Linguagem Falada: conceitos, tipos, aquisição e desenvolvimento.

Ângela Rita Christofolo de Mello, Mestranda em Movimentos Sociais e Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso, Professora efetiva na Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitário de Juara, Departamento de Pedagogia, Área de Metodologia do Ensino e Professora Formadora do Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica do Pólo de Juara/MT (CEFAPRO/MT)

TEMA: Linguagem Falada: conceitos, tipos, aquisição e desenvolvimento.

OBJETIVO: Discorrer acerca dos conceitos fonéticos e fonológicos, evidenciando que a descrição fonética é tão importante como a interpretação fonológica, ou seja, o valor lingüístico, às funções, atribuições de um som dentro da organização sistemática das línguas.

Se a escola tem por objetivo ensinar como a língua funciona, deve incentivar a fala e mostrar como ela funciona. Na verdade uma língua vive na fala das pessoas e só aí se realiza plenamente. A escrita preserva uma língua como um objetivo inanimado, fossilizado. A vida de uma língua está na fala. (CAGLIARI, 2005, p. 52)

Segundo CAGLIARI (2005) muito pouco se conhece da fala portuguesa e têm-se noções erradas a esse respeito. A escola gira em torno da escrita e conseqüentemente a gramática normativa está voltada para a escrita, mesmo quando tenta abordar questões que só existem na fala.

Numa língua existem valores sonoros diferentes para cada símbolo alfabético, e a ortografia por si só não nos dá uma orientação clara sobre a pronuncia da língua e seus dialetos. Dividir as letras do alfabeto em vogais e consoantes só faz sentido se essas letras remetem a sons que na fala podem ser classificados como vogais e consoantes, segundo a descrição fonética. Na fala vogal e consoante são tipos diferentes de modos de articulação CAGLIARI (2005).

Para relacionar fatos da fala com fatos da escrita é necessário do lado da fala estabelecer que dialeto será tomado como base, e do lado da escrita é preciso distinguir o sistema da escrita da ortografia.

Tradicionalmente as vogais são apresentadas na alfabetização como parte do sistema de escrita do português e não da fala. Observam-se situações que só ocorrem na escrita ortográfica, na fala a realidade é diferente - (palavras que começam com a vogal e – apresenta-se escada – pronuncia-se iscada).

O tratamento dado as consoantes não é menos grave que o concedido as vogais. Algumas crianças não distinguem sons surdos de sonoros – p/b, f/v, t/d. A distinção entre consoantes surdas e sonoras depende ainda do dialeto que a criança fala. É preciso saber ouvir as crianças, deixa-las falarem. A escola não deveria preocupar-se somente com a ortografia, mas também com o funcionamento da fala.

A estrutura fônica de palavras pode sofrer alterações quanto juntamos uma palavra à outra, ou separamos as silabas de uma única palavra – o fenômeno de juntura tem muitos aspectos interessantes e importantes não só para conhecer como a fala funciona como também para entender muitos erros de escritas que estão começando a escrever. (casa amarela - kazamarela; todo amigo - toduamigu; toda a amizade – todamizadi...)

As diferentes formas lexicais de palavras, dependendo do dialeto do falante, são usadas pelas crianças e fogem da forma ortográfica, revelando na escrita a forma fonética e a constituição lexical de palavras e seus dialetos: (pizza – pitsara ou pitsa); (fósforo – forsu ou fosforu); (você – ose ou vose)...

O português não é uma língua de ritmo silábico, mas acentual – as sílabas apresentam durações variáveis, que se ajustam em suas durações reais - forçar os alunos a aprender como se fosse uma língua de ritmo silábico é induzi-los a modificar sua fala natural.

Um outro exemplo da terrível confusão que a escola faz entre a escrita e a fala diz respeito à tonicidade. A escrita não tem silabas tônicas e nem átonas. Isso só acontece na fala e depende crucialmente de como as pessoas dizem o que falam.

