humanidade. Assim, enquanto o fim trágico de alguns cavaleiros prova a justiça divina, o sucesso dos escolhidos se relaciona à misericórdia alcançada, para que assim Deus mostre o seu grande poder e bondade.

Portanto, Galaaz, apesar de predestinado a renovar a corte arturiana,

também está em processo de renovação interna, de conhecer-se. Por sua predestinação, a cada aventura consegue purificar-se mais e aproximar-se mais de seu destino glorioso, quando chega ao castelo de Cobernic, o castelo do Graal.

As provas enfrentadas pelos cavaleiros na demanda trazem também

uma “tomada de consciência, de cada um, de suas potencialidades e

limitações” (MONGELLI, 1995, p. 57). Assim, o texto da novela adverte que “as grandes aventuras que agora acontecem são interpretações e os grandes sinais do Graal. Mas os sinais e os significados do Santo Graal não aparecem ao pecador nem a quem está envolvido nos prazeres do mundo” (MEGALE, 2008, p. 162).

Portanto,

"a demanda do santo Graal é, pois, que ele separou os bons cavaleiros dos maus, como o grão da palha. E quando ele separou os luxuriosos dos bons cavaleiros, então mostrou a estes homens bons e a estes bem-aventurados as maravilhas que andam buscando do

santo Graal". (MEGALE, 2008, p.167)

Os maus cavaleiros são sinais de uma corte arturiana decadente que,

no início do texto, mostra-se através da figura de um cavaleiro muito estimado, natural da Irlanda. Estava ele pensativo sentado em uma janela, quando de repente

"deu um grito: - “Ai! Desgraçado de mim, estou morto”! E deixou–se cair da janela e quebrou-lhe o pescoço. E os cavaleiros que lá estavam foram até ele para ver o que era e acharam que lhe saía pela boca e pelas narinas chamas de fogo tão forte como se fosse de um forno

aceso, e tinha em suas mãos uma carta que lhe escapou". (MEGALE, 2008, p.24)

O fogo que tomou o corpo deste cavaleiro é sinal da justiça divina, é o

fogo que “queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da

guerra.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.443). Podemos dizer que este é o mesmo fogo que consumiu Sodoma e Gomorra no texto bíblico (Gênesis 18.20 e 19.23) e que da mesma forma é colocado neste conto como o fogo que consome aqueles que não foram agraciados pela justiça divina (“os desgraçados”).

O texto da Demanda logo em seguida nos explica o que fez com que

este cavaleiro assim morresse.

" - Ai! Arcebispo de Cantuária, homem santo e de boa vida e sisudo, aconselha-me em minha má ventura e em meu pecado, assim como te contarei. Sabe verdadeiramente que o revelo a Deus e a ti, que sou pecador, maior dos pecadores, que deitei com minha mãe e com minha irmã. E depois, matei-as ambas, na mesma hora, porque não queriam cumprir minha vontade. E depois, estando a olhá-las onde as matara, sobreveio o meu pai, o rei da ilha do Porto; depois que viu aquela morte, meteu mão à sua espada e eu à minha, e matei-o. E estando a olhá-lo, sobreveio meu irmão, o conde de Geer, e causou-me mal e matei-o. Todo este mal te digo, fiz num só dia. Agora aconselha-me, padre santo, porque já tão grande penitência não me darás que não a cumpra". (MEGALE, 2008, p.44-45)

Este cavaleiro é a imagem de uma sociedade decadente, permeada

por todo o tipo de deslealdade.

Esta corte pecaminosa também será refletida em cada aventura que os

cavaleiros de Arthur enfrentarão nesta demanda e, se os bons que já foram escolhidos e separados dos maus, os pecadores, mesmo depois que contemplaram a graça do Espírito Santo representada no Graal, “não deixaram de pecar” (MEGALE, 2008, p.576).

Podemos citar como exemplo desse fato os acontecimentos relacionados a Lacelot, pai de Galaaz. Mesmo após ter provado o maravilhoso do Graal, Lancelot comete uma dupla traição à moralidade medieval: a traição do espírito superior que não pode sucumbir à carne (quando ele deseja ter um romance adulterino com Genevere) e a do dever de vassalagem medieval ao rei (ao desobedecer a Arthur apaixonando-se pela rainha).

O renascimento de Galaaz: a demanda do Graal.

