O conto como dizem

Se você deseja ardentemente uma definição aceita por todos os literatos acerca do que é conto, ávido leitor, sugiro que desista. Não encontrará tal definição, tamanho é o impasse sobre esse assunto nos últimos séculos. Discutiremos aqui o que contistas famosos pensavam sobre o conto e tentaremos tirar nossas próprias conclusões. Mas isso será um pouco mais adiante. Antes, precisamos saber de onde o conto despontou. Esse gênero (muitos nem o consideram um gênero) surgiu da tradição oral de se contar (do latim computare) alguma coisa. As Mil e Uma Noites, uma coletânea de contos folclóricos do Antigo Oriente, datados do século X, já demonstrava a necessidade de se contar algo, seja por entretenimento ou, como neste caso, preservação da vida.

Conta a lenda que o sultão Schahriah descobriu a infidelidade de sua esposa, mandou decapitá-la e decidiu nunca mais passar por aquela situação. Sempre que desposava uma nova mulher, esta era morta no dia seguinte. Desta forma, ele jamais seria traído. Chegando a sua vez de desposar o sultão e sabendo do destino das mulheres que com ele se casavam, Scheerazade decidiu não se entregar sem lutar. Na fatídica noite, ela iniciou uma fantástica história. Seu esposo ficou fascinado com tal narrativa, querendo logo saber o seu desfecho. Scheerazade, que era muito esperta, nunca terminava o relato, deixando para o dia seguinte a continuação. Essa história perdurou por mil e uma noites, até quando o sultão se viu apaixonado pela narradora e a absolveu da morte. “E eles viveram felizes para sempre!” Acho que esse final seria o de uma fábula, mas não resisti!

Vindo para o Ocidente, já nos primórdios da Idade Média, histórias populares eram contadas em versos na França e na Inglaterra, denominadas Fabliaux e Ballads, respectivamente. Geralmente narravam aventuras sobre cavaleiros, damas, amores e coisas maravilhosas. Essa seria a forma embrionária do conto.

Com o passar dos anos, fábula, conto, anedota, parábola, romance e novela confundiam-se por não terem uma definição própria. Determinações mais específicas seriam estabelecidas posteriormente, como fez o famoso dicionarista francês, Maximilien Paul Émile Littré, no século XIX: “Se é uma história longa, é um romance; se é uma história média, é uma novela; se é uma história breve, é um conto”. A confusão se dava principalmente por causa de seus próprios autores. Na falta de uma definição, nomeavam suas histórias como queriam. Esse foi o caso de várias histórias curtas de Voltaire. Se o próprio autor da obra dizia que sua história breve é um romance, quem poderia discordar?

Durante o século XIX, o conto adquiriu importância. Seus maiores cultores surgiram nesta época, em várias partes do mundo. Na Alemanha, tínhamos Ernst Theodore Wilhelm Hoffman; na França, Guy de Maupassant; na Dinamarca, Hans Christian Andersen; em Portugal, Eça de Queiroz; na Rússia, Anton Tchekhov; na Inglaterra, Charles Dickens; no Brasil, Machado de Assis; nos EUA, Edgar Allan Poe.

A maioria das pessoas, quando perguntadas sobre o que é conto, tendem a imaginar que o correto é a resposta do dicionarista francês citado anteriormente. Se só ele tivesse feito tal afirmação e nunca tivesse sido contestado por ninguém, tudo seria mais fácil. Vamos ver o que os senhores contistas acima e alguns outros estudiosos disseram sobre o gênero em pauta. Vamos lá!

Edgar Allan Poe dizia que “é preciso ter uma unidade de efeito. Isso só é possível se a leitura for feita em uma assentada”. Com essa asseveração, Poe afirma que o conto deve ser curto. Ele defende que um conto deve ser lido de uma só vez para que haja uma tensão única. Se a história for um pouco mais longa, pode haver uma divisão de leitura, extinguindo-se a unidade de efeito. Anton Tchekhov, um dos melhores contistas russos, compartilhava do mesmo pensamento que Poe, em relação ao efeito: “Quanto mais objetivo, mais forte será o efeito”.

Tchekhov afirmava ainda que, no conto, tudo deveria contribuir para o desfecho da narrativa, mas que detalhes desnecessários deveriam ser eliminados. “Tudo o que não tiver relação com a história deve ser impiedosamente jogado fora. Se, no início, se disser que da parede pendia uma espingarda, no meio ou no final, alguém deve dispará-la”. Dizia ainda que o conto não permite sobras, nem mesmo de personagens. Certa vez, criticando o também escritor de contos russo Máximo Gorki, proferiu: “...diminua o número de personagens ou escreva romances”.