A variação lingüística e a escola

Aprender a falar depende da racionalidade humana que é dada a todo ser humano, pela natureza e através da interação com outras pessoas. O processo de aquisição da linguagem é, na verdade altamente complexo.

CAGLIARI (2005) afirma que as pessoas são mais expostas a ouvir do que a falar, por isso, acham que entende o que os outros dizem, o que lêem, mas não sabem falar. Porém, tudo o que ouvem e entendem como usuários da língua podem reverter na forma de produção de fala por parte do falante.

Quando chegam à escola as crianças têm uma experiência de anos como ouvintes e falantes de uma língua, a escola tira o ambiente natural de uso da linguagem e a coloca num contexto artificial, em que a linguagem é avaliada a todo instante e não é usada apenas para as pessoas se comunicarem e interagirem lingüisticamente.

A variação lingüística não mostra nenhum erro de linguagem, nem para o indivíduo, nem para um grupo dialetal, mostra apenas que pessoas diferentes podem ter modos diferentes de usar uma mesma língua. Na sociedade que temos, as pessoas cultas, ricas, influentes representam os falantes que melhor expressam os ideais da sociedade e quanto mais pobres e ignorantes forem os indivíduos os grupos e suas culturas, mais discriminados serão perante os demais.

Na sala de aula esses valores sociais, culturais e lingüísticos são avaliados, um em função do outro. Crianças pobres e menos favorecidas social e economicamente, ao entrarem na escola achavam que já sabiam falar sua língua, não conseguem entender porque, de repente, ficou tudo confuso, errado e difícil em sua mente.

Neste sentido, a escola deve compreender a realidade lingüística de seus alunos nos primeiros anos escolares para desenvolver atividades de ensino e aprendizagem que não ferem os alunos nem os mestres, mas, pelo contrário, trazem tranqüilidade, alegria, prazer e sucesso.

Em termos práticos o que tais idéias significam para o professor?

 entender porque as crianças falam do modo como fazem;

 respeitar esse modo de falar das crianças e ajudar os alunos a entender por que falam do modo como fazem;

 explicar o que a escola espera deles, agora e depois;

É preciso uma longa conversa sobre o assunto, além de:

 Ensinar o dialeto padrão;

 Usar o dialeto padrão;

 Treinar os alunos a usá-lo, sobretudo nas leituras;

 Concentrar, inicialmente nas leituras e nas atividades em sala de aula;

 Corrigir os erros de grafia;

 Incentivar os alunos a procurar a escrita ortográfica;

As funções da linguagem

A linguagem humana tem uma função comunicativa. Mas essa é apenas uma dentre uma série de outras funções, e nem sempre a comunicação é a função mais importante no uso da linguagem. Quando as pessoas falam, não pretendem sempre e só transmitir informação, conhecimento novo. A fala pode representar uma ordem, uma ameaça, um compromisso, um contrato.

Como se vê, além de comunicar, a linguagem estabelece direito e deveres entre os interlocutores. Ela tem funções muito especiais. Às vezes é um exercício de poder de uns sobre os outros. Pode-se, através da linguagem persuadir, coagir, omitir, mentir, ferir, magoar, julgar, condenar, criar-se impasse, ter várias conotações, falar nas entrelinhas, trazer ambigüidades. Esse fenômeno semântico explica alguns fatos que ocorrem na escola.

A linguagem possui ainda um caráter convencional, ela não é necessariamente aberta, clara, explícita. Podem-se dizer muitas coisas de modo que, em seu sentido literal e por uma interpretação superficial, apresentem um determinado significado, mas que, interpretados à luz de certos conhecimentos específicos, revelam seu significado diferente, como por exemplos às leis públicas.

A convencionalidade da linguagem não rege só as relações entre os signos lingüísticos e o mundo, mas está presa também a valores sociais, econômicos, ideológicos, políticos, religiosos. Dependendo de contextos desse tipo, o próprio sentido das palavras muda.