A origem da novela A Demanda do Santo Graal insere-se em um

conjunto chamado “Matéria da Bretanha”, formado por lendas que se

construíram em torno do rei Arthur e dos seus cavaleiros da Távola Redonda.

Segundo Rodrigues Lapa (1966), as histórias de cavalaria formam um gosto literário muito cultivado em Portugal, além disso, este diálogo entre Portugal e Bretanha mostram “manifestações de um mesmo tipo de imaginação e de sensibilidade” (LAPA, 1996, p.222).

Assim, o que se pode ressaltar nesta literatura medieval é o espírito

céltico, caracterizado pelo “desejo do impossível, a ânsia do infinito, a saudade da terra, da juventude, da pátria livre, da dor, da beleza, da ilusão. O que importa não é o ideal, mas o desejo do ideal” (LAPA, 1966, p. 223).

Este desejo de ideal é aqui representado pelo Santo Graal, cálice em

que José de Arimatéia teria colhido o sangue de Cristo antes de sepultá-lo.

Este mesmo vaso milagroso alimentou Arimatéia durante os anos em que ficou preso, pois tinha o poder de curar e operar diversas maravilhas, produzindo no homem que o contemplava uma plenitude incalculável de felicidade.

Em A Demanda do Santo Graal quando os cavaleiros da Távola

Redonda foram agraciados com a aparição do cálice sagrado, todos desejaram novamente experimentar tal sensação e prometeram não desistir da busca enquanto não o reencontrassem. Assim afirma Galvão e depois todos os outros cavaleiros:

" - Quanto em mim é, prometo agora a Deus e a toda a cavalaria que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei na demanda do santo Graal, assim que a manterei um ano e um dia, e porventura mais; e ainda mais digo: jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça, até que melhor e mais a meu prazer veja o que ora vi; mas se não puder ser, voltarei então. [...] Quando os cavaleiros da Távola Redonda ouviram que aquele era Galvão e viram o que disse, pararam até de comer; mas assim que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e fizeram aquela promessa que fizera Galvão, e disseram que jamais deixariam de andar até que vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão bem preparados, como eram aqueles que aquele dia comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por dificuldade e por esforço que sofrer pudessem. (g.n. MEGALE, 2008, p.39).

O trecho evidencia que o desejo do ideal está presente em todos os

membros da Távola Redonda, mas, conforme as palavras grifadas revelam, mostra que nem todos alcançarão este ideal, apenas os escolhidos, os predestinados a vencer a demanda e como prêmio experimentar a plenitude trazida pelo Santo Vaso.

Essa plenitude a ser alcançada é narrada por meio de uma ação intensa, pois possui episódios com grande teor de aventuras.

No primeiro capítulo, uma donzela chega à corte em plena festa de Pentecostes, procurando por Lancelot, ela quer levá-lo a sagrar um jovem que é revelado como Galaaz.

Ocorre neste momento a primeira ligação entre Galaaz e o Graal, pois,

apesar dele ser filho deste mesmo Lancelot a quem a donzela se refere, nosso herói esteve recluso até então em um mosteiro de monjas, aguardando completar dezoito anos “e sair pelo mundo para cumprir sua missão” (MONGELLI, 1995, p.61).

Poderia ser algo comum armar um cavaleiro nestas épocas de aventuras, mas o fato de ser em “vésperas de Pentecostes” marcou o caráter religioso da investidura de Galaaz.

O texto bíblico trata do dia de Pentecostes como o momento em que o

Espirito Santo desceu aos apóstolos para soprar a inspiração divina de um Cristo que ascendeu ao céu (Livro de Atos dos Apóstolos, 2), sendo Galaaz armado neste dia, podemos dizer que nele está o símbolo do ser humano que é ligado à figura do Espírito Santo e de Cristo (que na religião católica formam, com Deus, a Santíssima Trindade).

Sendo assim, desde a investidura de Galaaz até o momento da

presentifcação do Graal, temos na narrativa a representação simbólica de uma festa que aproxima “o puro dos puros” aos homens que receberam a graça do Espírito Santo, representada no Santo Vaso.

