Resenha musical:

Um trem para as estrelas (EC)



"São 7 horas da manhã
Vejo Cristo da janela
O sol já apagou sua luz
E o povo lá embaixo espera
Nas filas dos pontos de ônibus
Procurando aonde ir
São todos seus cicerones
Correm pra não desistir
Dos seus salários de fome
É a esperança que eles têm
Neste filme como extras
Todos querem se dar bem

Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas

Estranho o teu Cristo, Rio
Que olha tão longe, além
Com os braços sempre abertos
Mas sem proteger ninguém
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois

Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas"
 
Cazuza

Este mês farei uma humilde homenagem a um dos que, na minha opinião, foi um dos grandes nomes da música popular brasileira nos anos 80: Cazuza.

O álbum do qual esta música faz parte, Ideologia, possui canções de caráter emocional, explosivo, autobiográfico e, claro, idealista. Por esse fator, é considerado um dos melhores álbuns do cantor-compositor e da década.

Seria impossível analisar essa canção sem antes lembrarmos como era o Brasil dos anos 80, geração do qual Cazuza fazia parte.

Em termos políticos, o Brasil estava passando por um delicado momento de transição: era o fim da ditadura militar e a sociedade clamava pela redemocratização de um país em que o povo pudesse eleger seus governantes. Em termos econômicos, o governo determinava altos índices inflacionários para suprir o pagamento da dívida externa - em outras palavras, comprava-se um produto por determinado preço e, no dia seguinte, o valor era outro. A falta de acesso aos bens de consumo pela maioria da população deflagrava uma desigualdade social que perdura até os dias de hoje. O setor empregatício estava em crise: baixos salários e altas taxas de desemprego. Devido a todos esses fatores, os anos 80 é considerado pelos especialistas como a década perdida.

Tudo isso serve de pano de fundo para Um trem para as estrelas, uma canção de forte caráter político-social que denunciava a miséria brasileira e as expectativas de um povo por um mundo mais promissor.
 
Um trem para as estrelas
 
A começar pelo título, sabemos que em nossa vida real não existe um trem que vai para as estrelas. Isso só existiria em um sonho, em um desenho de criança ou em um filme infantil. Geralmente recorremos a esse artifício lúdico para explicar o que nos falta na realidade, aquilo que não podemos ter e que sonhamos com ele. Segundo o fisiólogo Burdach, citado por Freud em A Interpretação dos Sonhos, os sonhos têm como objetivo verdadeiro libertar-nos da vida cotidiana. Mesmo quando toda a nossa mente está repleta de algo, quando estamos dilacerados por alguma tristeza profunda, ou quando todo o nosso poder intelectual se acha absorvido por algum problema, o sonho nada mais faz do que entrar em sintonia com nosso estado de espírito e representar a realidade em símbolos.
 
E esse trem é um símbolo. Ele é o elemento que liga sonho e realidade e simboliza as expectativas de um povo.
 
São 7 horas da manhã
Vejo Cristo da janela
O sol já apagou sua luz

 
Aqui temos uma contradição: como o sol pode apagar a luz em plena manhã? Isso indica que haverá escuridão mesmo com a presença do Cristo e do sol - é quase uma profecia, não haverá luz do sol para os miseráveis devido a sua condição de marginais numa sociedade em que poucos estão no poder. "Meus inimigos estão no poder" – era o que dizia Cazuza na canção Ideologia.
 
E o povo lá embaixo espera
Nas filas dos pontos de ônibus
Procurando aonde ir
São todos seus cicerones

(...)

Estranho o teu Cristo, Rio
Que olha tão longe, além
Com os braços sempre abertos
Mas sem proteger ninguém

 
O povo espera por algo, mas não é pelo ônibus - eles apenas estão na fila dele. Essa fila, somada à sensação de perda (procurando aonde ir), simboliza uma sociedade alienada, que está lá embaixo e não sabe seu papel nem seu lugar no mundo. Isso me faz lembrar de várias coisas dos anos 80, como uma fábrica industrial, em que a criação de um produto era dividida em segmentos no qual cada grupo de trabalhadores fazia determinada tarefa, mas ninguém tinha o conceito do todo. No fim, somos parte de uma sociedade global, mas que não sabemos quem somos. Como diria Pink Floyd, somos, na verdade, apenas um tijolo na parede.
 