Através do modo de falar de cada um, afirma CAGLIARI (2005), revela-se o status social dos indivíduos e grupos sociais, ficando definido o lugar de cada um na sociedade.

Como é estabelecido o dialeto-padrão

No Brasil não existe um português da rainha, nem do imperador, presidente da republica ou equivalente. Notam-se diferentes dialetos que variam de Estado para Estado, região para região, uns gozam de prestigiosos, outros são estigmatizados. As linhas divisórias destes dialetos não se confundem com as fronteiras dos estados. Os meios de comunicação criaram um novo conceito de fala de prestígio, o padrão global.

Essa realidade lingüística precisa ser bem entendida pela escola, para que não cometa injustiças para com os alunos e comprometa o processo de Educação a que se propõe. Segundo CAGLIARI (2005), muitos “problemas de fala”, atribuídos à falta de “discriminação auditiva”, são de fato problemas de variações lingüísticas. Muitos casos de “trocas de letras” na alfabetização podem ser causados ainda pelo fato de o aluno transferir uma análise que faz de sua fala para a forma escrita (bassora, fugão).

A fala artificial usada por algumas professoras alfabetizadoras é uma tentativa falsa de facilitar o trabalho escolar na alfabetização. Essa é a causa de muitos erros aprendidos pelos alunos, que resulta na incapacidade que demonstram mais tarde de ler corretamente e de se expressar oralmente com perfeição de falantes nativos que são.

A variação lingüística é de fato uma questão mais complexa do que é aqui apresentada. A variação lingüística provém não apenas da evolução histórica das línguas e de suas raízes locais, geograficamente delimitada, nem só aparece na sociedade estratificada à maneira das classes sociais e grupos étnicos. É encontrada também no comportamento lingüístico de uma única pessoa, em diferentes circunstancias de sua vida, independentemente da classe social ou região a que pertence. Uma pessoa fala com diferenças às vezes notáveis quando numa conversa informal ou em público, representando um certo status social. Uma pessoa que lê procura uma pronuncia que nem sempre corresponde à pronuncia de sua fala coloquial. Essa é a variação estilista, segundo a nomenclatura dos lingüistas. Todos nós, na verdade, somos de certa forma falantes de mais de um dialeto, os quais usamos de acordo com as circunstancias. (CAGLIARI, 2005, p. 86).

A fonologia na escola

Segundo CAGLIARI, (2005), o que se ensina de fonética nas escolas, nos livros didáticos, nas gramáticas é em geral desastroso. Não há nenhum cuidado com as explicações, há erros primários e uma incompreensão quase total da realidade da língua. Se o objetivo da escola é ensinar como a língua funciona, ela deve ensinar Fonética – preocupação com a descrição dos sons da fala – e Fonologia – interpreta o valor lingüístico que esses sons têm no sistema da língua. Valor lingüístico diz respeito às funções, atribuições de um som dentro da organização sistemática das línguas. Há técnicas fonológicas que são de grande interesse para a professora alfabetizadora.

Um som pode apresentar valor não-distintivo em algumas palavras, - kadeira ou kadera -, observa-se que o som trocado não altera o significado, portanto, neste contexto não serve para distinguir palavras. Um som pode não distinguir palavras num contexto, mas ter um valor distintivo em outro, - dei e de, aqui a troca de ei por e - produz uma nova palavra, um novo significado. Notamos que o (ei) e (e) só não mudam os significados de palavras quando ocorrem diante de r e x – peixe – pexe) A troca de um som por outro num determinado contexto é denominado teste de comutação. É uma maneira de descobrir se um som tem um valor distintivo ou não.

Os testes de comutação são reveladores de funções lingüísticas, de valores fonológicos, porque a linguagem humana se monta essencialmente com unidades chamadas signos – união de um significado com um significante, de uma idéia com sons da fala etc. A palavra casa tem um significado – edifício de moradia – e um significante – os sons k+a+z+a – . A palavra casas tem dois significados e dois significantes – o primeiro é kaza-edifício de moradia – e o segundo é – s – significando aqui mais de um. A palavra casas é constituída de dois morfenas – kasa + s -. O morfema é o menor signo lingüístico, isto é, a menor unidade composta de significado e significante.