O messianismo ou a essência da figura cristocêntrica de Galaaz se

evidencia ainda mais no episódio em que ele chega ao paço de Camelote, local em que estão reunidos os cavaleiros da Távola Redonda. O jovem cavaleiro, milagrosamente, atravessa as paredes dizendo: “A paz esteja convosco” (MEGALE, 2008, p.29-30), mesma frase dita por Cristo quando, depois de ressuscitado, aparece aos seus discípulos. (Evangelho segundo João, 20.26).

Passados os acontecimentos narrados, o jovem toma o “assento

perigoso”, destinado ao melhor cavaleiro do mundo. Galaaz então é levado a provar uma aventura que se localizava no paço principal de Camelote: por encantamento de Merlim, uma espada estava fincada numa pedra que flutuava e na pedra podia-se ler os seguintes dizeres: “Agora, sabei que por esta espada será conhecido o melhor cavaleiro do mundo, porque esta é a prova pela qual se há de saber; e nenhum, se não for o melhor cavaleiro do mundo, poderá sacar a espada desta pedra” (MEGALE, 2008, p.25)

Chegando ao paço, Galaaz é levado até a aventura da espada e com

facilidade, ao contrário dos demais cavaleiros, tira a lâmina da pedra,

marcando assim o início de sua caminhada para “vencer as aventuras” do reino de Logres.

Neste momento, a Távola Redonda completa-se com a chegada de

Tristão. Com todos à mesa, como já dissemos, aparece-lhes o Graal, trazendo toda a sua plenitude de felicidade a saciar o coração dos cavaleiros com tudo o que é possível se desejar, tal como “todos os manjares” que sentiam vontade de comer. Pois, segundo as palavras do rei Arthur: “Com certeza, amigos devíamos muito estar alegres, que Deus nos mostrou tão grande sinal de amor, que em tão boa festa como hoje, de Pentecostes, nos deu a comer de seu santo celeiro.” (MEGALE, 2008, p.38).

Atentamos para o fato de que “todos os manjares” oferecidos aos

cavaleiros fazem alusão não só ao alimento carnal necessário à sobrevivência, mas principalmente, como nos mostra a fala do rei, ao alimento espiritual, uma vez que o adjetivo a qualificar o celeiro é “santo”.

Assim podemos dizer que a revelação do Graal e a chegada milagrosa

da figura de Galaaz à corte de Camelote e à Távola Redonda são revelações do ideal, do desejo do infinito, da espera pelo herói “salvador” que, assim como Cristo, poderá trazer a paz e a esperança a uma realidade decadente, repleta de crueldade e deslealdade.

Neste contexto, sabendo que o aparecimento do Graal faz alusão à

descida do Espírito Santo aos discípulos após a morte e ressurreição de Cristo, como já citado, podemos dizer que aqui se cumpre em Galaaz uma renovação da missão do Messias: assim como Cristo veio ao mundo para salvar a humanidade da perdição e decadência moral, Galaaz é esperado para redimir a corte arturiana de seus pecados mortais, tais como o incesto e assassinato do cavaleiro da Irlanda, a luxúria dos cavaleiros, que por isso foram proibidos de levar “amiga” nesta demanda, e o maior dos pecados da Távola Redonda e da corte arturiana, que é o amor adúltero de Lancelot e da rainha Genevra, esposa do rei Arthur, infidelidade que causará a ruína do reino.

Depois de experimentarem a graça do Graal, todos desejam voltar a

vê-lo e, por isso, estabelece-se o ideal que os cavaleiros desejam alcançar: a felicidade plena; mas que só poderá ser contemplado novamente por alguns escolhidos, que vencerão suas provas morais durante a demanda e encontrarão Cobernic e o Graal.

Em sua primeira grande aventura após o início da demanda, Galaaz e

alguns companheiros da Távola Redonda chegam a uma abadia de monges brancos. Então, o rei Bandemaguz, um dos que chegaram a este lugar, conta sobre um escudo que feria todo o cavaleiro que até então tentava tomá-lo para si. Imediatamente, querendo saber mais sobre esta grande maravilha, os cavaleiros são levados até a arma, o texto diz: “e levou-os então para o altar e mostrou-lhes então o escudo, que estava detrás do altar, e o escudo era branco e tinha uma cruz vermelha [...]. E exalava tão bom odor como se todas as espécies do mundo nele estivessem.” (MEGALE, 2008, p. 59)

Por se tratar de uma arma defensiva, o escudo simbolicamente

representa proteção. Além desta significação, temos na descrição da arma a cruz que nos leva a simbologia cristã do escudo:

[...] na descrição pauliniana da armadura, da qual o cristão deve-se servir para o combate espiritual da salvação, o escudo é a Fé, contra a qual se romperão todas as armas do Maligno. São Paulo diz, mais

precisamente, que a Fé extinguirá os dardos inflamados do Maligno; extinguir chamas – o sentido do símbolo dá, aqui, uma significação totalmente espiritual do papel do escudo na fé, que deve ser usado contra as tentações da heresia, do orgulho e da carne. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1992, p. 387-388).