Segundo as afirmações dos contistas russo e americano, já vimos que um conto deve ter uma unidade de efeito e personagens e detalhes limitados. Vamos ver agora o que diz um famoso contista inglês, H.G. Wells, quanto ao tamanho do conto: “O conto pode ser qualquer peça de ficção passível de ser lida em meia hora”. Quanto tempo será que o bumbum de um homem adulto leva para formigar? Digo homem adulto porque parece que bumbum de criança tem tachinhas. Nunca param quietas! Sendo assim, não dá para medir. Vamos voltar à questão: será que mais de meia hora? Porque se o tempo médio for entre trinta a sessenta minutos, Poe concorda com Wells ao dizer que a leitura do conto deve ser feita em uma assentada, já que uma assentada leva em torno desse tempo!

Norman Friedman não determina o tempo de leitura do conto, mas afirma: “Um conto é curto porque, mesmo tendo uma ação longa a mostrar, essa ação é melhor mostrada numa forma contraída ou numa escala de proporção contraída”.

Muitos autores concordam que um conto deve ser curto, mas será que essa característica o torna mais fácil? Veja o que disse Rudyard Kipling, autor de “O livro da Selva”, entre outras histórias: “Quanto mais curta é a história, mais longo é o seu rascunho”. Esta é uma afirmação com que eu concordo. As pessoas pensam que é mais fácil escrever contos do que romances, por causa do tamanho. Esse é um erro crasso, porque no romance, não importa quantas folhas o autor vai gastar para contar uma história. Quando terminar, será um romance. Com o conto, isso não pode acontecer. O autor deve deixar claro e objetivo com o mínimo de linhas escritas. O próprio Rudyard confessou que costumava escrever histórias longas e resumi-las depois com muita calma para que se tornassem contos.

Também acerca da falsa facilidade de se escrever contos, nosso contista mais ilustre, Machado de Assis, declarava: “É gênero difícil a despeito de sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor”.

Alguns escritores consideravam o conto uma literatura menor. Em sua defesa, Machado de Assis proferiu a declaração acima.

A difusão dos contos no Brasil deu-se através de publicações em revistas, almanaques e jornais. Através da revista “A Semana”, surgiram os primeiros concursos de contos. Um crítico desta revista, Araripe Júnior, em 1893, proclamou: “Todo mundo escreve contos. É a forma preferida na França, na Inglaterra, na Rússia, em toda parte. Não há idéia, não há delírio que se não tenha julgado transformável em conto”. Araripe ainda publicou outra afirmação que é bem interessante e ajuda muito a entender o que é conto e sua diferença do romance. “O conto é sintético (abreviado) e monocrônico (singular), enquanto o romance é analítico (extensivo) e sincrônico (simultâneo). O conto desenvolve-se no espírito como um fato pretérito, consumado; o romance, como a atualidade dramática e representativa. No conto, os fatos filiam-se e percorrem uma direção linear; no romance apresentam-se no tempo e no espaço, reagem uns sobre outros, constituindo trama mais ou menos complicada. A forma do conto é a narrativa; a do romance é a figurativa”.

Caro leitor, percebeu o quão difícil é definir o que é o conto? Temos que analisar as afirmações feitas por diversos literatos e tirar nossas próprias conclusões. E aí vocês dizem: “Edson, mas já não está claro que os autores, em suas afirmações, dizem que o conto deve ser curto, objetivo, com personagens reduzidos e ter uma tensão única?” Sim, eu digo que isso é o que podemos perceber, mas quem define o que é curto, o que é médio e o que é extenso? Quem define quantos personagens um conto deve ter? De repente, o que é um número reduzido de personagens para o autor, não é para o leitor. E aí? O leitor vai dizer: “Ah, mas aqui tem mais de quatro personagens, então não é conto!”.

Diante de tantos impasses quanto à definição acerca disso, o autor modernista Mário de Andrade, no início da primeira história do livro “Contos novos”, lava suas mãos, escrevendo: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei se o que agora eu vou contar é conto ou não. Sei que é verdade”. Posteriormente, dá outra declaração a respeito: “Em verdade, será sempre conto tudo aquilo que o seu autor batizou com o nome de conto”.

