O altruísmo na tragédia

Dentre tantos debates, jogos de empurra, pedidos de justiça, palavras enraivecidas motivadas pela dor e lágrimas ruidosas de quem perdeu para a fumaça e as chamas boa parte – senão tudo – que dava cor e sentido às suas vidas, o som mais alto e tocante parece ser o das bocas abertas e mudas em frente à televisão. Essa comoção geral que tomou conta dos cidadãos brasileiros nos últimos dias traz à tona um fato: a humanidade não perdeu (ainda) seu adjetivo característico principal.

É lenda dizer que se descobre a real natureza de um homem quando se dá poder a ele. Na realidade, o que nos deixa nus de espírito, vestidos apenas com o instinto, é o medo. Ficar cara a cara com a morte entre tantos companheiros ao redor é a prova mais incontestável aplicada à honra. O primeiro impulso que se tem é de sair correndo por cima de o que quer que esteja no caminho. Fugir é tão animalesco quanto humano, e não há ninguém que possa julgar um sobrevivente. Mas voltar atrás na tentativa de salvar seus semelhantes é única e exclusivamente ação humana.

Em tais momentos de horror, percebe-se que, por mais psicopatizada que esteja a sociedade, existem mais coisas que nos diferem dos bichos além do “telencéfalo altamente desenvolvido e do polegar opositor”. Uma tragédia dilacerante nos comove porque, entre outras coisas, ver semelhantes nossos em sofrimento nos mostra o quão pavoroso seria se algo como o que ocorreu em Santa Maria acontecesse com um filho, amigo, irmão ou mesmo conosco. A realidade do fato é muito próxima da maioria das pessoas.

Solidariedade e indignação são próprias dos seres humanos em situações desse tipo. A solidariedade conforta, ainda que parcamente, e a indignação exige que medidas sejam tomadas para que jamais aconteça algo assim novamente. A maior justiça que se pode receber agora é não ver mais projetos de vida abortados quando a ideia era apenas se divertir.

Chega a ser reconfortante ver que a noção de coletivo ainda não nos abandonou, que o que atinge os iguais ainda nos indigna e comove. Ver pessoas que não sofreram perdas familiares se locomovendo para fazer o que podem, seja isso rezar, doar sangue, prestar condolências, tentando amenizar a dor de uma chaga que nunca vai parar de sangrar para dezenas de famílias, nos faz crer que o bem ainda está enraizado nos seres humanos. Que ainda não ficamos tão egoístas. Que alguns de nós ainda não desistiram de amar ao próximo. Ou existe outra explicação para escapar do bafo da morte e, ainda assim, voltar a aspirá-lo, quebrando as paredes do inferno para tirar seus queridos – ou mesmo desconhecidos – que perecem no seu interior?

Creio que não. Se houver, minha condição me faz ignorante demais para compreender.