Um signo lingüístico pode ter extensão variável, desde a menor, que é o morfema, até outras, como a palavra, a frase, o texto, etc. Nos diferentes padrões entoacionais – afirmativo, exclamativo, interrogativo – o signo lingüístico usado para fazer o teste de comutação dos padrões entoacionais – que funcionam como elementos do significante – podem ser da extensão de uma frase.

A linguagem, segundo CAGLIARI (2005), se articula em dois eixos: um da sucessão ou sintagmático, em que o significante é representado por uma cadeia de sons, e o eixo das possibilidades de ocorrência ou paradigmático, em que o significante é representado pelos sons possíveis de ocorrer nos vários pontos de eixo sintagmático – casa – cata – casa – caso -.

O teste de comutação joga com eixos sintagmáticos e paradigmáticos para descobrir, através da montagem dos signos lingüísticos, quais sons distinguem palavras ou não e em que contextos sintagmáticos isso pode acontecer. Os sons que distinguem palavras são chamados de fonemas. Quando dois sons comutados não distinguem palavras (signos), os dois estão em variação e representam um único fonema – kadeira – cadera -. Nas palavras dei e dê o (e) e o (ei) representam dois fonemas. Toda forma fonética representa a realização dos fonemas, ou seja, seus alofones.

Uma análise exaustiva desses fatos levará ao estabelecimento de um inventário de fonemas e de alofones e a um conjunto de regras que associam a cada fonema os seus alofones, para todos os contextos em que esses fonemas ocorrem. Esse é o sistema fonológico da língua. (CAGLIARI, p. 89, 2005)

O autor lembra que um sistema fonológico existe de maneira bem estruturada nos limites de certa homogeneidade lingüística e se desfaz na medida em que se pretende dar conta de variedades dialetais diferentes entre si. Para estabelecer o sistema fonológico, num caso como o do português, não se deve procurar todos os dados de todos os dialetos. É sempre possível comparar sistemas diferentes de dialetos diferentes, mas isso se faz após a definição de cada sistema, independentemente dos demais. A língua portuguesa é a soma desses sistemas todos, por serem eles muito semelhantes entre si.

Cada sistema fonológico se apóia em formas lexicais consideradas lógicas; nele, elas vêm expressas por fonemas, que, através das regras de realização fonética, se tornam alofones, e tem-se a pronuncia das palavras. (...) Temos, portanto, nos diversos dialetos do português regras muito específica no contexto final das palavras envolvendo os fonemas. Sem a compreensão e o uso da fonologia, é impossível entender muitos fatos gramaticais com a devida precisão.

De posse de conhecimentos fonológicos uma professora de alfabetização pode planejar atividades interessantíssimas para seus alunos, mostrando como de fato funciona a fala e a escrita. A técnica descritiva da fonologia pode ser usada também para mostrar como funciona o sistema de escrita do português e sua relação com a ortografia.

As técnicas de análise fonológica, afirma CAGLIARI (2005), aliadas a uma boa descrição fonética, permitem não só às professoras entenderem de fato o que acontece com os problemas de fala e escrita, como permitem o processo de aprendizagem por parte dos alunos, que passarão a receber uma explicação melhor de como a fala, a escrita, a leitura e a língua portuguesa funcionam.

“É uma ilusão pensar que a escrita é um espelho da fala. A única forma de escrita que retrata a fala, de maneira a correlacionar univocamente letra e som, é a transcrição fonética”. (CAGLIARI, 2005)

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Lingüística. 10ª ed. 12ª impressão. São Paulo. Scipione, 2005.

Ângela Rita
Enviado por Ângela Rita em 30/03/2007
Código do texto: T431248