Com isso, podemos dizer que além de uma proteção física, o escudo

existente neste momento dA Demanda do Santo Graal também simbolizava, de maneira cristã, a proteção espiritual.

O primeiro a provar o escudo é o rei Bandemaguz. Ele pediu a Galaaz

que lhe outorgasse esta honra, pois sabia que se o puro dos puros o provasse primeiro, certamente o teria, pois era o melhor cavaleiro do mundo. O termo destacado é recorrente em toda a obra pois,

as possibilidades lexicais do vocábulo permitem estabelecer uma relação: a “experimentação”, com a finalidade imediata de “provar algo a alguém”, pode ser tarefa tão árdua que implique em “tormento” e “aflição”, quando menos pelo compromisso intrinsecamente assumido pelo objeto. [..] O cavaleiro visa a “provar-se” para “demonstrar-se” merecedor do Graal. (MONGELLI, 1995, p.39)

Como já fora previsto a desonra a todo o cavaleiro que tomasse o

escudo para si e não fosse o melhor cavaleiro do mundo, o rei Bandemaguz foi ferido por um cavaleiro de armas brancas que surge como um “guardião” do escudo:

"muito fostes louco, cavaleiro, que este escudo pegastes, porque não é outorgado senão para um homem só, e aquele convém que seja o melhor cavaleiro do mundo. Pelo grande erro que nisto fizeste, me enviou aqui aquele que toma as grandes vinganças, para tirar de vós

vingança segundo erro que fizestes. [...] – toma este escudo e leva-o ao servo de Jesus Cristo, aquele que chamam Galaaz. E dize-lhe que o Alto Mestre lho manda, que o traga, porque sempre o será tão novo como agora é e tão formoso, e isto é grande coisa porque se deve muito amá-lo e saúda-o de minha parte. (MEGALE, 2008, p.60)

Torna-se importante destacar que o guardião é enviado por “Aquele

que toma as grandes vinganças”, fazendo novamente referência à justiça divina, provada anteriormente no episódio do cavaleiro da Irlanda, neste momento este juízo praticado pelo Alto Mestre deve-se ao fato de que nenhum outro cavaleiro senão Galaaz, o melhor cavaleiro do mundo, é digno de tomar para si tão sagrado escudo.

Voltou então o rei Bandemaguz à Galaaz e fez como o cavaleiro lhe

ordenou.

Depois de o escudo ser devolvido àquele a quem estava destinado, o

cavaleiro das armas brancas conta a história desta arma milagrosa.

Diz o conto que José de Arimatéia, depois da morte de Cristo, veio a

Sarras, conheceu o Rei Evelac, pagão. O reino estava sendo invadido por Tolomer, um rei vizinho. Quando Josefes, filho de João disse que eram cristãos foi levado a discutir com os sábios e religiosos da terra e com simplicidade venceu a todos. Quando o rei foi contra Tolomer, que estava na cidade, Josefes mandou que lhe fizessem um escudo e pregassem neste uma cruz. E disse ao rei:

"no mundo não há perigo de que não escapasse o que perfeitamente acreditasse naquele a quem por este sinal oramos. E por isso quero que o leve. E quando estiveres em tal perigo que não cuides escapar jamais, então o descobre e dize: “Deus, que por este sinal recebeste morte, tu me torna feliz e são a receber a tua graça”; e bem sabe verdadeiramente, se o chamares de bom coração, que não morrerás, antes terás alegria e honra". (MEGALE, 2008, p.64)

Assim aconteceu na batalha, o rei deparou-se com perigo mortal,

recorreu ao escudo e fez a oração como instruiu Josefes e foi salvo da morte.