Segundo o dicionário Michaelis, cicerone é um guia que mostra aos turistas o que há de importante em uma localidade e dá-lhes as informações de que carecem. Seguindo essa premissa, o povo é guiado por Cristo, Ele é encarregado de dar-lhe o que carecem, mas o povo continua carente. Esse é o questionamento de Cazuza.
 
Correm pra não desistir
Dos seus salários de fome

 
O salário aqui é de fome, um salário que é mínimo, incapaz de suprir as necessidades básicas, inclusive a fome.

Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas

 
Vou deter mais atenção ao trecho acima, pois ele é a parte mais expressiva da canção e tem uma enorme força poética. Digo isso não por se tratar do refrão, mas porque retrata as raízes pluriculturais de um país continental, com mais 500 anos de história. O trecho também representa a expectativa de um povo e seu sofrimento na forma de uma linda imagem - tudo isso em três versos, isso é lindo! Bem, vou explicar melhor abordando três aspectos:

1 - Aspectos da natureza: mar, céu e estrelas:

O mar é feminino e materno. Ele embala seu filho em sofrimento (navio negreiro) e o guia para outras correntezas, para um futuro com uma perspectiva diferente do presente. Esse futuro está no céu e nas estrelas. Vejo isso como uma oferenda do mar, entregando seu bem mais precioso aos céus.

2 – Aspecto histórico:

Cazuza recorre à história para explicar que o sofrimento do povo brasileiro está presente desde os primórdios. Os escravos africanos, responsáveis pela formação da nação que somos hoje, foram trazidos ao Brasil de forma desumana, aprisionados, dentro de navios que não ofereciam higiene nem alimentos.

3 – Aspectos alegóricos: o trem:

O trem é uma figura de linguagem que metaforiza a mudança e a liberdade. Literalmente, um trem nos leva de um lugar a outro; no sentido conotativo seria uma ideia de transformação, de não estar mais no lugar de antes e ir para outro transformando-se em outra coisa: uma metamorfose, por assim dizer.

Além disso, um trem da vida real faz apenas viagens terrenas, enquanto que o trem do Cazuza faz viagens etéreas. Essa mudança do horizontal para o vertical é muito significativa. O povo, que estava lá embaixo, poderia subir aos céus, ao mesmo nível de Cristo, para também olhar tão longe, além.

Releia o trecho novamente e veja se faz sentido:
 
Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas

Três versos! Genialidade é isso.
 
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério


O que encontramos nas manchetes de jornal a não ser miséria? Nos anos 80 não era diferente. O quarto dele representa sua nação e toda sua miséria.
 
Sobre o último verso da estrofe acima: quando lidamos com um fato que é corriqueiro passamos a menosprezá-lo, independente de ser algo ruim ou bom, pois está presente em nossas vidas todos os dias. O que fazemos com uma dor irremediável? Convivemos com ela. O que fazemos com uma criança carente de 5 anos que está pedindo dinheiro no farol? Ignoramos ou damos alguns trocados. Mas isso não mudaria a situação dela. Isso se tornou tão corriqueiro que não nos comovemos mais. Comover seria mover-se, fazer algo significativo.

E o que seria a miséria? Uma dor irremediável, uma criança carente, não é nada sério, pois a miséria tornou-se corriqueira.
 
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois

 
A ideia de salvação, que foi figurada na canção como liberdade, tem um caráter religioso. A grosso modo, Jesus veio à terra para salvar a humanidade do pecado por meio da crucificação e ressurreição, figuradas na canção como a tristeza.
 
Resumindo, Cazuza diz que a realidade dos miseráveis é muito cruel: eles querem sair desse mundo que está nas manchetes do jornal e ingressar no trem para as estrelas. Esse mundo cruel é presenciado por Deus, simbolizado pelo cristo redentor, cristo esse objeto de questionamento do autor.

É isso. Espero que tenham gostado.

 

 
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Som na caixa
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Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 28/07/2014
Reeditado em 28/07/2014
Código do texto: T4899833
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