Conceito interessante este de Mário de Andrade. Muito parecido com o de William Saroyan, um dos renovadores do conto americano: “Esqueça Edgar Allan Poe, O. Henry e todos os que escreveram o que quer que seja, a fim de que cada qual possa compor o tipo de conto de que se sinta capaz”.

Pois é! Poderíamos passar muito tempo discutindo, tentando chegar a uma definição, mas quer saber? Não estou mais preocupado em definir o que é o conto ou o que não é! Sabem por quê? Porque cada obra é única e é quase impossível analisá-la como parte de uma tipologia. Sempre existiria uma exceção, ou duas. Por exemplo, algumas pessoas classificam o conto como prosa. E como ficam os contos em versos? Lembre-se, caro leitor, que as narrativas orais do Ocidente surgiram de historietas em versos. Então como podem definir que o conto é uma narrativa em prosa? Arthur Azevedo, escritor brasileiro, escreveu um livro inteiro de contos em verso. A literatura de cordel, tão presente nos estados do Norte e Nordeste do Brasil, é feita em versos.

Tantas pessoas deram suas opiniões sobre o que é conto que eu também me sinto tranqüilo para dar a minha. Mas antes, veja uma parte do discurso proferido por Alceu Amoroso Lima em uma conferência na Academia Brasileira de Letras, em 1956: “O tamanho, portanto, representa um dos sinais característicos de sua diferenciação. Podemos mesmo dizer que o elemento quantitativo é o mais objetivo dos seus caracteres. O romance é uma narrativa longa. A novela é uma narrativa média. O conto é uma narrativa curta. O critério pode ser muito empírico, mas é muito verdadeiro. É o único verdadeiramente positivo”.

Vamos a minha opinião e trata-se tão somente da minha opinião. Que leve em consideração somente aquele que concordar. Comecei a escrever contos porque gosto da narrativa curta. O público que escolhi para ler minhas histórias é aquele que mora na metrópole. Sabe por quê? Porque ele vive correndo para cumprir horários, seja de trabalho ou de banco, e não tem tempo ou paciência para ler. Quando pensa em leitura, a imagem que lhe vem à cabeça é sobre o livro grosso e chato que a professora do primeiro colegial o obrigou a ler para fazer a prova. Isso lhe causou extrema aversão à leitura. Acho preciso despertar novamente o espírito leitor nessa pessoa traumatizada. E como fazer isso? Através do nosso amigo conto! Acredito que o conto deva ser realmente breve para que esse leitor comece a perder o receio e constatar que a leitura pode ser prazerosa.

Defendo também a brevidade do conto como todos os literatos citados aqui. Percebam que todos os ditos desses autores remetem a isso, porque se o tamanho da história for reduzido será impossível ter muitos personagens, como detestava Tchekhov; também será muito difícil que a leitura seja dividida, evitando que o efeito único se distenda, como não aprovava Poe; também não passará mais de meia hora, como determinava Wells; também não dará tempo para se construir uma história que não seja sintética e monocrônica, como definia Araripe. Enfim, a única característica certa sobre o conto é o seu tamanho reduzido. O resto deve ser pensado pelo autor. Deus queira que ele tenha bom senso.

Para finalizar, eu gostaria de passar uma dica às pessoas que ainda se sentem inseguras. A melhor das dicas para começar a escrever contos: escrever. Sente-se em frente ao seu computador ou até mesmo use papel e caneta. Comece por onde quiser, contanto que comece. Escreva qualquer coisa e deixe para ler depois de alguns dias. Passado esse prazo, ao ler, você não lerá mais com olhos de escritor e sim de leitor. Ficará mais crítico. Corrigirá os erros, preencherá as lacunas da história. Deixará novamente para lê-lo depois de alguns dias e fará o mesmo procedimento até que ache satisfatório. Essa é a melhor dica que alguém poderia dar. O restante se aprende com a prática.

Espero que este pequeno toque possa ajudar você a escrever as suas obras. Seja bem-vindo, literato!

Referencial Bibliográfico

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 4 ed. São Paulo, Ática, 2003

MAGALHÃES JÚNIOR, R. A Arte do Conto. Rio de Janeiro, Bloch, 1972

MARIA, Luzia de. O que é Conto. 4 ed. São Paulo, Brasiliense, 1992

Edson Rossatto
Enviado por Edson Rossatto em 30/03/2007
Código do texto: T430905
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