Venceu o seu inimigo e logo após, maravilhado com o grande milagre, aceitou a nova fé, recebendo o batismo.

Esta cruz vermelha no escudo foi refeita, posteriormente com o próprio

sangue de Josefes. O sangue simbolicamente representa sacrifício, é também “veículo de vida” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.800). Esta significação combina-se perfeitamente com o símbolo da cruz, desenhada pelo sangue, cruz que simboliza “o Crucificado, o Cristo, o Salvador, o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Não existe símbolo mais vivo que exprime o suplicio do Messias e também a sua presença. Onde está a cruz, aí está o crucificado. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1992, p.310).

Assim, tanto o sangue como a cruz que foi por ele desenhada

simbolizam sacrifício e vida, ou seja, segundo a doutrina cristã, pelo sacrifício (primeiramente de Cristo) é que se alcança a salvação, a ascese para a vida eterna.

A arma “exalava tão bom odor, como se todas as espécies do mundo

nela estivessem” (MEGALE, 2008, p.59), ou seja, no escudo também existia certa plenitude, que o aproxima do próprio Graal, pois este era “repleto de tão bom odor, como se todos os perfumes do mundo lá estivessem. (MEGALE, 2008, p.38) O perfume simbolicamente é a expressão de virtudes. Trata-se da manifestação de certa perfeição espiritual. O perfume desempenha um papel de purificação. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.709). Assim como o incenso, que tem a incumbência de elevar a prece ao céu, associando o homem à divindade, o finito ao infinito, o mortal ao imortal. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009).

Como símbolo físico e espiritual de proteção, o escudo exerce essa

função no passado com Josefes, e também na peregrinação de Galaaz, tanto que, no episódio de maior perigo, no castelo do Rei Brutos, onde uma donzela apaixona-se perdidamente por Galaaz, o escudo não estava por perto e por isso este foi um momento crítico na peregrinação do cavaleiro.

Assim, o escudo de Galaaz, preparado para ele, tem a função de

protegê-lo de todas as formas, tanto física como espiritualmente.

A missão e essência messiânicas de Galaaz se evidenciam também

em outros símbolos apresentados ao longo do texto, a medida que o cavaleiro passava por todas as provas e tentações vencendo-as.

Destacamos as seguintes palavras do rei Peles referindo-se a Galaaz:

“Filho, santo cavaleiro e santa pessoa, cheio de grande direito, rosa perfeita e lírio que semelhas perfeitamente, porque és limpo de toda a luxúria” (MEGALE, 2008, p.553)

A rosa é associada à cruz, símbolo do próprio Cristo, é também “símbolo da ressurreição e da imortalidade”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 788) E o lírio é “um símbolo da pureza, da inocência e da virgindade.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.553) Galaaz busca as maravilhas do

Santo Graal, isto é, a ascese ao Céu, a salvação eterna, por isso ele é “rosa perfeita”, pois está destinado a esta eternidade, mas para isso peregrina purificando-se, pois somente pela pureza, inocência e virgindade, é possível alcançar sua tão desejada ascese.

Para chegar à Cobernic, os três escolhidos, Galaaz, Boorz e Persival,

são levados por uma barca, chamada a “Barca de Salomão” por diversos

lugares onde farão sinais e milagres, o texto diz que “deu um vento tão forte à nave, que os afastou muito rápido da terra” (MEGALE, 2008, p.393). Aqui a barca foi guiada por um vento, o vento no cristianismo é o símbolo do Espírito Santo (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 935) ou seja, eles foram guiados por uma vontade superior, divina. A barca, como atestada no texto, é a representação da Igreja, cuja função é “acolher os que buscam salvação”, pois “aquele que nela entrar, deve ser cheio de fé e de crença” (MEGALE, 2008, p.402).

Dentro da Barca, Galaaz encontra sob um leito uma espada e uma

coroa. A espada em primeiro lugar é o símbolo do estado militar e de sua

virtude, e está relacionada mais especialmente à justiça (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009, p. 392) E a coroa “recebeu no cristianismo a significação de salvação alcançada” (LEXIKON, 1990, p.65). Assim, podemos comprovar a vinda de Galaaz para trazer a justiça divina à pecaminosa corte de Arthur, e a salvação que pode ser alcançada por aqueles que são escolhidos e recebem a Graça divina.

No âmbito social, podemos dizer que a espada e a coroa significam

respectivamente, a ordem militar e a nobreza, ambas associadas, pois a ordem de cavalaria será considerada a ordem mais elevada que Deus fez e comandou e apenas os de nobre nascimento poderiam tornar-se cavaleiros.

O Resultado

Portanto, todos estes signos nos levam até o desfecho da obra, a

chegada à Cobernic, a cura do rei Pescador e a graça novamente alcançada do Santo Graal, objeto que acompanha Galaaz e seus companheiros na barca, que ao contemplá-lo disseram: “que boa ventura nos aconteceu, pois que temos em nossa companhia o que desejávamos” (MEGALLI, 2008, p.575).

Então é predito que o Graal não voltará à Camelote, pois o reino não

merecia novamente tê-lo, pela ânsia pecaminosa em que viviam os vassalos de Arthur. Após estas coisas, depois de ser feito rei de Sarras, Galaaz recebe o que a tanto desejava, a morte e ascese ao céu:

"Senhor, a ti dou graças e a ti oro e a ti bendigo, porque me fizeste tão grande mercê, que vejo abertamente o que língua mortal não poderia dizer, nem coração sentir. Aqui vejo o começo das grandes audácias. Aqui vejo a razão das grandes maravilhas. E, pois assim é, Senhor, que

cumpristes minha vontade de deixardes ver o que sempre desejei, ora vos rogo que, nesta hora, em que nesta grande alegria estou, vos agrade que eu passe desta terreal vida e vá à celestial." (MEGALLI, 2008, p.579-580).

Persival morre também pouco tempo depois, e Boorz volta à corte para

relatar as aventuras experimentadas nA demanda do Santo Graal.

Temos, portanto, a renovação da missão do Messias, pois Cristo

primeiro deixou um ideal, que deveria ser buscado incansavelmente por seus seguidores, Galaaz não pode “renovar” a corte do rei Artur, pois sua missão concentrava-se na renovação interna para também estabelecer este ideal de vida cristã, pois diferente de seu Alto Mestre, ele estava marcado com o pecado original do homem.

Temos até aqui observado elementos essenciais que nos mostram

cada passo na caminhada de Galaaz, que em tudo era predestinado, pois também suas armas estavam muito antes preparadas para ele.

Depois de analisarmos a figura do herói messiânico Galaaz, é possível

entender a doutrinação existente na literatura da Idade Média portuguesa.

Este diálogo entre o cavaleiro e a religiosidade medieval demonstra a tentativa bem sucedida de doutrinação da Igreja, em especial no que diz respeito à doutrina da Predestinação.

O destino dos homens é traçado em seu nascimento, por conta do

pecado original de Adão, todos os homens a partir de então nascem com a natureza pecaminosa, isto definirá toda a vida deste sujeito e suas ações dentro da sociedade. Não é possível mudar este destino, pois mesmo quando os cavaleiros escolhidos para chegar à Cobernic estão próximos a cometerem pecado, são salvos por forças sobrenaturais, pois para o predestinado: “Deus altera o curso da natureza em favor dos seus amigos e inclina os acontecimentos num sentido favorável àqueles que o servem.” (MONGELLI, 1995, p.48).

Neste sentido, tudo é preparado para Galaaz com antecedência,

desde suas armas até a barca que o levará com o Graal de volta a Sarras, onde será coroado rei e morrerá, alcançando sua ascese. Assim como os maus cavaleiros são expostos à desonra e ao sofrimento, por seus pecados.

Todos os cavaleiros estão sujeitos a este Destino, quer seja a

condenação final imposta a todos os homens que nasceram com o pecado original e continuam a pecar por conta desta natureza humana corrompida, quer seja a absolvição concedida a alguns escolhidos, que são agraciados com a misericórdia de Deus. Em ambos os casos, nesta concepção católica de predestinação, são exaltadas as virtudes divinas de Justiça e Misericórdia. Esta ideologia permeará a mentalidade medieval com a atmosfera do “maravilhoso”, do sobrenatural a que estão submetidos todos os homens.

Bibliografia

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A.

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Texto publicado pela Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte Todas as Musas, ano 3, número 2. Jan-Jun 2012.

Disponível em: http://www.todasasmusas.org/06Priscila_Bruna_Flavio.pdf

Acesso em: 9 dez de 2012.